23 ANOS - 1.3
João estava com seus 23 anos de idade e não sabia o que fazer na manhã seguinte. Perdido em meio a vários sonhos passou a vivê-los todos ao mesmo tempo. A cada manhã sentia-se outra vez sem direção como se estivesse a deriva em mar de lágrimas sem saber qual curso tomar. Todos os dias ao despertar optava por novo caminho e ao entardecer compreendia estar com os planos todos errados, então buscava redefinir seus planos e novamente reorganizar trajetória. Percebeu que estava vivendo sem razão o que considerava de pior no ser humano, sentir-se perdido pelo excesso de opções que pode tomar.
Primeiro quis se tornar professor dos anos iniciais desenvolvendo curso profissionalizante na área da Educação Infantil. Concluído o curso e sabido de sua menor vocação para atender e ensinar os “pequenos”, quis inclinar estudos para área da pesquisa o que também não resolveu o problema por falta de hábito com escrita. O medo ainda não havia pago seus honorários por isso optou por uma profissão interessante, algo que o aproximasse da vida boêmia e dos botecos, sem que tivesse que gastar a alma por esta proximidade, infelizmente não deu certo também. Passou a servir boteco enquanto garçom, mas acontece que tornou-se escravo de seu medo após atitude descontrolada que o declarou louco e desde então retalhou solidão bebendo sozinho em sua poltrona. Desde a última vez em que fez grande merda e acabou com sua vida profissional em boteco já se somava algumas semanas sem qualquer gota de álcool na boca, mas João alimenta o desejo. Após retomar bebedeira exagerada, ausenta-se de bar a fim de retomar a castidade sóbria da vida tornando-se simples caixa em livrarias qualquer e muito insignificante. O fato é que estava bebendo da última dose de conhaque que o diabo entornou.
Ora isso, ora aquilo fustigou a decência sua. Da posição fodida que ocupou em livrarias tornando 273 dias de puro inferno, o que o manteve resignado a vencer aquela prova de resistência física e psíquica foi da remota possibilidade de algum dia reencontrar biancara de um olho só.
No primeiro dia de trabalho em livrarias percebeu que apenas seria suportável caso alivia-se tensão corporal de alguma maneira. Detinha várias opções, terapia, dinâmica em grupo, remédios, boêmia. Optou é claro pela boêmia e compreendeu que afastar-se do vício não resolveria seu pequeno probleminha com consumo exagerado do álcool. Mesmo assim estava pouco se fodendo para as consequências, desde que mantivesse foco em escrita poderia deixar-se persuadir pelo bem-estar e inevitável incidência da criatividade que apenas o álcool aglutinava em si. De imediato todos da livrarias perceberam o rastro boêmio que carregava junto de si, como se fosse objeto íntimo do cotidiano feito chaves ou carteira, deixando claro a toda manhã por onde esteve noite passada. Ressaca tornou-se seu codinome e apelido. Encaminhava passos como se fosse sombra e bordava risos e piadinhas em todos os que o seguiam com olhos da desconfiança. Ninguém daquele insano pulgueiro dos infernos jamais descobriu a pessoa que habitava seu corpo, tudo o que viram foi a casca no máximo o discurso. Para maioria o fato dele chegar quase todas as manhãs recendendo cachaça se dava por ser um menino mimado, palavras lançadas a face como se articula um tapa, isto porque o propósito teve como meta julgá-lo. E quanto mais o julgavam mais ele bebia. Ninguém compreendeu seus motivos. A bebida tornou-se seu único refúgio.
Toda manhã logo de sua chegada à livrarias, buscava afoito por sorriso da faxineira e funcionária do cachorro quente qual servia como carga de sua bateria espiritual, ambas notavam em seus olhos a infelicidade de seu sorriso. Mesmo assim sempre recebia um abraço apertado do qual nunca fez ideia que pudesse receber de alguém. Deniceta, como todos a chamavam soube impressionar cada um de nós com aptidão apurada na área da culinária. Seu molho do cachorro quente foi o melhor que já provei por toda a vida e, sempre o fez não esperando nada em troca, mesmo assim sempre há quem recocheteie a inveja em forma de críticas e denúncias sem cabimento. Todo sábado no que ameaçava pisar em loja, ainda moribundo pela ressaca da noite de sexta, como se adivinhasse que estava prestes a chegar do corredor lá longe ouvia Deniceta gritando.
--- João!!! Vá comer cachorro quente, está uma delícia.
Ele sempre chegava faminto, insistia em acordar atrasado todas as manhãs por pura frustração daquele emprego inútil, nem por salário valia a pena, só pelo cachorro mesmo. MajiinBoo nunca fez questão de experimentar cachorro quente, devia de ser pelo seu tamanho, toda aquela panela jamais o saciaria. Não bastava ignorar o cachorro quente implicava com todos que o comiam ora por descuido daqueles que não limpavam a sujeira feita, por ausentar funcionários de suas funções em horário de trabalho e por mera implicância mesmo. Implicar com tudo era o que fazia de melhor. Ele sempre encarou João com ar da desconfiança, ambas as energias não interagiam não havia empatia e, portanto, João nada esperava dele a não ser broncas, resmungões e cara feia. A desconfiança era recíproca. João nunca o considerou enquanto bom líder, sempre em suas conversas transmitia a ideia de um garoto de prédio, cujo objetivo era matar seus oponentes e unir forças contra o reino do mal. Mas isso qualquer um notaria caso fosse lhe oferecida a infelicidade de dividir uma única tarde ao seu lado em loja. Sua dedicação para melhor atender seus clientes era acima da média, qualquer um notaria que gostava do jogo qual participava com traje de fantoche gordo e repugnante. Estava sendo treinado para ser ainda pior que seu mestre, o MajiinBoo gordo aprendeu tudo com MajiinBoo magro, convivíamos com ambas as versões de MajjinBoo. O trauma de MajiinBoo gordo eram as filas ele não suportava a ideia de que “seus” funcionários não eram rápidos o suficiente para bem servir os clientes. Se tivesse um açoite em mãos o filho da puta desceria em todos para trabalharem mais rápido. Episódio curioso que quase fez João rachar teclado em sua cara foi quando MajiinBoo gordo o questionou do porque estava fechando seu caixa se ainda havia fila. Por óbvio aquilo ferveu o sangue de João, já muito estressado com todas aquelas exigências respondeu.
--- Já deu meu horário --- respondeu João lançando um sorriso de puro ódio a seu favor.
--- Mas ainda tem fila ali não tá vendo? --- respondeu MajiinBoo gordo todo nervoso e desconcertado.
--- Mas... ---- MajiinBoo gordo interrompe-o como se fosse bicho.
A fila acabou em poucos segundos os demais caixas assumiram o controle da situação trabalhando ainda mais rápido. João tentou apenas confrontá-lo no sentido de que não havia mais fila necessitando de atendimento. MajiinBoo gordo como que já prevendo a defesa de “seu” funcionário e temendo ser motivo de chacota, impôs sua autoridade na agressividade mantendo a última palavra sob qualquer circunstância, sem abrir espaço para defesa.
–-- Mas nada! Tinha uma filinha ali que eu vi.
João percebeu que o fantoche travestido de MajiinBoo já está morto, morreu a muito tempo, apenas seu espírito jovem ainda cheio de sonhos definha pelos corredores de livrarias. Seu corpo foi consumido por mesma lógica que tenta implantar em todas as cabecinhas dos funcionários sendo ela a lógica do TRABALHO compulsivo e delirante. Costumava dizer que funcionário bom sempre arruma o que fazer quando parado por falta de movimento. Funcionário “ocioso” não colabora com as funções e objetivos da empresa, talvez seja por isso que João e MajiinBoo não acertavam os ponteiros. As vistas de MjiinBoo, João era um funcionário muito “ocioso”, considerando que ele estava em livrarias apenas para cumprir horário. João não enxergava naquilo tudo função desejada. Sempre considerou os termos trabalho, emprego, serviço palavras de forte ideologia fascista. Acreditava que mais tarde substituiriam estas palavras medíocres por “função desejada”. Configuraria em nova revolução social caso isso venha a tona uma vez que o significado político, discursivo, simbólico dos termos interage forte influência no cotidiano qual desdobra no movimento da vida pública versos privada. Entretanto das pessoas que mais aproximou amizade dentre a moça do café, vendedor do áudio e vídeo um colega ou outro do caixa a pessoa que mais o marcou foi Joaquim.
João prefere referir-se a Joaquim enquanto Joaquim. Joaquim sempre encontrou João a porta do supermercado em meio a horário de almoço. Joaquim era como João, por vezes descabelado, barbudo, uma peça ou outra de roupa manchada, suja, um tênis furado, alguns dentes podres, uma pele surrada por cicatrizes, um sorriso no rosto. Joaquim mostrou-se diferente dos outros desde primeiro dia em que entrosaram olhares. Pediu uma moeda para comprar pães, sentado a porta do supermercado todos que cruzavam olhares com ele fingiam não telo visto. João já fez dessas várias vezes o que não o agrada nem um pouco o sabor da lembrança. Sempre tenta escalar mentiras a fim de burlar o arrependimento, acontece que não passam de mentiras. Não tem dinheiro e realmente nunca anda com dinheiro. Acontece que dificilmente exigem dinheiro pedem por atenção. Sempre há um sentimento por trás de um pedido de atenção. Na verdade por todas as vezes que foi parado em rua pública por simples pedido de moedas, por de trás da pessoa que pede existe um ser humano que chora por carinho, que pede por um abraço, que sonha com um único sorriso que o satisfaça. Naquela tarde tentou agir diferente com Joaquim, quando do seu primeiro pedido por atenção agachou até nivelar à sua altura e solicitou seu nome. Sem restrição alguma respondeu Joaquim para felicidade de João, a partir daí teve o privilégio de receber toda atenção de Joaquim. João sempre desconfiou de que Joaquim soube mais sobre vida de João do que João sobre vida de Joaquim. As semelhanças entre ambos eram inúmeras. João convida-o para almoçar em praça de alimentação do supermercado, esperando que aceitasse sem pensar, mas Joaquim recusa e não por orgulho, sente fome recusa por medo. Recusa porque guarda que fica à porta de supermercado o havia advertido para não incomodar os clientes. O posicionamento de João frente ao seu temor é cético.
--- Vamos logo e pare de frescura. Você está comigo caso ele impeça você terá que impedir nós dois.
Apesar de relutar e pedir para que ele leva-se apenas uma marmita lá fora, pois era como todos faziam, recusou todas as suas desculpas ou almoçava com ele ou continuaria com fome. Mais tarde percebeu que foi duro demais com Joaquim, sabe que em seu lugar teria passado fome. Por último disse a João que suas vestes estavam sujas, não gostaria de constranger ninguém da praça de alimentação, aquilo sim foi de cortar o coração. Sua preocupação a cima de tudo sobrepunha sua vergonha e medo, apesar de ambos existirem o que mais preocupava-o era o possível desconforto que pudesse causar aos demais. Joaquim mostrou-se mais forte do que qualquer um que circulava pelas imediações daquele mercado aceitou seu convite não apenas por fome, mas sobretudo para provar a mais um ser humano qualquer de que ele sempre foi capaz de enfrentar a sociedade de peito aberto driblando com maestria suas normas, condutas e etiquetas.
Entraram ambos tensos, guarda encara e segue-os com rosto até ambos sentarem em mesinha da praça. É constrangedor saber que está sendo vigiado sem qualquer discrição, não tinham apenas os olhos do guarda como também repousava sobre a mesa os olhos de todos. Estavam sob os cuidados da curiosidade alheia, almoçaram tudo que puderam a partir daí Joaquim passou a reconhecê-lo sempre que direcionava curso para supermercado. Acontece que desculpa volta a restabelecer contato. Começou a pensar que ganhava pouco para sustentar duas bocas, saía caro todas as vezes que almoçavam juntos. Suas moedas, resultado de um trabalho árduo na coleta por recicláveis principalmente latinhas, não eram aceitas por João por motivos óbvios. João resolveu fazer as contas, após calcular seu salário e dividi-lo pelos dias trabalhados descobriu que seu ganho diário se resumia aproximadamente a trinta reais, o que não cobria o almoço de ambos pois custava trinta e dois e cinquenta centavos duas refeições. Passados alguns dias resolveu fugir de Joaquim, desviando-se da segunda porta que compunha fachada do supermercado estilo norte-americano. Joaquim jamais o teria abandonado caso fosse invertido os papeis.
Não consegue imaginar pelo que Joaquim já teve que superar ou até mesmo sujeitar-se para continuar sobrevivendo, seus mecanismos de defesa contribuem para submergir à realidade criada por ele mesmo. Outro dia João passou por mesmo mercado, um ano já se marcou desde que o viu pela última vez, sentiu-se feliz por revê-lo em mesma porta do supermercado, mas não teve coragem para cumprimentá-lo. Distraído com suas mãos calejadas não percebeu a passagem de João a sua frente, Joaquim não o percebeu, mas João sabia quem era ele o que faria toda diferença. Seis meses já havia passado desde que desistiu de investir em ilusão empregatícia o que não estava bom conseguiu ficar ainda pior após sua demissão. Deveu ao banco por todos os meses que permaneceu em livrarias, após sair de manicômio sentiu-se livre ao ponto de permanecer em mesma lógica de gasto o que o enterrou em amargura e desespero. Sentia-se pressionado por tudo ora pelo banco que investia em cartinhas intimidadoras para cobrir seus débitos, ora seus pais que insistiam na hipótese de que deveria arrumar outro emprego registrado. Único sentido que há em tudo que fez é que diante da deusa morte sentia-se mais vivo, só assim parecia haver sentido para todas as suas decisões erradas.
Errar é humano e insistir no erro também, nunca soube desistir tão fácil então insistiu mais uma vez com objetivo de acerto, mas errou de novo. Acontece que retardado nenhum saí do aconchego de seu lar com intuito de tomar no tobas. Tudo não passou de tomadas de decisões certas no tempo errado. Acontece que por mais que tudo tenha articulado seus erros esse mesmo tudo não conseguiu prever sua desistência o que, portanto, o fez continuar errando até entender um pressuposto acerto. Naquela manhã após seis meses de desligamento do mausoléu econômico teve que encarar a decisão mais óbvia embora seja para ele muito dolorido encarar esta sua última opção. Acordou como qualquer outro brasileiro fodido, numa manhã de entre nuvens acinzentada, tempo escuro feito seus sonhos. Dirigiu-se a cozinha para passar o café, relógio as suas costas marcava cinco da manhã, lá fora o tempo negro dissipa a neblina fria. Nem sempre é fácil a tomada de decisão, sempre recorre a mecanismos de defesa surpreendentes, mas diante situação desesperadora não havia outro jeito. Tinha de dar cabo de uma vez por todas naquilo, pareceu-lhe a opção mais óbvia. Fez o que qualquer outro faria em seu lugar, apesar de não gostar destas comparações discursivas sem nexo e lógica. Não pode evitar o pior, cedo ou tarde teria que ceder a isto, por um segundo pensou já ter imaginado aquele momento. Seguiu até seu quarto com xícara de café rasa, largou-a sobre escrivaninha empoeirada e analisou todas as conexões. Tornou apalpar xícara de café tomando-a toda de uma só vez. Encerra ocasião buscando na dispensa um saco plástico qual serviu para facilitar o trabalho. Ajeita-a com todo cuidado como se estivesse entregando filha sua aos cuidados do genro diante altar de igreja. Dirigiu-se até a loja mais próxima e ofereceu-a como se estivesse perdendo um ente querido para as mãos da morte. Assim ela se foi, entregou-a de mão beijada sua DD 100 Q, um dos melhores toca discos do mundo, em troca de alguns trocados para nivelar sua conta no banco. Vendeu sua única esperança de suportar toda essa canalhice que é a sociedade.