Amanhã Perdido

Estudar e trabalhar não era fácil. E Marcelo sabia bem disso. Cursava Administração de Empresas há um ano e meio e para manter o estudo tinha que seguir trabalhando como conferente de mercadoria em um supermercado de uma grande rede. O trabalho não exigia muita força física, mas era mentalmente estressante. Um problema diferente aparecia a cada hora, provocando brigas e desentendimentos desnecessários com outros colegas de trabalho. Porém, sempre foi o tipo de pessoa que não tinha vergonha de voltar atrás no que dizia e tampouco de pedir desculpas quando, passado o caos, se dava conta de que tinha exagerado. Eram raro os dias que podia ficar tranquilo apenas fazendo anotações na prancheta.

Muitas vezes cogitou a hipótese de fazer academia para ficar em forma e assim ter maior disposição, contudo, faltava tempo e principalmente dinheiro. Nos últimos anos o Brasil passava por uma crise econômica que deixava o pouco que ganhava, menor ainda, não tinha outra escolha se não dar prioridade para as contas principais, como água, luz, telefone, e a compra de comida. Não tinha filhos, nem mulher, apenas namorava, mas gostaria de um dia ter a sua própria família, o que não era barato. Manter uma casa saía caro. Ainda mais por viver num país cujo custo de vida era alto e o salário baixo, com crise ou sem.

Apesar de todo final de mês não lhe sobrar mais do que alguns trocados, não abria mão de uma vez por semana sair com Beatriz, a sua namorada. Ela gostava muito de jantar fora, sair para dançar, não deixaria de dar essa alegria a ela por nada neste mundo. Era o amor de sua vida.

Namorava Beatriz há quase dois anos, haviam se conhecido na praça de alimentação de um shopping. Enquanto o jovem conversava com os amigos, numa mesa próxima a da deles, a garota tomou lugar para almoçar. Atraído pelos longos cabelos negros da garota, e vendo-a desacompanhada, decidiu aborda-la. A princípio não demonstrou muito interesse no papo dele, mas conversou numa boa, até o fim da sua hora de almoço, ficando com o número de seu celular. Quando Marcelo achou que ela o tinha esquecido, foi adicionado por ela no whatsapp. A partir daí foram se conhecendo melhor, até começarem a “ficar” e por fim assumirem relacionamento sério.

Depois de uma semana exaustiva de estudo e trabalho, havia chegado o dia de sair com a jovem. Esperava ela sentado no sofá da sala, enquanto conversava com os pais dela. Um simpático casal de meia-idade, que usam roupas cáqui. Lá fora se fez escutar o som de uma trovoada.

Eis que a garota desembocou no cômodo, atraindo imediatamente a atenção do rapaz. Ela usava um vestido cor de vinho, preso na cintura por uma faixa dourada decorada. Usava meia-calça escura, nos pés calçava saltos brancos de cano curto. Seus fartos cabelos negros cascateavam sobre os ombros desnudos. A tiracolo trazia uma pequena bolsa perolada.

— Pronto? — perguntou a jovem, sorridente, parando diante dele.

— Aham! — respondeu ele, animado, antes de se despedir dos pais da garota e se dirigir a saída, com a garota logo atrás dele.

Ao ultrapassarem o portão de ferro que encobria a fachada da casa de Beatriz, Marcelo voltou-se para ela, lhe agarrou pela cintura e puxou-a para perto de si.

— Nossa, tu tá maravilhosa. Por mim podemos pular o restaurante e a balada, e ir direto pro bem bom... Vai chover mesmo, nada melhor do que enfrentar esse friozinho nos teus braços, minha princesa cheirosa...

A garota apoiou as mãos no peito de Marcelo, que trajava um blazer preto sobre uma camisa social cinza, e respondeu:

— Haha! É, isso seria muito bom sim, mas temos a noite toda... Trabalho duro a semana inteira, enquanto tenho que aturar um chefe xarope e colegas invejosas. No fim de semana quero curtir do jeito que mais gosto. To curiosa pra saber como é aquela nova danceteria lá no Centro. Também tô doida por um sushi!

— Beleza, minha deusa, vamos passear. Mas se mudar de ideia, só falar... — e a beijou com vontade, enquanto apertava o traseiro dela com uma das mãos.

Houve o clarão de um relâmpago, seguido por um trovão. No segundo seguinte começou a chover.

Para escapar da chuvarada, entraram depressa no Gol prateado do jovem, que se encontrava estacionado ante a residência, e rumaram para o restaurante. Naquela noite iriam comer no Delícia do Oriente, um restaurante voltado a culinária japonesa.

Durante o percurso conversaram sobre várias coisas bobas e trivais. Ao fazerem a curva e adentrarem numa avenida movimentada, houve uma pausa que logo foi quebrada por Beatriz com uma pergunta:

— Amor, o que tu acha do casamento?

O rapaz gelou. Qualquer momento demorado de hesitação ou palavra mal empregada jogaria meses de namoro pela janela. Beatriz significava muito para ele.

Respondeu com cuidado, medindo suas palavras:

— Há... Bom...Pra mim é um passo importante, sabe. Um passo que deve ser dado depois de pensar bem, mas tem tudo pra dar certo se o casal se gosta mesmo, e...e não esquecerem que a vida é um mar de altos e baixos!

Não teve nem tempo de respirar, a garota veio com outra bomba:

— E filhos?

— Fi-Filhos...?! — repetiu, nervoso, sabia o quanto a namorada gostava de crianças — Err...Sim, sim, quero ser pai... mais pra frente, né... quando tiver ganhando um pouco mais. Já viu o preço da fralda? E do leite?

A outra soltou um ligeiro riso.

— Pior, tá um horror... mas, então, estando tudo caro, tu não se importaria se a tua mulher tivesse um emprego, hum? Quem sabe seguisse carreira... pegaria no pé por causa disso? Seria um bestão ciumento? Os homens mudam depois que se amarram...

Ao parar o carro no sinal vermelho de um cruzamento, virou-se para a garota e acariciou o rosto dela.

— Se ela acha que dá conta de ser mãe, esposa e trabalhadora sem ficar biruta, quem sou eu pra dizer que não? Só o que quero dela é poder cobrir ela de beijo e caricias sempre, e sempre... O que me diz?

— Adorei... — e se curvou para frente, cobrindo a boca dele com a sua.

Eis que uma buzinada estridente interrompeu o momento de paixão, ao mesmo tempo em que uma luz ofuscante caiu sobre o casal. Viram, com espanto, que a súbita luz cegante vinha dos faróis de um caminhão que derrapava na direção deles.

Numa ação rápida e movida pelo desespero Marcelo abriu a porta do passageiro e empurrou Beatriz para fora do carro com força. A jovem caiu com um grito, ralando joelhos e cotovelos no asfalto molhado. Marcelo também tentou sair, mas não conseguiu pular para fora a tempo. Ao contrário da namorada, ele usava cinto, e os segundos perdidos para desprender-se dele, foram fatais.

O caminhão colidiu com a frente do carro, despedaçando a região frontal do veículo e fazendo-o rodar duas vezes, antes de capotar sobre a pista. Nem o caminhão ou automóvel atingiu Beatriz, que escapou por pura sorte, ambos acabaram indo parar longe dela. Com um estrondo o caminhão chocou de lado contra uma árvore, partindo-a.

Beatriz levantou do chão o mais rápido que pôde e correu na direção do carro capotado, pisando em poças sujas no caminho, enquanto berrava pelo namorado. Por estar de salto, um dos pés entortou no trajeto e ela foi para no chão outra vez. Quando se ergueu novamente, o Gol explodiu em chamas. Em choque, caiu de joelhos diante do fogaréu. Atônita, esticou os braços na direção do carro. Então apertou as mãos contra o peito, soltando um grito de desespero de cortar o coração. Um urro de dor quase inumano.

Alguns motoristas paravam em torno do acidente. Um deles, uma mulher aparentando ter pouco mais de quarenta anos, visivelmente preocupada, correu até a jovem e agachou rente a ela, tocando-lhe o braço na tentativa de acalma-la.

— Como você está? — prosseguiu, após mirar o incêndio: — Era algum parente seu?

Beatriz nada respondeu, apenas afastou a mão da outra com um movimento brusco e deixou-se cair de bruços no chão encharcado. Chorava ruidosamente, e quase se engasgava com os soluços. A mulher perto dela se pôs de pé, completamente muda. Não sabia o que dizer ou fazer diante de todo aquele desespero. Mais motoristas estacionavam em torno do local, enquanto as sirenes de viaturas polícias já podiam ser ouvidas. Implacável, a chuva continuava a cair, espalhada pelo vento, tornando aquela noite ainda mais negra e fria.

Então um mês se passou desde o terrível acidente.

Numa manhã nublada, Beatriz, usando um suéter preto e calças legging de mesma cor, deteve-se diante do túmulo do namorado. Seus fartos cabelos negros estavam presos num coque desarrumado. O rapaz fora enterrado no Cemitério de Viamão. Um cemitério amplo, arborizado e repleto de jardins. Na mão a garota segurava uma rosa branca.

Ajoelhou diante do jazigo e passou os dedos delicadamente sobre a foto envidraçada de Marcelo. Sob a imagem, entalhado no túmulo, podia ser lido o nome completo do jovem e os seguintes dizeres: “Aqui jaz querido filho, amigo e namorado. Que os anjos o recebam em seu santo reino. Deixará saudades”.

Com os olhos lacrimejantes e avermelhados, Beatriz disse:

— Você foi o único cara que me aceitou como sou. Nunca quis me mudar, sequer tentou... E por causa disso, eu aceitei o seu jeito de ser... Ainda lembro de todas as coisas malucas que você costumava dizer, da nossas brincadeiras, ainda sinto você perto de mim, amor... Não... não consigo acreditar que você se foi...Droga,eu queria você não tivesse morrido! — e, junto dum berro de raiva, socou a grama.

Permaneceu em silêncio por um tempo, com olhar, brilhante por causa das lágrimas, perdido no horizonte. Assim que uma lágrima ameaçou correr pelo rosto, secou-a com as costas da mão e jurou:

— Nunca vou te esquecer. Nunca...

Depositou a rosa diante da lápide e beijou-a com ternura, em seguida se levantou e saiu andando. Logo adiante, sentados num banco sob uma árvore frondosa, os pais lhe esperavam. O semblante deles era de tristeza. Sentiam muito pela filha.

Enquanto caminhava até ambos, Beatriz se perguntou o porquê das coisas terem terminado daquele jeito para ela e o namorado. Tanta gente ruim havia no mundo, gente que não valia o que comia, e muitos deles teriam uma vida longa pela frente. Quem sabe até longa e feliz. Já eles não queriam o mal de ninguém, apenas desejam viver a vida juntos, desfrutando do amor que sentiam um pelo outro.

Lamentava não saber a resposta pra essa pergunta. E se perguntava se alguém sobre a face da terra saberia a resposta.