Para Serpente Angel no Sarau do Recanto, "EuRecontA-SIDARTA"
A melhor coisa que pode acontecer ao leitor talvez seja a vontade de reescrever o que leu. O ímpeto de escrever o que sentiu-pensou no ato da leitura é inspiração, uma espécie de contaminação do bem. Esse "contágio" justifica voltar a ler e escrever o que nos toca por ser partícula do Belo! Dizendo isso, logo conto... Os livros que li moram em mim e, algumas vezes, ao recordar uma dessas histórias, sou levado a reescrevê-lá desavergonhadamente com minhas palavras como se a história do outro fosse invenção minha - veja bem, sou honesto, não é plágio: é reescrita! Compartilho aqui com os amigos leitores uma dessas ocasiões. Há algum tempo, eu bebi com muita sede a historia de Sidarta contada por Hermann Hesse, por isso eu recontA parte dela para Serpente Angel e amigos do SARAU DO RECANTO.
#EuRecontA-SIDARTA
Depois de atravessarem para a outra margem, o balseiro se despediu desejando à Govinda paz no caminho. Govinda atrasou o passo, o rio estava em silencio. A mão suspensa na direção do balseiro estremeceu: era Sidarta!
Ali, sentado à sua frente, o balseiro que o atravessara duas vezes o rio era o homem que procurava há muitos anos. Sidarta, seu senhor e amigo.
Por medo Govinda não o abraçou, não disse uma palavra. Certamente o príncipe não o reconhecera depois de tantos anos. Então, aproximou-se e pediu que o balseiro beijasse sua testa. Faça isso e sigo meu caminho, teria dito Govinda.
O balseiro assim o fez, colou seus lábios na testa do outro e beijou-o.
Quando abriu os olhos, Govinda teve a impressão de ver sobre a face iluminada deste Balseiro um véu translucido em movimento: era a pele do rio, liquida superfície onde quietas vozes profundas e ancestrais se multiplicavam - a face de Sidarta. Os sentidos de Govinda o enganavam, não via mais um rosto onde antes havia o rosto de um velho balseiro. Via um menino triste que pedia ajuda com olhos de esperança. Via uma prostituta sorriando maliciosa e escondendo o medo da solidão. Um pai chorava a morte da filha, uma mãe tremia de felicidade com a filha recém-nascida nos braços. Um mendigo agradecia o prato de comida, um rei perdoava sentença de morte. Via o transexual humilhado, via a mulher traída. O marido ciumento, a noiva abandonada, via sangue nos olhos do assassino e doçura no desejo dos amantes. Via clemencia, terror e medo.
Govinda percebeu que não respirava e emergiu, pensou que as lágrimas turvavam sua visão. Secou os olhos e de novo mirou a face do balseiro. O véu se movia e debaixo da face líquida uma infinidade de outros rostos compunha uma face disforme e harmônica que era ao mesmo tempo um e todos.
Govinda percebeu que Sidarta havia finalmente encontrado a iluminação e desejou ficar com ele deste lado do rio. Quando abriu a boca para dizê-lo, as palavras turvaram a superfície cristalina do rosto do balseiro antes mesmo de serem proferidas. Então, Govinda afastou um passou, baixou a mão e curvou a cabeça. Seu coração era do tamanho do mundo.
Sentiu um aperto na alma como se fosse abraço de pai. Sentiu que precisava caminhar. Percebeu que o mundo, como ele, também não tinha abrigo, braços que o abraçasse ou casa para descansar.
Com os olhos perdidos na doçura que emanava do amigo, Govinda baixou-se até o chão. Curvou-se numa dobra que o fez menor e beijou os pés de Sidarta.
Decidido, Govinda partiu. Entrou na mata onde o rio faz uma curva.
Baltazar