Entre dois mundos - III

Quando chegamos para o jantar, Arthur estava sentado em um canto da sala de estar, parecendo estar em uma ligação de trabalho. Usava uma camiseta branca e um moletom cinza, muito mais desarrumado do que geralmente eu o via. Seus cabelos ruivos estavam meio molhados, provavelmente porque tomara ducha antes de descer.

Ele acenou, pedindo para me aproximar. Tentei disfarçar que estava encarando, mas ele provavelmente nem havia notado. Assim que terminou a ligação ele ajeitou uns papeis que estavam em seu colo.

Entregou o que te pedi?

Sim.

Ótimo. Amanhã preciso que venha comigo até a usina. -ele me entregou uma pasta, e os papeis que estavam em sua mão. Notas fiscais do que pareciam ser materiais da usina. - vou precisar ver se posso considerar uma das fases completas. Saímos as sete. Arrume esses papéis por data para mim, por favor.

Como ele não olhou mais em minha direção, considerei que deveria estar dispensada. Encontrei com meu irmão, que estava olhando a distancia. Ele observou incerto a pasta lotada de papéis que ele Arthur havia me entregue.

Você não precisa trabalhar para ele.

Claro que preciso. A tia Sophia foi muito generosa em me aceitar mas…

É nossa casa também Vick!

Eu… não posso mais chamar aqui de minha casa. -respondi baixo. Não queria que Arthur, ou Lucas, que estava sentado assistindo TV, ouvissem - Perdi esse direito faz muito tempo.

Percebi que ele iria refutar, mas não conseguiu. Aquela poderia ser tudo que ele chamava de casa, mas com certeza não era meu lugar. Não tinha nem tanta certeza se havia algum lugar em que me sentiria a vontade.

E, apesar de saber que meu pai havia me incluído em sua herança de parte daquelas terras, eu não queria nada daquilo.

Levei a pasta para meu quarto, deixando num canto, ao lado de minha mala, ainda não completamente desfeita.

Há anos atrás eu havia sido uma criança naquela casa. Claro que isso de alguem de dezessete anos parece bobagem. Mas em todos aqueles anos, fugindo de cidade em cidade com minha mãe, eu nunca me senti criança. E ali, ouvindo as conversas que continuavam no andar abaixo, eu conseguia me lembrar. De coisas que preferia esquecer.

Tomei um banho longo e aprontei minha roupa do dia seguinte. Como não sabia se deveria utilizar algo formal ou não, separei um dos poucos vestido que tinha que cobria os meu joelhos e uma sandália.

Jantei em silencio, respondendo apenas ocasionalmente as perguntas de tia Sophia sobre meu dia e subi o mais rápido possível para o meu quarto, apesar de algumas pessoas ainda ficaram conversando na sala de estar.

Acordei, assustada ao perceber que faltavam poucos minutos para as sete horas. Consegui apenas tomar um banho rápido, vestir e juntar meu cabelo em um rabo de cavalo.

Arthur já me esperava, vestido no que parecia ser um arremedo de um explorador de florestas. Usava uma camisa preta e uma calça caqui, com botas altas que me adiantavam uma coisa. Eu estava bem inapropriada, para onde é que estivéssemos indo, com meu vestido amarelo de mangas curtas e minha sandália de saltos médios.

Entramos em um carro do estilo jipe e ele me entregou seu celular. Meu papel durante toda a viagem seria ligar para os números que ele dissesse e colocar no viva voz logo em seguida. Isso e segurar o pacote com o lanche que tia Sophia havia preparado para nós e que não poderia entornar.

Apos a vigésima ligação e de duas horas na estrada de terra, o sinal finalmente acabou. Com meus pulsos já dormentes por segurar o telefone para ele falar, eu não poderia estar mais grata.

Droga. -ele disse quando a ligação caiu e o carro deu um solavanco, em mais um dos buracos na rua. - Não tem como retornar?

Não tem mais sinal.

Que ótimo. Que ótimo.

Apesar de não conseguir mais fazer suas ligações Arthur também não puxou nenhum assunto, tamborilando as vezes os dedos no volante, ao som da musica pop genérica que tocava na única radio que ainda pegava bem. Eu tentava me concentrar na paisagem a frente ou nos poucos carros que de vez em quando nos ultrapassavam, mas meus olhos sempre acabavam voltando para ele.

Ele era bonito. Muito mais bonito que os garotos que eu conhecia na minha ultima escola. E era adulto. Por algum motivo eu sentia um fascínio estranho por adultos.

Quando eu tinha feito dezesseis minha mãe havia me emancipado. Eu sabia, quando ela me sugeriu aquilo, que ela apenas queria garantir que se algo acontecesse a ela eu não voltaria a guarda de meu pai. Mas não imaginava, e ela também não, acredito, que papai já estava morto naquela época. E que ela estaria em alguns meses.

É ali. -Arthur me disse, apontando para um pequeno prédio, com uma caminhonete estacionada na frente. - O escritório, claro. A obra fica a alguns metros adiante.

Eu não chamaria aquele lugar de escritório. Cabana, parecia muito mais apropriado. Quando Arthur estacionou seu carro, em um estacionamento improvisado que estava mais para pasto eu notei como estava inapropriada. Os pedreiros que estavam parados, ao lado de um caminhão me seguiram com os olhos, enquanto eu afundava minhas sandálias na terra.

Entramos no casebre, que não contava com mais que uma duas salas, com mesas sujas e abarrotadas de papel e algumas cadeiras. Havia apenas um banheiro. O que deveria mais que suficiente, já que não havia nenhuma mulher trabalhando naquele lugar. Senti um medo repentino de sair de perto de Arthur.

Um homem gordo, vestido no que parecia ser uma camiseta tão velha e suja quanto a aquele lugar se levantou, cumpri mentando Arthur calorosamente e não se dignando a dispensar mais que um olhar para mim.

Senhor Antônio. Como estão as coisas?

Boas, boas. -ele me estendeu um olhar nessa hora e eu me aproximei

um passo a mais de Arthur. - Os homens encontraram mais uma daquelas rochas na escavação de hoje. Vamos ter que esperar chegarem os explosivos que encomendei.

Arthur e ele começaram uma discussão sobre o prazo das entregas, que sempre atrasava, e sobre a pressão da construtora, que exigia a entrega das fases o quanto antes.

Eu me sentei, observando os papeis nas mesas. Promissórias, plantas, recibos de pagamento. Não conseguia imaginar o que Arthur poderia ter enviado para a garota da cidade. Ou para o pai dela.

Eu e Victoria vamos dar uma olhada na parte norte e depois passamos na area 2 para ver o que aconteceu.

Surpreendida por ouvir meu nome, mas aliviada por poder acompanhá-lo, e por poder sair daquele lugar segui novamente até o carro. Ele virou para mim assim que entramos no carro, olhando reprovador meu vestido e minha sandália.

Não vai poder ir até lá com esses sapatos. O pessoal da segurança me mataria. -franziu as sobrancelhas, tentando disfarçar que olhara um pouco minhas pernas- acho que tenho algo no porta malas.

Ele buscou um par de botas enlameadas, obviamente grande demais para mim e colocou em minhas mãos.

Obrigada. -disse sem jeito.

Saímos, a caminhonete dando pulos nos buracos que enfrentávamos, agora numa estrada muito mais precária. Aos poucos conseguia ouvir o som das quedas e sabia que estávamos chegando perto.

Quando era criança havia ido apenas uma vez até as quedas. As enormes cachoeiras, dentro da propriedade da família, eram um motivo de orgulho para meu pai. Eu não conseguia entender na época o que aquilo tinha de tão impressionante, mas vendo as novamente, uma delas tomada por uma grande construção, eu senti um certo arrepio.

Sete cachoeiras, em formato de um circulo aberto, caiam ruidosamente. Eu segui Arthur, sem conseguir tirar meus olhos da agua que caia, a mais de 60 metros abaixo.

Um pequeno tablado entre as arvores levaram nos até uma ultima base, antes da construção. Eu fiquei anotando os status, que os chefes das equipes passavam a Arthur. Depois ele me pediu para anotar algumas medidas que ele fazia.

Ao contrario dos homens na primeira parada, que me encaravam de maneira ameaçadora, os homens da construção não prestavam muita atenção em mim. E os poucos que me avistavam, desviavam os olhos, com um certo receio.

Incrível, não? - Arthur disse, quando voltávamos, seguindo uma trilha pela beirada da chachoeira - Claro que você deve ter se acostumado. Mas ainda me impressiona.

Eu apenas concordei com a cabeça, surpresa por ele estar jogando conversa fora comigo. Uma parte de mim pensou se seriam o efeito das cachoeiras. Afinal, apesar de não lembrar muito disso, eu era dona daquilo.

Houve um tempo, quando minha mãe havia parado em cidade por um tempo maior, que eu comecei a gostar de um professor. Era uma paixão boba, que não deu em efetivamente nada. Mas eu gostava do modo que ele se concentrava quando nos mandava fazer tarefa, com os olhos baixos no livro que ele havia passado.

Eu gostava de pensar que ele me dava atenção especial, explicando os exercícios, e que um dia ele iria se oferecer para me ajudar apos a aula. Claro que agora sabia que isso seria algo totalmente inapropriado. E, felizmente, esse professor nunca agiu de modo menos que imparcial comigo.

Mas enquanto almoçávamos, no caminho para casa, o modo de Arthur se concentrar em um relatorio me lembrou muito aquele professor.

Estranho… -ele murmurou de repente, virando e desvirando as paginas da planilha -Isso não bate.

O que aconteceu?

Veja, -ele me estendeu as planilhas.

Observei tentando achar o que havia de estranho naquilo. O registro de material gastos era, naturalmente um pouco inferior que o de materiais comprados, mas não havia nenhum gasto excessivo, ou nenhum material que estivesse em sobra.

Essa lista de material, não parece com a que enviei.

Eu não consegui fazer nenhum comentário, já que não sabia qual a lista que ele havia enviado.

Vou precisar ir até a capital amanhã, terei que ver isso..

Eu vou precisar ir também?

O que? Ah, não precisa. Pode tirar o dia de folga.

Dei um suspiro de alivio. A ultima vez que havia ido até a capital, tinha sido quando era criança. Acompanhava a mãe, sorridente, sem entender porque tinham que tirar aqueles férias longe do seu pai e de seu irmão.

Lucia Goethe
Enviado por Lucia Goethe em 07/07/2016
Código do texto: T5690489
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