O NOVIÇO E A AÇUCENA

Naquele mosteiro encravado no alto da serra, chegou o noviço. Sedento, faminto e cansado, chegou quando o sol se punha e sentou-se na escada de pedra esperando que o portão de pedra se abrisse. Foi recebido como deveria, alegrou-se com os irmãos da ordem. Depois passou pelo átrio e pela capela, estancou os passos diante da fonte do jardim. Na cela seu quarto, experimentou o estranhamento de sentir-se em casa cercado por quatro paredes frias onde os séculos projetavam memórias.

O quarto pequeno ganhava dimensões elásticas, povoavam seus pensamentos as cenas do dia: os irmãos no refeitório agradecendo o pão, as roseiras carregadas de botões, as batatas nos cestos e os cestos no chão da horta. Por fim, quando o sono o cobria como abraço de mãe, contava mentalmente os porcos e suas crias. Mergulhando no sono pensava ser também um guardador de rebanhos e agradecido a seu modo o bocado que lhe cabia adormecia. Antes de completar uma semana ali, tudo lhe era familiar. O noviço seguiu a lida, os votos se aproximavam.

Era bem quisto em toda parte, exceto na biblioteca, praticava o silêncio menos ali. Lia em voz alta, falava sozinho, ria e chorava. Chegara mesmo a gargalhar. Ocasião em que foi repreendido e penalizado. Foi metido numa solitária. Deveria refletir sobre a importância do silêncio. Ao sair para a liberdade estava disposto a pedir perdão, mas deu de cara com algo que ia fazer mudo de fato: em breve concílio a congregação decidiu que o noviço ficaria incomunicável até a próxima lua.

Incomunicável ele aproximou-se mais dos porcos, das galinhas e das ervas na horta. Do alto da serra até o rio no fundo do vale ouvia o silêncio; desde a aurora até o crepúsculo, o inexprimível silêncio.

Caminhando para o labor diário dava de frente com os irmãos e baixava a cabeça. Recebia em troca a mesma postura e seguia para o refeitório onde limpava as mesas. Limpava o mosaico de azulejos. Limpava do chão as migalhas que caíam da mesa. Rezava o terço, repetia em silêncio a ladainha dos mistérios. O noviço caminhava para a horta pensando em matar a fome nos continentes com ramas de espinafre. Nos ombros ele carregava as sobras do almoço, acrescentava uma oração e batatas que não serviam para o consumo, os animais esperavam o melhor dele.

Foi no jardim, no último dia da lua nova, que sua voz emergiu do profundo silêncio. Guardava o sorriso macio desenhado em pedra, estava de pé contemplando o sol cansado de iluminar a Terra. Num instante em que o sol piscou uma sombra, percebeu a um metro e meio de seus pés uma açucena que floresceu no cruzamento dos caminhos correndo risco de ser pisada.

O sol voltou a iluminar a serra, foi como se o Criador reinventasse o vale. Nesse momento, nos quatro cantos da terra, ouviu-se a voz de um noviço encantado, a voz de um homem iluminado, a voz da Terra desabrochada.

Naquela noite, para a liturgia das horas o noviço foi recebido como criança recém-nascida. E o dia seguinte amanheceu mais iluminado para todos.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 06/07/2016
Reeditado em 17/06/2021
Código do texto: T5689192
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