Missa De Sétimo Dia

A igreja está menos cheia do que no dia do enterro.

O padre começou a missa minutos atrás, mas parece que isso aqui está durando anos. O padre fala sobre a vida, a morte, os mistérios de Deus- inquestionáveis, incognoscíveis, incontestáveis.

O banco é duro, o assento pequeno e minhas costas doem. Estou na ponta do banco. Olho para a esquerda. A pobre Melissa baba, um fio longo e grosso escorre pendendo abaixo do seu queixo. Puxo um lenço do paletó preto que uso e limpo a baba. Melissa ri, o olhar perdido nas imagens sacras do altar, o corpo molenga como que atirado duma queda, inerte na cadeira de rodas.

Pobre Melissa.

Pobre Karine.

Pobre de mim.

Subitamente todos levantamos dos bancos.

"Pai nosso que está no céu..."

Ótimo, está acabando, penso.

Fazemos o sinal da cruz, menos é claro Melissa, que não consegue. Levanto e sigo empurrando a cadeira de rodas, acompanhado pelas duas irmãs e pelo irmão de Karine. A finada Karine.

Na porta da igreja eu paro, segurando a cadeira de rodas, pronto para receber as últimas condolências, o velho praxe da missa de sétimo dia.

"vai ficar tudo bem", dizem.

"agora vocês dois são uma família" , dizem.

"deve ser uma mãe para ela", diz meu cunhado, e isso soa como uma piada, afinal, eu não sou nem mesmo o pai de Melissa.

Filha de outro casamento da minha esposa morta.

Relacionamentos modernos.

Vocês sabem.

Respondo "sim" a tudo, demonstrando força e confiança inexistentes. Em seguida me despeço. Recebo um último abraço de cada um dos parentes e saio, empurrando Melissa na cadeira, que conserva o sorriso, o corpo inerte, a mente débil. Sinto alívio por sair da igreja fria, com seu cheiro de velas e flores e todas aquelas pessoas com pena de mim.

Na esquina da igreja paro com Melissa no ponto de ônibus. É que Karine, além de morrer, deu perda total no nosso carro há sete dias, vocês sabem.

O ônibus pára, a porta do meio se abre, o elevador desce, entro com Melissa no elevador e o elevador volta a subir. Dou o dinheiro ao cobrador que também me olha com pena e o ônibus parte. Somos os únicos passageiros. Ótimo.

O ônibus passa em frente ao parque, um parque que Karine adorava que nós três fôssemos. Bem, vamos lá.

Melissa e eu.

Uma família de dois.

Aperto a campainha e o ônibus pára. O elevador desce. Começo a tremer. Respiro fundo. Saímos. Empurro a cadeira, atravessamos a rua e entramos no parque.

O parque está vazio, como eu presumia que ocorreria numa tarde de segunda-feira. Nenhuma vivalma.

Segunda-feira, sétimo dia desde o acidente fatal.

Segunda-feira, dia de não ir ao parque.

Partindo dessas premissas, admito que minha esposa morreu num dia favorável.

Empurro a cadeira pela pista que ladeia o lago. Chegamos no bosque. É impossível subir com a cadeira, pois a trilha além de íngreme, é esburacada e cheia de galhos e pedras enormes. Olho ao meu redor. Ninguém.

Só Melissa e eu.

Perfeito.

Pego ela no colo e avanço trilha adentro. Alguns pássaros cantam. Ouço o trinado forte de um pardal, alguns sabiás. Começo a chorar dentro da floresta escura. Melissa baba. E sorri.

Duzentos metros depois, chegamos ao buraco. Deixo Melissa no chão com cuidado. Caminho até uma árvore e encontro minha pá. Retorno para o buraco e olho para ele e para a pilha de terra revolvida ao seu lado. Um dia inteiro cavando, de sol a sol. Olho para Melissa que está de olhos fechados, como se pressentisse... Então pego a pá, ergo, e com todas as minhas forças, descarrego a pá na cabeça de Melissa. Fecho os olhos e repito o golpe mais uma, duas, três, quatro... Muitas vezes. Quando imagino que é o suficiente paro. Sento na floresta escura e choro. Era o melhor para Melissa. Para mim. Se Deus existir, ele sabe.

Levanto, apanho o corpo de Melissa e o atiro no buraco. Tampo o buraco com a terra que havia retirado, e quando termino, saio depressa, levando a pá comigo. Encontro a cadeira de rodas no final da trilha, exatamente onde havia deixado. Sigo empurrando a cadeira de rodas vazia com uma mão e a pá sobre o ombro. Saio do bosque. O parque continua completamente vazio. Arremesso a pá no lago. Depois é a vez da cadeira. Perfeito.

Continuo caminhando. Nuvens negras se acumulam no céu, formando desenhos apressados, nuvens que parecem Karine, o nosso carro batido, o padre, a igreja... Melissa.

Volto a chorar, sentindo medo, desespero, solidão.

Enxugo os olhos com o mesmo lenço que secava o rosto de Melissa, horas antes.

Que o luto acabe, penso.

É para isso que existem as missas de sétimo dia.

Para encerrar lutos.

Cruzo o portão do parque e atravesso a rua, para esperar o ônibus outra vez.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 04/07/2016
Reeditado em 31/12/2020
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