Mil e duas faces de Maria Sílvia Campoamor Sales, née Valdilene dos Santos (Carta a Rosália)

Santa Clara-ML, 12 de maio de 2002

Querida Rosa, como você está? Espero que bem, apesar de eu não acreditar que viver aí -permanecer aí - possa manter alguém em bom estado, ou com algum benefício.

Desculpe a demora em dar notícias, mas falta de notícia geralmente é coisa boa, como sabemos. E você também sabe da minha preguiça em escrever, então...

Além disso, eu precisava me organizar: após vender os móveis e outros pertences de mamãe, era urgente evitar gastos; tratei de cancelar o contrato de aluguel da casa. Seu Ivan veio com a mesma conversa mole - o diabo do russo velho depravado! - mas com uma novidade: ofereceu um quarto 'de graça' na cabeça de porco da rua Primavera. "Val moça boa e bonita, mãe se foi. Moça só, moça triste. Quarto bom, Val alegre, alegria de Val faz bem a tio Vania, da?" Acredita?!

Agradeci, fiz-me de compungida e respondi que ia morar com meu pai, e que diria o quanto ele - seu Ivan - havia sido gentil e tão cuidadoso com a filha do papaizinho querido! Qual pai não ficaria feliz e grato por isso? 'Tio Vania' ficou branco. Lembro bem de uma vez (eu era criança) em que ele foi cobrar o aluguel: papai, ainda de ressaca, apesar de ser quase meio dia, avisou o que aconteceria se fosse aborrecido novamente por causa do mesmo assunto; seu Ivan nem argumentou. Meu pai valia a pena, quando queria valer, lembra? Mamãe já se mostrava o meio zumbi raivoso que se tornou inteiro, depois que ele foi embora...

Arre! Só agora percebi que vivemos naquele muquifo por quase dezoito anos... E o quanto fomos exploradas depois que meu pai se foi!

Se as coisas fossem diferentes - aliás, se as pessoas fossem diferentes - ao invés de aluguel, pagaríamos prestação a prestação de um local nosso, e a vida teria sido menos desafiante, talvez. Mas papai não era bom em prevenir nada, e mamãe sempre fazia o que ele queria. Enfim, a dupla perfeita! A única coisa errada que fizeram foi a filha.

Mas a peste do russo, depois de recuperar a cor rosada que cultiva de segunda à sábado - porque aos domingos vai à igreja, lembra? - com vodca de quinta - muquirana até nisso! - salivou as costas da minha mão esquerda com dois beijos, depois de me pegar de surpresa. Pergunto-me constantemente porque água, sabão e esfregações não resolvem certas sujeiras...

Minha querida, como sinto sua falta! Nossas conversas, nossas escapadas, tudo... Sinto falta até de ficar quieta com você, saudade de sua calma, quase complacência, para comigo, a rua, o mundo. Imagino a Terra cheia de gente feito você e sei que seria um lugar mais leve - e lento, como a vida poderia ser se eu não a apressasse tanto.

Sobre outra pressa: já se decidiu quanto a proposta do Jerônimo? Ele é um sujeito decente, mas aconselho manter certos segredos. Não há homem algum com competência emocional para administrar esses assuntos, e o que ele desconhece - e jamais deve conhecer - não vai lhe causar mágoa, certo?

Mas há pessoas que parecem gostar de sofrer; e o diabo é que gostam, sim, mas precisam culpar outras pessoas pela dor. São incompetentes até em assumir o que gostam. Não tem generosidade em aceitar o que querem. Gente assim me causa asco.

Como vai tia Noême? Dê um abraço nela por mim. Também sinto falta do cheirinho de talco, da macieza da pele fina, nem parece que dorme pouco e trabalha feito uma mula! Diga que infelizmente não tive como guardar nada dos remédios de mamãe - aliás, precisei de todas as doses extras. E ela deve ter ficado chateada comigo, pela doação das roupas de mamãe ao abrigo municipal, mas eu não aguentaria saber de gente conhecida usando as coisas dela. Seria como se alguma vida ainda resistisse, e me dá agonia só de imaginar a possibilidade.

Rosa, nossas mães levaram nossa juventude junto com elas, e antes do tempo... A sua, ao menos, só sofre de tristeza, mas como ela mesma diz, 'tristeza não enche barriga'. Mamãe odiava tanto a si mesma que sobrava para o resto do mundo. E acham estranho papai ter ido embora. Mas o jardim do vizinho é sempre mais florido, né? Ainda bem que nesse lugar infeliz nunca faltaram quintais.

Apesar do tempo perdido e da energia desperdiçada antes, agora estou indo como planejado, mas mantenha contato, Rosa! Não deixe que esse meu jeito colabore para qualquer esfriamento em nossa amizade. Preciso de você como o escritor precisa do leitor, entende? Ou vice versa. O que sei é que entre nós há milhões de livros...

Comecei nova 'leitura' - cidade, corte de cabelo, roupas, nome - mas para você sou a mesma, com amor e sempre sua

Val

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 30/06/2016
Reeditado em 18/10/2018
Código do texto: T5683187
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.