O Olhar Cadavérico

Tinha feito todas as tarefas. Recebido o último contra-cheque. Depositado o dinheiro da pensão e recebido o elogio do chefe. Tirara notas boas na escola e fazia exercícios físicos todos os dias.

Tornara vegetariano a trintas anos - sem comer nem ovo ou beber leite. Havia ajudado no lar dos idosos e certa vez até ajudou um rapaz a se livrar do vício das drogas contribuindo mensalmente com sua internação.

Cortara o pão, abriu a garrafa de café, pegou o açucareiro e antes que pudesse mexer o açúcar no fundo da xícara tombou impávido e sem resistência alguma. Com a cabeça encostada no chão, sentiu sangue verter de seu crânio.

Era a morte que vinha de longe. Seu olhar cadavérico, suas mortalhas apodrecidas, parecia uma noiva convicta em direção ao altar. Ele era o noivo - o esposo agraciado. Procurou forças nas mãos e elas estavam fracas e inúteis. Procurou forças na sua raiva, e ela o abandonou. O ódio que poderia ter era inútil, pois ele já não era mais nada, além do noivo a espera da sua consorte.

Selaria esta união indissociável com o beijo macabro, aquele de cujo o sorriso a aniquilação que lembrava já era terrível por si. Olhou então pra si. O próprio corpo era seu terno. Ambos celebrariam com o próprio sangue a união.

Pensou na vida, mas o estava abandonando lentamente. Aquele impulso que tanto o motivou a grandes feitos e veneráveis conquistas. Aquele impulso a que tão bem serviu, o deixava sem consolo e sem resposta.

Invocou seus heróis, seus deuses e grandes feitos do passado. Mas estavam todos inertes numa lembrança morta e sem emoção. A lembrança da família parecia um porta-retrato abandonado na estante. Seu trabalho estava convertido em coisas sem sentido para uso de quem quer que fosse.

Estava ali então, pronto para o abate. Sem ter pra onde correr. Não adiantava rir, muito menos chorar. Nada, só restava esperar. Era como o gado amansado e não mais relutante. Conduzido para o encontro, sem ter mais pra onde recorrer.

Havia poucos passos daquele ente cadavérico e podre que dele se aproximava. Ele fechou os olhos e não mais que duas lágrimas lhe correram do rosto. Não era pra comover o que se aproximava dele, pois ela era incomovível, como o seu olhar mesmo dizia.

Não era pra suplicar nada, pois ela nada tinha pra oferecer, pelo contrário. Não havia escolha alguma, um músculo pra mover ou palavra pra dizer. Não havia palavra que fosse dita nem gesto que fosse feito e nem pensamento que ludibriasse.

Ele estava preparado como gado, preso, na fila, sem lado nenhum pra onde correr. Sem nada que pudesse fazer, já estava liberto. Sem dúvidas de que algo pudesse ser feito, não era um incompetente, nem um homem imaturo, sem nada que pudesse culpar, nem a si mesmo ele disse sim para a morte que se aproximava.

Ele era o nada em si mesmo. Liberto da existência de ser o que quer devesse ser.

Ela então bem na sua frente, como um cadáver animado por demônios, parecia que iria avançar sobre sua alma.

Nada havia para ela buscar, passou sobre ele como se ele nem estivesse ali. Indiferente.Ele então mexeu o açúcar no fundo da xícara e foi trabalhar.

A morte estava em toda parte. Na raiva do condutor apressado. Na distração ao atravessar a rua, nas bactérias cujos remédios ainda não podia neutralizar. No assalto seguido morte. Em alguma glândula com mau funcionamento. Numa célula ruim que se multiplicou drasticamente.

Ele sentia estes medos e o olhar da morte em todas estas coisas. Todas elas lembravam aquele olhar cadavérico. Então lembrava do nada e do seu nirvana pessoal com quem casou antes que a morte o usurpasse.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 30/06/2016
Reeditado em 13/07/2016
Código do texto: T5682792
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