Eu te avisei

Acho que só percebi a extensão de meus problemas ali, naquele instante, enquanto via o mundo desaparecer e meus sentidos se desvaneciam. Conseguia ouvir as vozes das pessoas que passavam pela rua, perto o suficiente para ouvir seus passos sem ritmo e a musica que tocava forte em alguma loja, mas não perto o suficiente para ouvirem qualquer pedido de socorro meu. Não que eu conseguisse pedir socorro naquele momento.

Minha mente vagava entre as ultimas lembranças, o assalto, o tiro, o som do carro que fugira, levando com ele os bandidos, e algumas lembranças antigas. Uma velha professora que me dera um chocolate por terminar a lição primeiro, uns garotos que tinham rido de mim, um namorado que me havia me traído. Então me lembrei dele. Ri por dentro. De algum modo minha mente tinha apagado aquelas lembranças.

Primeiro eram lembranças fortes. Uma seqüência de cores e sabores. Eu já não ouvia o som das pessoas na rua. De repente eu estava na cozinha da casa dele. Estávamos comendo um bolo que a mãe dele tinha feito. Ele me desafiava a comer mais bolo que ele, mas eu não conseguia. Meu estomago já estava doendo.

“Mais um!” –ele gritou engolindo outro pedaço, enquanto tentava forçar um minha boca.

O sangue que escapava de minhas veias levando minha consciência tingia de vermelho o chão da rua vazia. Cai ao chão. Conseguia ouvir sua voz, parecia chamar meu nome. Mas ele não estava ali.

Eu estava correndo, em meu antigo uniforme escolar, que eu odiava tanto, os livros pesados em minha mochila batiam em minhas costelas. Mas eu ria.

Ele vinha logo atrás, tentando me alcançar com sua figura alta e atrapalhada. Nós havíamos feito, havíamos jogado a bolsa da velha professora de matemática no rio. Ninguém poderia saber.

Minha bochecha estava no chão frio, machucada pela queda, mas eu não sentia mais nada. Minha vista estava apagando. Eu mal conseguia enxergar se havia chegando. Um grito, seguido de muitas vozes. Haviam me encontrado.

“Seu namorado está traindo você. ”

“Não está não. ” -Eu olhei emburrada para ele.

Chorei em seu ombro quando descobri a verdade. Ele me traia. Mas não deixou de me dizer mil vezes que havia me avisado. Boba. Boba.

Minha audição se fora. Os batimentos já eram tão esparsos. Não havia mais como me salvar.

“Eu te avisei” -a voz dele repetia continuamente, conforme os clarões de consciência diminuíam. –“Eu te avisei.”

Lucia Goethe
Enviado por Lucia Goethe em 22/06/2016
Reeditado em 22/06/2016
Código do texto: T5675423
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