Luna, a mensageira da lua
QUANDO UNS DEDOS CÁLIDOS ATRAVESSARAM OS SEUS LÁBIOS e a voz soou dizendo aquelas palavras, o adormecido então soube que era ela. E então a gritaria veio depois. Desculpa, senhor Pastor, estou saltando os detalhes pelo o resumo. Eu também estou a ver isso. Então comecemos pelo ponto inicial. Não quero que nada de importante fique de fora para o senhor comprovar a minha culpa ou inocência.
Com licença da imaginação: tente pensar em noite, lua, casa e cama. Já pensou? Não, não estou a abusar-lhe o tempo, senhor Pastor. É que andam a dizer por aí que vocês já perderam a imaginação há muito tempo. Se é ou não é, isso eu não sei. Como diz? Não me preocupar com isso? Está bem, prossigo. Dizem que era assim que tudo sucedia: em noite fria e soturna, porém cheia de estrelas e com um luar estonteante uma mulher entrava na casa. Para ser mais preciso, ela entrava no quarto do miúdo, o cujo acamado que era um paraplégico-mudo.
E sempre assim: meia hora antes do galo cantar, duas vezes ao ano, quando a lua se enchia de um cinza imponente, ela vinha, amava e ia-se sem deixar vestígios. Nenhum ninguém sabia da existência e proveniência dessa visita. Ou quase nenhum. Como sei disso? Ah... aqui na aldeia há alguma coisa que passa despercebida as gentes? Por aqui só o animal não falante pode gabar-se de não desmanchar algum segredo. Tal é a velocidade com que correm as notícias. Adiante, diria o meu Tio Tchotchopwé.
Te explico, nos tintins. Nesse ano, quando a lua se encheu de cinza de novo, os boatos começaram a se espalhar ainda mais. Eu estava indo insistir com o régulo Tchotchopwé para que ele fosse atender a um chamamento da patroa Amargarida, a mãe do Fombé. Ia na esperança de voltar acompanhado do velho. Até levava alguns escudos para apressar a vontade do régulo. Sabe como é, não sabe? Por estas bandas quem tem mais dinheiro é privilegiado nos atendimentos. O velho sempre argumentava: cabrito come onde está amarrado. Se houvesse reclamação, ele acrescentava:
– Alguma vez vocês já viram um carro andar sem diesel, hã?
Era a forma dele de servir o povo. O motivo da chamada, Pastor, era porque lá em casa a patroa Dona Amargarida estava quase a subir pelas paredes. É que ela tinha acompanhado os boatos a respeito do seu filho e queria reclamar para o régulo. Queria que o régulo acalmasse a gentania que andava a falar mal do filho.
Quando cheguei no alpendre onde ele atendia os casos foi uma moça bonita, muito bonita por acaso, que me atendeu. Essa menina, se o senhor só visse, usava um lenço que cobria um pouco do seu rosto esbelto. E o régulo? Ela notificou-me da sua ausência: não estava, havia ido para o mercado resolver um caso muito quente. E mais: informou-me que estava exatamente de baixo do embondeiro. Agradeci, mas não saí. Me vi perdido na admiração da beleza da pele lúcida e do negro oleoso que ela tinha. Permaneci a exaltar-lhe com o meu olhar não sei por quanto tempo. Comecei a gostar, sim. Ou será Deus, não criou a Eva para Adão apreciar?
Como diz? O que ela falou? A miúda não deve ter entendido nada dos meus sentimentos de dentro, senhor Pastor. Passados uns instantes, enchi o peito de ar para perguntar o nome dela. Primeiro, fez uma pausa como se tivesse se ausentado. Depois respondeu:
– Florlinda. E tu quem és?
– Sou sobrinho do Tchotchopwé – respondi. – Eu nunca te vi aqui.
– Tens razão. Vim para cá não faz nem uma semana.
– Pelo visto, vieste para trabalhar para o velho – eu disse, desconfiado.
Sim, era essa a sua missão. Ela se relatou: viera oferecida por sua família da aldeia. As coisas andavam muito difíceis para os seus pais e ela só poderia continuar seus estudos se conseguisse algum trabalho. Aí foi que Tchotchopwé se ofereceu de cuidar dela, mas ela teria que trabalhar para ele. Tudo aquilo ela contava com o rosto temperado de tristeza e esperança.
– Espero não decepcionar com os meus serviços.
Agradeci-lhe a simpatia. Prometi que a visitaria para conversar um pouco mais e quem sabe leva-la para conhecer vielas de nossa pequena vila. A levaria para conhecer um desses lugares só meus. Mas me apercebi que prometia coisas que me eram difícil de cumprir, então calei. Antes de ir-me, ruminei um novelo de resmungos e, depois, com voz rouca de quem foi ao fundo da alma, falei:
– Teu nome, Florlinda, são duas verdades. Afinal, tão flor, tão linda.
Ela não deu resposta. Pelo contrário, em riso comemorou o meu aceso poético. Exalava satisfação nos olhos, derramando-se. Eu, senhor Pastor, eu me esqueceria da minha missão e ficaria a desfrutar do rosto dela se o sacana do Funthi não me interrompesse. O quê? Não posso falar palavrões num lugar sagrado? E Deus não vai gostar? Então desculpa. É que esse gajo nunca chegou a gostar de mim. Mas me retifico: se Funthi, o outro auxiliar do régulo, não interrompesse os meus devaneios eu ficaria ali por mais tempo.
– Esta menina vai desafinar o teu juízo, rapaz. – disse ele.
Ele afinal estava no ventre do alpendre e eu não o notara. Avisava: vai lá atrás do velho Tchotchopwé antes que te venham problemas. Eu que me preocupasse com o que me trouxera e não com o que encontrara.
– A redondura das lagoas é a água que faz – disse. – A beleza dessa menina é você que lhe esboça.
– Mas, Funthi: eu nem cheguei a fazer nada com essa menina. Só busquei informações.
– Estou-lhe a dizer, miúdo.
Por isso que não há mulher bonita nem feita, há os olhos arquitetônicos de diferentes olheiros. Assim falou Funthi. E prosseguiu: Deus por acaso emite rascunhos para a humanidades? Que não. Eu que rumasse antes que me visse perdido na extensão da miúda. Com aquela explanação compreendi que não adiantava debater.
Então, sem olhar para trás, me fiz ao bazar, no tal embondeiro, executando passos longos. O andar era de embondeiro que vai arrancando raízes. Trazia comigo os dinheiros da patroa Amargarida, bolso barulhando: tchin-tchin-tchin. Um céu ensolarado me acompanhava também. Eu convoquei doces saudades dos poucos minutos que vivi há pouco. E foi abençoado por essa lembrança que cheguei ao lugar de Tchotchopwé.
Lá quando cheguei encontrei uma gentania que fazia uma mistura de palavras, todos falavam ao mesmo tempo. O populacho parecia convulso. Descobri que o assunto que se discutia era o mesmo que me trazia. Os ânimos do povo estavam acesos pelo mistério das visitações.
– Parece que o adormecido anda a receber algumas visitações mesmo – ouvi um alguém dizer.
– Desta vez vamos desmistificar este mistério – disse outro.
– Kuáá! Vocês? Eu já disse que esse assunto de visitações não-visitações são inversões da malta aqui da vila – defendeu um outro.
Enquanto uns ainda desconheciam os fatos verossímeis do caso, o mistério já dizia-se desvendado para alguns outros: o dito paraplégico se estacionou para não kulimar a terra.
– É um preguiçoso, esse.
Segundo o que ouvi, havia também uma outra inexplicação que os inquietava: o caso dos misteriosos risos.
– Mas por que é que quando as tais visitações especulativamente acontecem ele fica a rir toda hora como hiena? – perguntou um quarto.
– Parem de inventar malta, parem! – disse peremptório o homem mais idoso, era o régulo Tchotchopwé. – Sabemos que Fombé sempre foi um tipo de dentes para fora
E foi assim que as desconfianças foram pululando o ambiente. Alguns acusando o acamado de feitiçaria. Outros ainda falavam de um disfarce; que o jovem era paralitico coisa nenhuma. Que Fombé se levantava da cama e fingia ser mulher e saia pelas vielas da aldeia. Já viu? Pessoas grandes pensarem essas bobeiras mesmo? Fosse qual fosse a verdade, o grupinho acabou decidindo de fazer uma emboscada na casa de Fombé.
– Amanhã à noite nos esconderemos perto da casa do gajo para ver bem o que acontece.
Aí então a montidão começou a esvaziar-se. Eu aproveitei ir até o régulo. Perguntei-lhe: por que fariam a emboscada para casa do meu patrão? Tchotchopwé respondeu:
– É o que tem que ser feito!
Eu era crente e obediente das palavras do meu tio, senhor Pastor. Mas não posso negar que tudo aquilo me parecia um delírio. Sentindo-se infortunado por minha aparente apatia, voltou a me dizer:
– Eu sou homem. E você está na escola de ser homem. Portanto, eu que decido as coisas a serem feitas.
– Mas tio..
– Eh pá, rapaz! Já te falei que sou teu tio por folga. Sou régulo quase a tempo inteiro.
Tchotchopwé acrescentou. Eu que fosse com eles na emboscada e assunto encerado. Mencionei os escudos que a senhora lhe mandou. Assim que viu arrebatou-as da minha mão.
– Depois de nós comprovarmos os fatos falarei com a sua patroa – fechou Tchotchoupwé a conversa. – Primeiro, cumpramos nossa obrigação como bons aldeões e guardiões do bem-estar desta nobre terra.
E foi o que aconteceu. Ele me convenceu, e com a minha livre e pressionada vontade me juntei aos demais. Decidi então vigiar a casa durante na noite seguinte. Avisei a patroa que o Tio viria quando pudesse; apesar de ficar irritada com a notícia ela ficou à espera.
Chegada a noite combinada, os outros subiram as acacieiras que povoavam as ruelas. Sabe onde eu subi, Pastor? Para mim, restou apenas uma maçaniqueira , essa árvore que tem muitos picos. Tencionei me aninhar nela para não perder nada do que aconteceria. Quando subia me espetei num dos picos da maçaniqueira. Acredita, senhor Pastor? Olhei para o pé: estava a sangrar. Seria Deus a me castigar pelos meus pecados antes da hora? Não sei. Me limpei com a minha mão, e tampei o sangue com uma folha. E me posicionei calado sem chorar nem barulhar para não estragar a emboscada. Troquei a dor pela curiosidade. Afinal, não foi Deus quem disse que a dor é irmã da paciência, e a paciência da esperança? O quê? Foi Paulo? Para mim é a mesma coisa. Desculpa a contrariação, senhor Pastor, afinal o Livro Sagrado é de quem? De Paulo ou de Deus?
Continuo: ficamos todos escondidos durante a lua cheia até vermos a tal coisa (ou pessoa) que aparecia nas noites de lua cheia.
Agora que estamos no derradeiro desfecho desta confissão, deixe-me contar uma coisa que precisa saber. Faz favor, senhor Pastor, escuta devagar e com atenção esta parte, tenha paciência. Como o Tio Tchotchopwé sempre diz: a verdade tem pernas cumpridas e não poucas vezes escorrega nas mentiras. Então fique atento para o senhor julgar bem o final.
Como eu já disse, a patroa Dona Amargarida jamais acreditou bem-bem nessas crendices. Aliás, a mãe de Fombé amava tanto seu filho que protegia o gajo de qualquer incidente. Assim como a águia protege os seus filhotes debaixo das suas asas ela fazia com o cujo filho. Não queria perder a única coisa que lhe restara na vida (como ela, aos choros, fazia a questão de sublinhar). E a visita que mais temia era a da ex-noiva de Fombé, que sumiu depois do acidente de viação que vitimou Fombé. Ninguém tirava da cabeça de Amargarida que foi a tal moça a culpada de tudo. Fombé dizia ou, melhor, sinalizava que não. Está a entender, senhor Pastor?
Continuo, então. Já que eu não estava na casa, só Margarida e Fombé estavam na casa. Enquanto nós estávamos escondidos no ventre da escuridão de olhos bem abertos. Mais que abertos: acesos. Revezavam os olhares entre a porta e a janela que dava visão ao quarto do paraplégico. Estávamos nas nossas devidas posições quando de repente o mais-velho avistou um vulto passando pelo corredor da casota. Ele apitou para nós, num murmúrio:
– Atenção malta: no corredor!
Mas ninguém lhe escutou de início. Nesse então Luna foi luandando pela casa em uma direção que eu conhecia muito bem. Como diz? Não, pastor. Não é erro de português. Luandava porque o andar dela era vagaroso parecia lua em desfile no céu. Típico do nome dela.
– Maltaaaa – gritou o mais-velho num tom mais alto. Aí olhamos para o Ancião. Ele anunciou de novo: – Atenção: tem algo no corredor! Já está aí.
– Atenção, atenção – disseram os outros, em voz baixa. E prestaram atenção na casa.
Me arrepiei, um frio passou-me da alma para a carne, da carne para a pele. Afinal, a dita mulher era verídica? Respirei fundo e me concentrei na cena.
Luna entrou pela porta, sútil como brisa. A Dona Amargarida ainda dormia. Haviam bolas vermelhas, azuis e amarelas espalhadas pelo quarto. Havia também uma árvore enorme com uma estrela no alto, banhada de luzes, anunciava a época do ano em que a mensageira invadira o tempo vinda do seu tempo e de sua gente. Silenciosa aproximou-se da cama de Fombé que estava quieto com a competência de um paralítico. A recém-chegada resolveu começar a fazer um ritual que, suponho, esboçava sempre que viesse.
Como era ela, afinal? Luna, senhor Pastor, era a moça mais linda que eu já vi em toda minha vida. Ela, posso dizer, era a beleza e simpatia; inteligência e ternura, encarnadas num só gênero. Nem vou descrever muito para você não gostar dela. Ela se aproximou de Fombé, dedilhou o rosto dele e disse-lhe, num murmúrio:
– A lua é vagarosa mas atravessa o universo.
Recitou o adágio de sua gente em analogia a si mesma. E acrescentou: – E apesar de vagarosa, sempre retorna à terra que carece de luz ao anoitecer.
Falava em sussurro, sua voz parecia água corrente. Sarcasticamente, disse que o amava. O sarcasmo não estava no fato de que ela não o amava. Ela o amava sim, de verdade. Só dizia isso agora vinda de muito, muito longe. Ela que já foi de muito, muito perto.
O que aconteceu com Fombé diante de tudo aquilo, suspeito que poucas palavras consigam descrever, senhor Pastor. Veja só: primeiro, os seus olhos se revolveram, revirando-se ponta a ponta. Eles ganharam um branco muito forte como a alva. Depois, sua garganta engoliu saliva. Não a saliva de lamento ou de amarga tristeza; tampouco engoliu a sua própria vida numa recusa de viver: ele ganhava fôlego numa retaguarda para um impulso amoroso.
Quando o acamado intenta convulsionar-se, não sei de quê, uma mão cobre a sua boca numa caricia, silenciando-lhe. Percebi que corpo de Fombé estava encharcado, de um amor que nega explicações.
A pergunta “quem é?”, para Fombé já não era de importância nenhuma. Ao invés de questionar, se organizou no seu leito.
Pesem as saudades e as lembranças! Quando os dedos cálidos atravessaram os lábios do paraplégico, e a voz soou dizendo aquelas palavras, ele soube que era ela. A única mulher que Fombé amara de verdade em toda sua vida, e com ela gastara eternidades declamando poemas no luar. E já não é a mão que recobre a boca. São lábios, doces e polpudos. Sim! No instante a seguir, os dois cumpriram a vontade do amor em chamas: seus olhos palavrearam sem voz e os lábios se cumprimentaram, salivosos. Assim se demoraram como se saboreassem um tempo distante. Como diz? Como sei de tudo isso? O senhor já vai saber, Pastor, já vai saber. Como eu disse no início: não podemos saltar os detalhes pelo resumo.
É claro que o amor que Fombé reviveu não sarou sua paralisia física, mas sarou sua alma da paralisia que há alguns anos o imobilizava de viver. O mundo ganhou outras cores. Só que aconteceu uma coisa estranha: pela primeira vez estranhei minha própria voz. E disse mais para mim que para ninguém: “Desgraçado! O gajo vive de amores e nós pensando que é um coitadinho.” Meu Deus, como me envergonho dessa minha raiva e do modo como esse pensamento me tomou.
Dona Amargarida sonambulava pela sala quando viu a porta semiaberta. Inesperadamente entrou no quarto, e viu seu filho envolto de amores com a mulher que tinha sumido depois do acidente. E sabe o que ela fez? Não, o senhor não pode imaginar, mesmo a mim me custa contar. A Dona Amargarida se encheu de zangas assistindo aquelas vergonhas. Ficou tão louca por aquilo que começou a trocar as falas, a saltitar do português para o dialeto dela. Há sentimentos que a língua paterna não exprime, só a materna.
Isso não bastou. Ela também pegou uma das peças de capulana que trazia e a amarrou na sua anca, circunferênciada, e depois, senhor Pastor, iniciou cantar e dançar. Também não é bom contar essas coisas aqui, Deus pode não gostar. O quê? Posso falar? Está bem, a canção era menos ou mais assim:
A morte é um laço de Deus
A vida também é
Mas a tristeza somos nós que pescamos
O motivo daquela canção eu sei: aqui na vila sabemos muito bem que contra a morte, não há remédio. Muito-muito esse Deus que criou o homem, é como um caçador que anda por aí a apanhar os homens. Não é para falar assim? Então é como? Que vale a pena lembrar a misericórdia de Deus para com os homens? Ele não é um caçador mas um jardineiro, que cuida de suas flores, e quando elas estão belas, leva-as para Si, você diz. Para mim tanto faz, senhor Pastor, tanto faz. Das duas uma: ou morremos como caça ou murchamos como flor.
Eu, mesmo de longe, reparei que Amargarida chorava. Coitadinha da senhora, senti pena. Uma senhora viúva tão solitária em si, o miúdo passara a ser o seu único amor. Não admitia nem ninguém tomar o seu Fombé. Nem a cuja Luna, e nem ninguém.
Falou mais coisas que até dá vergonha de dizer para si, Pastor, você que é um representante das sagradas coisas. Isso prefiro guardar nos lençóis da minha memória. A confusão que Dona Amargarida fez foi tão barulhenta, tão lendária que fez vingar esta história entre as vizinhanças do bairro. E conto a si que é um acabado-de-chegar aqui na vila. Primeiro, para saber como são as histórias que tecem as vidas do nosso povo. Um ministro da religião deve conhecer as idiossincrasias e neuroses do povo com que lida. Segundo, para lhe confessar o meu maior pecado.
Sim, caro Pastor, foi por isso que vim. Eu queria matar meu patrão, Fombé. Por quê? Porque eu amei essa mensageira da lua. Eu a amei porque eu não ouvi o conselho de Funthi, e como a água faz a redondura da lagoa, o meu olhar fez romance com ela. Sim, Pastor, Luna era a Florlinda que simulou trabalho debaixo do nariz de Tchotchopwé para encontrar-se com Fombé na noite seguinte. Esperta, essa miúda. Por isso o lenço que lhe cobria metade do rosto. Que coisa, senhor Pastor! Estou a suar só de falar destas coisas.
Mas Pastor: quer saber a verdade? Planejei tudo bem planejado: eu iria tirar a vida do miúdo com a almofada dele. Mas quando chegou a hora de vestir roupa de assassino fraquejei. Não consegui tirar a vida da carcaça de Fombé. Foi então que decidi arrumar os meus calhamaços e abandonar a casa sem explicar os porquês. E foi o que fiz, essa é a verdade. Pois não aguentava o fato de viver na casa do homem que era a ponte para chegar a Florlinda ou, melhor, Luna.
Como vê, Pastor: eu não tenho nada a ver com a morte do cujo Fombé. Mesmo que Amargarida com muita amargura diga que fui eu que o asfixiei. Se tivesse sido eu, nunca teria vergonha de pedir perdão dos meus pecados a Deus. Afinal, como o senhor fala, não foi Ele que criou Adão, Eva e a todos nós? Porque não me perdoaria? Não, não estou a perguntar a si, Pastor, só estou a arrazoar-me sozinho.
Eu tive que fugir da vila, fugi para as matas feito um demônio expulso de um corpo humano. Até agora estou lá, sempre em lugares insertos e áridos. Só Deus sabe onde me aposento. De vez em quando volto para cá para voltar a ser gente e tentar explicar esta minha versão para alguém neste vasto Moçambique.
– Agora veja lá o que vais dizer a Deus sobre mim. Obrigado por me ouvir, senhor Pastor. Até nunca mais.