O ritual da comida
Comia ansiosamente. Misturava o feijão no arroz, fazendo uma verdadeira massa liguenta. Os vidros oculares não descuidavam aquilo. Não via a hora de então saborear, mas, para isso, tinha que comer todo o restante. A alface, que tanto lhe assustava normalmente, o brocólis e até o jiló (caso tivesse sido servido) não pareciam fazer diferença a ele: naquele momento, naquele dia comia tudo isso avidamente, com ferocidade. A contragosto dos pais, que o alertavam sobre os malefícios a saúde, comia freneticamente, não escondendo a vontade de comê-la.
Era um medalhão, uma verdadeira lasca de carne suculenta. Aroma delicioso do tempero inigualável que jamais provaria melhor. Todos que o conheciam já estavam acostumados ao ritual, não só com aquele prato -seu preferido, mas com qualquer refeição. Resignados, amigos e familiares desistiam de fazê-lo mudar. "É a melhor parte! Tenho que deixar pra comer no final, oras" explicava o menino. "Mas veja bem, meu filho", tentava uma tia, "Se você comer junto das outras coisas, o jantar todo terá um sabor melhor". Não ouvia, seguia seu ritmo acelerado
Chegada a tão esperada hora, o menino não se controlava. Mal fincou o garfo no bife e já levou a faca de mesa, sem corte, com força e velocidade colossais para tirar um pedaço daquela iguaria. Depois de dois ou três movimentos ligeiros escapou-lhe a preciosidade. Tanto do garfo, quanto do prato. Como se o tempo tivesse parado, o garoto viu, em quadros lentos, o levantar voo de seu alimento. Quase bateu asas, graciosamente se projetou no ar. Caiu.