Amarga lembrança de uma noite que nunca terminou

O mundo inteiro se desfazia em milhões de gotas pela janela da sala. No canal de notícias, deram o nome àquele fenômeno de “tempestade com graves pontos de alagamento na zona sul”. Eu, contudo, sabia que a natureza estava sendo compassiva com o meu flagelado espírito, e o que acontecia naquela noite é que o céu e eu caíamos juntos em prantos.

Entrei num irreversível processo de desintegração; estava em frangalhos e deixava cair pedaços meus por onde passava. Um punhado de lágrimas aqui, uma saudade acolá, um desespero noutro lugar. Desintegrado foi como você me deixou depois que foi embora.

Você nunca chegou a prometer que estaria sempre comigo, mas deixou implícito durante esses quase 11 anos que não me abandonaria por nada nesse mundo. Eu não somente acreditei, como também fiz absolutamente todos os meus planos pensando na sua felicidade.

Decidi comigo que a tempestade, os alagamentos ou o diabo que fosse não seriam empecilho para mim – eu precisava mais que tudo te visitar, mesmo sabendo que isso jamais recuperaria o passado que ficou perdido em alguma curva traiçoeira do acaso.

Peguei o carro para ganhar a rua e não sei como não ganhei a morte quando tomei da direção; conduzi o carro da mesma maneira que um ébrio conduz as próprias pernas na madrugada. Ignorei semáforos, enterrei o pé no acelerador, virei bala disparada de revólver.

Cheguei, debaixo de incessante chuva, mas você não estava mais lá. Tolice foi a minha de achar que indo até você, encontraria algum vestígio seu que suprimisse pelo menos um pouco a imensidão daquela saudade.

E a dor. A devastação que a dor de ter te perdido trazia é praticamente indescritível. As lamúrias largadas de qualquer jeito num pedaço de papel nunca poderiam fazer jus ao tormento por que tenho de passar com a sua ausência.

Será que não podemos voltar no tempo?

E ser família de novo?

Será que não podemos resgatar as longas conversas de domingo, no jardim, e o eterno dilema sobre qual animal de estimação poderíamos adotar? Um gato? Um cachorro? Quem sabe os dois?!

Será que não podemos ter de novo o Natal passado?

Você lembra do Natal passado?

Eu lembro muito bem: tínhamos paz. Que mais poderíamos querer da vida senão a satisfação de poder vivê-la?

Pois esta satisfação se foi – você levou-a embora consigo e deixou o Natal deste ano mergulhado na mais amarga das sensações.

Não vou me conformar com a sua partida. Isso foi quase um desrespeito. Por que você foi embora logo quando estávamos prestes a adotar um bichinho exatamente como você queria? Como assim você me deixou desamparado, sozinho, renegado ao mundo ermo dos infortunados?

Cento e sessenta quilômetros por hora na rodovia principal. Nenhuma sinalização de trânsito poderia me dizer o que fazer. As multas não importavam: não tinha intenção nenhuma de pagá-las. Eu tinha pressa. Meu compromisso estava acima da lei.

Então veio a raiva. Sua ida era simplesmente inaceitável e eu não estava disposto a engolir o veneno da sua partida, não sem ao menos me queixar da indigestão.

Aliás, que vida indigesta, essa que a gente vive quase sem se dar conta de que nada mais somos do que um inadmissível acúmulo de calamidades. É nessa parte que você me devolveria um olhar circunspeto, censurador, e me pediria, roubando minhas palavras com exatidão, para parar com esse “hábito grosseiro de falar o dialeto dos bêbados sem lar”. Mas insisto em minha tese de que a vida é um desperdício. Veja você que a natureza humana não aprendeu a processar perdas. Quantas coisas você já não perdeu? Não falo só de perder amigos ou entes queridos; falo sobre perder o controle, perder a razão, perder o emprego, a hora ou a oportunidade de se calar. Perder o sentido. Perder a vontade de prosseguir.

Quantas vezes você já não se perdeu?

Perdi o tino. Chovia torrencialmente e eu era a penumbra de todos os prédios daquela rua, encharcado de agonia. Bradei aos céus e Deus me respondeu rasgando as nuvens com seus altivos raios – mas você não respondia. Desafiei o céu de braços abertos, despedaçando-me em delírios, para que eu findasse nos lampejos de uma trovoada. Berrei, o coração berrando junto, e eu senti como se tivesse engolido uma mistura letal de lâminas com pregos ao leite azedo. Enfim, chorei. Chorei como chora uma criança que descobre de uma só vez que ainda vai ter centenas de motivos para chorar ainda mais durante a vida. Chorei com a sandice de um suicida a um passo de seu último salto. Chorei com a dor de uma amputação. Chorei porque você não vai voltar.

Cheguei ao imponente e arcaico portão de ferro, depois de abrir mão da prudência e rasgar avenidas encharcadas. Estava enferrujado e um enorme cadeado impedia que eu me aproximasse de seu leito. Embora eu soubesse que o cemitério guardava nada mais do que a abstração da sua memória, eu estava tomado pelo ímpeto de derrubar aquelas grades infernais só para chegar perto do que restou de você – uma lápide modesta, o último lugar onde você (quase) esteve.

É tempo de dizer – ainda que seja tarde demais, ainda que você não possa mais me escutar, eu me recuso a guardar estas palavras só para mim: filha, hoje você faria 11 aninhos e eu já tinha comprado aquele vestido vermelho que você tanto gostou; pedi para a moça da loja embrulhar para presente com esmero, com um papel prateado e uma caprichosa fita da mesma cor do vestido.

Mas a bestialidade em forma humana cruzou o seu caminho, justamente no único dia que não pude te buscar no colégio e você se aventurou a voltar sozinha para casa. Levaram-lhe a mochila, a virgindade e a oportunidade de fazer aniversário hoje. Dois tiros no peito. Da mesma cor do vestido.

Seu primeiro e único pecado foi ter me deixado. Parece que já faz tanto tempo desde a semana passada. Foi na última terça que você brigou com sua mãe, não foi? Por causa de uma meia sua que estava sem par, veja só.

A imperdoável traição que Deus nos reserva é a morte daqueles que amamos, pois ao ceifar a vida de um, automaticamente serão ceifadas as vidas dos que estão ao redor. Somos dominós enfileirados de pé, apenas esperando a morte derrubar a primeira peça. Estamos no meio de um tabuleiro do jogo mais traiçoeiro de todos. Somos traídos pelo acaso, traídos por amar demais. Deus me traiu, filha.

Então é assim? Tudo acaba de repente e estamos fadados a, impotentes, aceitar os fatos?

A chuva parou. Derrotado, voltei ao carro e dirigi para longe da vida.

Lia Kevorkian
Enviado por Lia Kevorkian em 26/05/2016
Código do texto: T5648040
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