Mil e duas faces de Maria Sílvia Campoamor Sales, née Valdilene dos Santos (Hélio Campanella, cooperativado da 'T@xi')

(Hélio Campanella, cooperativado da 'T@xi')

"Na primeira corrida, eu a peguei junto com um homem de meia idade, no Passeio das Limeiras. Durante quase toda a viagem, uns vinte minutos bem longos, ela deu um trato no cara, entende?, e deve ter sido dos bons, pelos gemidos. Depois ficou com os olhos pregados no retrovisor, e toda vez que eu olhava, lá estava aquela luz... No começo a coisa me incomodou, é lógico, mas não era olhar de desafio, não, então, me acalmei. Nem achei estranho quando o sujeito desceu sozinho, num prédio de rico lá pelos lados do Santa Fé, mas sem pagar? Ela me acenou para continuar a dirigir, após mostrar três cédulas que cobririam a despesa toda, inclusive chegar ao novo endereço que informou, no lado oposto da cidade. Não, não vou dizer onde a deixei, não... Antes de se despedir pediu contato da empresa e perguntou se podia solicitar especificamente pelo meu carro, quando precisasse. Não vi problema. Aliás, vejo tanta coisa, no carro e fora dele, que já não estranho quase nada! Na segunda vez também tinha companhia, uma moça alta e morena, que chorava feito chuva fina. Apanhei-as ao fim duma tarde abafada, naquele cemitério antigo vizinho ao Manicômio Municipal. Ela me pediu para passear pela orla, bem devagar, enquanto consolava a moça com nada mais que os braços e os ouvidos, enquanto a outra contava uma história que, se eu soubesse escrever, ficaria rico. Depois de deixar a moça triste em casa, pediu-me para levá-la de volta ao cemitério: queria 'sentir a vida'. 'Já anoiteceu, passarinho nenhum canta mais', eu disse. Ela sorriu: 'A vida é silêncio'. Nunca esqueci isso. Na maior parte das corridas, conversávamos sobre o clima, o trânsito, a necessidade de faixas exclusivas para ônibus e bicicletas, a semana - e o 'findi', que terminava ou se aproximava... Uma vez levei-a e mais três amigos a Bom Pouso e durante uma hora e meia ouvi uma das mais fascinantes conversas que ouvidos humanos poderiam apreciar: filosofia e palavrões, política e palavrões, fofocas das quentes, opiniões radicais sobre moda, música, cinema e outras artes. Minto: ouvimos, porque ela pouco falou, e nem tenho certeza sobre o quê. Chegamos na estância com o astral meio eufórico meio desolado dos que sabem ser a viagem mais prazerosa que o destino. E teve o dia em que ela disse logo que não tinha um tostão furado, sugerindo pagar a corrida de outra forma. Como falei, já vi muita coisa e não sou criança: era um teste. Passei neste, também. Gemido, choro, alegria - é a vida, mas só às vezes. Vida é silêncio, principalmente agora."

Gina Girão
Enviado por Gina Girão em 09/05/2016
Reeditado em 18/10/2018
Código do texto: T5630067
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