...ELA ENTENDEU

Sentada na cama, em uma manhã morna de abril, a menina observa o pai adentrar ao quarto e inicia o diálogo:

- Pai, o senhor escondeu minhas chinelas!

- O quê? Elas estão aí na sua frente.

Surpreso com tal atitude, o homem aponta o local próximo aos pés da garota. Ela, de olhar quebrado pelo despertar, troveja-lhe:

- Eu vi! O senhor escondeu minhas chinelas e ficou rindo enquanto eu procurava.

Ele franze o cenho e meneia a cabeça.

– Filha, você acordou a pouco e eu entrei neste quarto agora! Não mexi em suas coisas.

A garotinha com mãos postas sobre o regaço tremula os lábios e dispara:

- Eu estava dormindo, mas vi na minha cabeça o senhor me fazendo de boba.

Seus olhos se orvalham...

O pai sorrindo, senta-se ao lado. Em um átimo, a garota empertiga o rosto e murmura baixinho:

- E o pai continua rindo de mim.

Ele a toca no ombro e diz: - Minha filha, você teve um sonho! O que você viu não foi real. Só aconteceu dentro da sua cabeça.

A lágrima tímida e transparente desborda do olho esquerdo, rola pela face e forma um filete cristalino sobre a bochecha da garotinha. Desconfiada, olha para o calçado, esquadrinha todo o vestíbulo e diz: - Eu estava dormindo no sofá da sala quando o senhor fez isso.

O homem pondera, inclina o rosto e a encara: - Viu aí? Foi só na sua imaginação. De verdade, você se deitou aqui ontem à noite e não dormiu no sofá. Lembra-se que eu trouxe a boneca de pano esquecida na varanda?

- Lembro.

- Então! Isso é o sonho. Você sonhou. Acontece com todos nós ao dormir.

Soraia balança a cabeça em sinal de compreensão, calça as sandálias, levanta-se e segue para o banheiro. O homem respira profundamente e fala para si: - Que bom! Ela entendeu.

À noite, antes de se deitar, o pai espia a filha adormecida. A imagem inusitada lhe surpreende: a filhinha repousa em companhia das chinelas amarradas atabalhoadamente por um barbante unindo os dois cabrestos. Sobre a cama, a ponta do fio é agarrada pela mão da menina.

Em breve suspiro, sorri pensativo: “É... ela entendeu”.

Texto selecionado para compor a coletânea de contos no concurso literário promovido pelo Ideal Clube em 2014