Apontamentos para um romance - II

Naquele domingo – por acaso te lembras? – voltamos no final da tarde. Eu queria ter saído mais cedo, mas tu arrumaste inúmeras pequenas coisas para fazer, postergando a volta para a cidade. Preferi não reclamar: também eu gostava muito da nossa casinha, pela sensação de liberdade e despojamento que nos proporcionava. De vez em quando pernoitávamos lá, mas nesse dia não era possível, ou, pelo menos, não aconselhável, pois uma consulta médica nos esperava às nove da manhã de segunda-feira.

Um céu de um azul muito puro emoldurava o final da tarde, enquanto cortávamos os campos regados pelas últimas chuvas. Tu estavas concentrado, mais concentrado do que costumavas estar naquela circunstância. Puxei a sacola de bergamotas (com que prazer tu as colheste direto do pé!), descasquei uma e te ofereci um gomo. Num gesto de mão recusaste. Não, preferias deixar isso para quando chegássemos. Uma ponta de sorriso iluminou o teu rosto, mas logo retraiu-se. Seguimos em silêncio. Meu olhar se dirigia ao longe, esquecido nas fronteiras entre o horizonte e aquela campina que se estendia bem além das construções da beira de estrada.

No fundo, apesar dos meus devaneios, eu terminava por focar em ti meus pensamentos. O professor... eu não podia deixar de me enternecer diante da lembrança, para mim ainda fresca, dos dias que iniciaram a nossa relação, aqueles indecisos dias em que os olhares iam e vinham, as palavras ora revelavam ora escamoteavam os seus significados, nós nos entregávamos a uma espécie de brinquedo de esconde-esconde. E, agora, tu dirigias sério, a boca abrindo-se num longo bocejo. Fiquei atenta à tua expressão, ao bocejar que se repetia, tive vontade de me oferecer para dirigir, quem sabe preferisses descansar, deixar de lado a concentração que exigia o volante, só abrir os olhos quando o carro estacionasse na garagem do edifício.

Mas, sabia que não aceitarias, sempre foste muito cioso da tua independência (embora, tenho de reconhecer, não fosses autoritário): gostavas de estar no comando do carro, assim como fazias questão de estar no comando da tua própria vida.

Quieta no meu canto, fixei-me no entorno da estrada: estranhamente, naquela tarde, trocamos poucas palavras.

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