Alguém e todos !
Era uma viagem comum e de rotina, a mesma estrada, o mesmo cavalo, destino idêntico ao de tantas outras vezes nos últimos anos – um sinal prévio de reconhecimento, a troca de envelopes e uma volta sem maiores transtornos.
Entretanto, hoje havia algo diferente, talvez o modo como o remetente das cartas o tivesse olhado (muito mais a maneira de como não o olhara), percebera uma certa apreensão quase carinhosa, acentuada por palavras nunca ditas antes: - Sua missão se finda e se inicia, vá em paz !
E aquele silêncio noturno do caminho não deixava o pensamento se esquecer da vida, como ele gostava de fazer ao se imaginar em uma luta romântica entre o Bem e o Mal ou conquistando uma linda donzela, mas hoje nada disso vinha em seu socorro, ele só pensava que tudo um dia terminaria e ninguém, ninguém mesmo, sabe em que momento a vela vira lembrança.
Parado diante da torre agora, imponente dentro da enorme propriedade, sentiu na janela superior um movimento rápido e logo seu contato usual encontrou-o à porta, recebeu a mensagem e ali mesmo a leu (outra coisa inédita), não sorriu e o despachou sem resposta, com um olhar firme porém meigo - pensou consigo: – Parece que estou carente !
Nunca soubera do que se tratava essa troca de correspondências, nunca perguntara ou quisera saber, ele tinha sua tarefa e a realizava bem, isso bastava para sua mente e corpo, uma vez que recebia um justo salário por seu trabalho não lhe interessava o conteúdo, apenas o transporte, a travessia, sua origem e seu destino.
Quem iniciou o trato fora o remetente da vila, que o procurou, sondou e o aprovou - quem sabe sua falta de imaginação tenha sido um fator determinante para o contrato, onde só havia duas cláusulas: - Não pedir demissão e não contar a ninguém o que fazia !
Com seu contratante jamais trocou mais que 03, 05 ou 07 palavras além dos cumprimentos formais, jamais entrou em sua casa, sua mansão, seu castelo, nem pensou em fazê-lo um dia, não havia motivos para isso ( não se demitir e não falar, simples demais).
O destinatário das cartas muito menos lhe parecia digno de nota, era entregar e receber, não sabia sequer seu nome ou o que representava.
Em uma dessas viagens somente, o envelope caiu ao chão e se molhou na lama de uma poça, para secá-lo esquentou ao calor de uma pequena fogueira, momento em que julgou ter lido: O fim se aproxima, não descuidemos... Só isso ! Nem o preocupou.
Durante esse trabalho singular, construiu família, adquiriu bens, foi à Igreja, amou e pecou, chorou como poucos, ajudou quando podia, prejudicou a uns e outros por motivos sérios e outros fúteis, fez amizades das quais nem se lembrava mais, mentiu e disse verdades, estudou e aprendeu que o mundo é enorme demais mas as pessoas menores ainda, conheceu a morte de entes queridos, desejou a de outros, brigou contra injustiças, praticou algumas, teve filhos e mulheres, temeu a Deus e ao Diabo e jurou vingança contra ambos, reconciliou-se com o Divino, julgou-se mal e foi julgado bom por seus pares, entendeu que nada sabia, porém continuava seu caminho - Viveu como tantos do seu mundo.
Naquela noite específica cheia de ineditismos, ao voltar da Torre, estava inquieto - uma desesperança maior que a sela do cavalo, as estrelas pareciam, em sua mente, observar-lhe os passos, estava triste após tanto tempo sem saber qual seria seu papel no mundo e na delicada relação dos dias, sentia-se inútil em sua pequena utilidade.
Assim pensando, dobrou a última curva antes da vila onde morava e para sua surpresa não a viu, em seu lugar um túnel enorme e negro, não lhe deixando escapatória a não ser adentrá-lo, isso lhe causou um certo desconforto mas continuou seu caminho, como sempre fizera antes, até porque lá na frente daquele comprido canal algo reluzia e então, como seu querido Apolino se recusou a seguir, apeou de sua montaria e entrou.
À medida que avançava sentia um frescor inesgotável, como se as esperanças fossem recarregadas, quase podia tocar a sensação de força, porém e ao mesmo tempo, notara uma certa dificuldade em se lembrar de onde estava vindo ou porque estava ali, viu em sua mente os olhos sorridentes de seus filhos, o sorriso do amor de sua vida e os braços de sua mãe a lhe embalarem, era criança novamente - com o coração repleto de saudade correu no campo onde havia crescido, brincou com seus irmãos e dormiu aconchegado ao colo de seu pai numa tarde tranquila de há muito tempo atrás.
Quando o túnel chegou ao fim, uma nova criança nasceu para um mundo totalmente desconhecido - ouviu-se na sala o primeiro choro de uma série de tantos por vir.