A dívida

- Eu pago.

- Senhor, procuramos no sistema e verificamos que não há nenhuma dívida em seu nome.

-Não é possível! Vocês digitaram corretamente? Se escreve assim ó – e mostrou a carteira de identidade.

- Não, senhor, não consta nada mesmo.

- Mas eu pago... eu quero pagar!

- O que você quer pagar?

- A minha dívida!

- Veja aqui na tela, não há nenhum resultado em seu nome. Significa que você não está devendo nada, pelo menos não em nossa loja.

Apesar do estranhamento que a situação lhe causara, a atendente falou com naturalidade, já estava habituada a repetir informações ao longo do dia. O fato é que nós seres humanos às vezes falamos mais do que era nossa intenção, às vezes pretendemos dizer palavras que encerrem o assunto, mas acabamos abrindo portas e janelas para dúvidas e esperanças. Talvez, se pudéssemos desconfiar das consequências de nossas palavras, se pudéssemos suspeitar as múltiplas formas que elas podem adquirir com o passar do tempo, refletíssemos mais antes de proferir algumas frases que nos soam tão banais e sem importância.

Foi o que sucedeu com a última frase da atendente, que despertou uma esperança no olhar do pobre homem. E com pobre, neste caso, nos referimos não à falta de bens ou dinheiro, pois ainda que não fosse rico, também nunca lhe faltara comida na mesa e até vivia com certas comodidades. Pobres também são aqueles que tendo o que dar não encontram quem receba a oferta.

Saiu da loja pensativo, refletindo que podia ter se enganado, afinal a idade já há um bom tempo começara a debilitar o corpo, talvez fosse esse o primeiro indício de que a velhice agora alcançara também a sua mente. Olhou para os lados, avaliando os outros estabelecimentos da rua. Além da loja de roupas, da qual tinha acabado de sair, havia mais duas, e também uma loja de calçados, uma de móveis e um banco. Pensou consigo que a dívida não poderia ser no banco, pois nunca em sua vida pegara nenhum empréstimo. Para ser mais preciso, nunca havia adquirido nada que não fosse pago à vista, com exceção, é claro, da dívida da qual neste momento não conseguia se lembrar.

Aos que conhecendo a história do velho homem foram logo pensando que se tratava do tipo de gente que compra em todos os lugares e depois nem se lembra onde deve, vemos aí que devemos poupar-lhe a injustiça, tão honesto sempre procurou ser. Tal espécie de personalidade é preciso ter em consideração, principalmente quando tentamos compreender a angústia que lhe foi tomando ao constatar, loja após loja, que não possuía dívida em nenhuma delas. E por mais estranho que pareça, nem mesmo os mais gananciosos tiveram coragem de dizer-lhe que sim, que ali devia, pois o desespero foi se acentuando de tal modo em sua cara que fez parecer que aquele dinheiro viria com uma grande carga de sofrimento.

Pois os seres humanos, como bem se sabe, desde sempre foram muito supersticiosos, e mesmo os mais incrédulos já se viram pensando vez ou outra “quando a esmola é demais o santo desconfia”. Nenhum dos potenciais recebedores da dívida, lembrou-se, no entanto, de questionar ao velho qual era o valor que pretendia pagar. Se o tivessem feito, talvez a tentação vencesse a superstição, de modo que o ditado teria que ser reescrito, vindo a comunicar que quando a esmola é demais ninguém é santo. Assim, por força do acaso ou do destino, acabou o velho seguindo sua jornada.

Após visitar todas as lojas daquela rua, daquela quadra, começou a percorrer bairros mais distantes do centro, e foi parar em alguns que sua memória interna dizia não conhecer, o que nessa altura já não era impedimento lógico suficiente para aplacar a dúvida que assolava o peito, tampouco para fazê-lo desistir da sua peregrinação.

Foi visitar até o prostíbulo da cidade, lugar que qualquer um que o conhecesse poderia jurar que nunca havia estado. Qualquer um, inclusive, que o visse entrando no local tão envergonhado de si mesmo, poderia desconfiar que era a primeira vez que colocava os pés num lugar assim. Qualquer um, menos ele mesmo é claro, tomado nesse momento por uma busca que o levava a duvidar de sua memória e até mesmo da pessoa que acreditava ter sido até então.

Foi assim tornando-se mais conhecido naquela pequena cidade, e em três dias percorrendo rua por rua, de recusa em recusa, não conseguiu pagar sua dívida. Saiu cabisbaixo da última loja, sentindo-se perdido, sem ter para onde ir, e com medo por ter a sensação de já não poder confiar em sua memória. E se de repente esqueço onde moro? E se me esqueço do meu nome? E se... O fluxo dos seus pensamentos foi interrompido pela voz de duas mulheres, que estavam cochichando enquanto passava.

-Coitado, mudou tanto em tão pouco tempo, esses dias mesmo o vi lá no banco, e não estava assim, agora anda por aí como um louco.

Estranho sentimento tomou o peito do homem. Não tanto por terem lhe chamado de louco, mas de repente por sentir-se mesmo louco, acaso fosse verdade que estivera no banco recentemente, lugar em que, até onde sabia, há muito tempo não havia estado.

Entrou no banco e pediu para falar com o gerente. Pediram que esperasse um pouco, pois outro cliente estava sendo atendido neste momento. Após algum tempo parado em pé, decidiu sentar-se numa poltrona preta que por ali se encontrava, pois o corpo estava reclamando das andanças que acumulara naqueles três dias. O corpo descansava, mas o seu espírito continuava andando em círculos.

Quando o gerente o chamou, alisou as palavras, tentando esconder a emoção que sentia:

- Boa tarde, vim aqui para saber se estou devendo algo para vocês.

- Ah sim, lembro-me do senhor, peço desculpas caso não tenha sido claro na semana passada, o dinheiro que o senhor pegou emprestado pode ser pago no próximo mês.

-Desculpas peço eu, não queria ter que lhe perguntar o óbvio.

-Não tem problema, pode perguntar o que precisar, estamos aqui para isso. Qual a sua dúvida? São os juros? O prazo de pagamento?

- Não, não... então eu estive aqui mesmo semana passada?

Vários pensamentos correram pela cabeça do gerente ao ouvir isso. Será que o velho teria problemas de memória ou seria simplesmente louco? Seria um novo tipo de golpe, uma tentativa de não pagar o empréstimo? Semana passada parecia tão saudável, tão honesto... Durante alguns segundos o gerente permaneceu boquiaberto sem perceber, depois foi prontamente pegar os papéis e mostrou ao velho sua assinatura.

- Sim, compreendo, não há dúvida de que aqui estive. Faço questão de pagar-lhes hoje, com todos os juros. No entanto, gostaria de saber, cheguei a comentar para que queria o dinheiro?

-Se bem me lembro, o senhor disse que precisava do dinheiro para pagar uma dívida – disse o gerente, com a certeza de estar ajudando.

O fato é que nós seres humanos às vezes falamos mais do que queremos dizer, e quando supomos estar fechando portas, estamos abrindo janelas.

fevereiro/2016

Franciele Bach
Enviado por Franciele Bach em 21/04/2016
Reeditado em 23/04/2016
Código do texto: T5611740
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