A Mortalha

A chuva solapava a vidraça antiga. Pelos lumes da rua era possível calcular a velocidade do vento a sacudir os pingos livres. De súbito, um raio cortou o céu, cortou a energia elétrica e um estrondo respeitoso rasgou o silêncio. Ela olhava na janela e pulou, quase caindo ao tropeçar na cadeira de balanço de palha.

-Esconjuro, Deus! Que impetuosidade!, criticou Ana a tempestade.

Na escuridão da ausência da eletricidade foi se guiando pelos corredores até, tateando, encontrar os fósforos e as velas estrategicamente preparadas para o eventual problema. Riscou o palito e a claridade opaca oscilou até a vela aceitar aquele afago. Contornou o corredor do casarão até chegar a antiga sala. Móveis antigos da avó. Um tapete de couro de boi e apetrecho de outras épocas. Um oratório povoado por toda sorte de santos. Uma televisão antiga e livros num canto qualquer. Jacinto, um rapazola de 13 anos, sobrinho predileto se aproximou lívido.

-Tia, isso foi trovão? De madrugada, quem já viu? Questionou o bom garoto

-Jacinto, os tempos estão estranhos, sabe. Respondeu Ana. Essa chuvarada não era esperada. E se vai logo a energia! Que coisa!

Mas, por quê não ficou na cama, peralta?

-Oxe, exclamou, Jacinto. Com um barulho desses, até as almas despertaram. Mas, tia, a senhora estava na sala faz tempo?

-Não interessa! Respondeu de pronto Ana. Senta aqui perto. Não quero ficar sozinha nessa fúria dos céus!

Ana era filha única de Amália, uma boa senhora que fazia doces por encomenda, velha conhecida na cidade. Moravam num casarão antigo, com móveis que denunciavam passado. O sobrinho viera de Coimbra passar as férias de final de ano. Jacinto. O prodigioso Jacinto! Futuro senhor advogado da família

-Sabe Jacinto, rompeu o silêncio a tia, essas tempestades na verdade são boas para a terra. Você vai ver que o céu vai amanhecer mais limpo, o ar puro e cheio de aromas agradáveis. Temo esse vento, confesso, mas precisa, faz parte!

-Sei disso, tia. Respondeu Jacinto. Ainda bem que só deu um trovão!

Agora a chuva perdia um pouco a agressividade. A conversa familiar se desenvolveu em trivialidades até quando a luz elétrica voltou. Jacinto, com delicadeza apagou a vela e beijou ternamente o rosto da tia que adormecera. Buscou uma manta e a cobriu. Retornou para o quarto com sensação de calma beatífica emanada da senhora tia.

De fato, a luz do sol iluminou a casa e o céu parecia mais azul naquele dia. Logo mais seria o velório de Ana, que havia expirado no fim da madrugada, no alento da manta certeira.

José Batista Neto.

JBNeto
Enviado por JBNeto em 20/04/2016
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