"O amor deve ser praticado para que possa espandir-se!"
A ENTIDADE
José Florêncio Pedroso Filho nasceu nos recentes minutos do dia primeiro de janeiro do ano de 1930. Logo após a primeira respirada, caso sua consciência lhe permitisse julgaria, pelo foguetório, que se tratava de uma grande comemoração por causa de sua chegada neste mundo. Porém, logo notaria de que tudo aquilo nada lhe tocava. Pela cara de pena da parteira e pelo olhar assustado de um cachorro sarnento e de orelhas caídas, que mal se via por debaixo de uma velha e desgastada alcatifa que se esparramava em um canto do contíguo quarto.
A parteira fora chamada às pressas por conta das inesperadas contrações e o parto dera-lhe muito trabalho, apesar de tratar-se de uma mulher forte, de farta cintura e longa experiência no ofício. Com seu costumeiro e alvíssimo pano de algodão, decerto oriundo de algum saco de açúcar, amarrado à cabeça, passou da piedade à angústia ao perceber que a mãe, exânime, parecia não respirar. Mesmo com as lágrimas contidas que a profissão exigia-lhe pensou de chofre de como seria o destino do recém nascido, uma vez que perdera a conta de quantos partos havia feito àquela mulher. Assim que, quase por instinto esqueceu-se da criança sobre a cama e abaixou-se sobre o peito da humilde senhora. Ao encostar um ouvido em seu coração certificou-se da tragédia: a mulher estava morta. Apesar do parto prematuro a criança milagrosamente nascera perfeita, mas a mãe não resistira ao infarto placentário causado, talvez, por uma corioamnionite não tratada em tempo hábil.
Dona Joana, a parteira, logo se recompôs e tratou de exercer sua última tarefa naquela madrugada de ano novo: dar a triste e difícil notícia ao seu Florêncio, esposo da falecida. Ele aguardava sentado em uma cadeira com o rosto abaixado entre às mãos, pensativo, ansioso, na outra peça da meia água, a qual servia de cozinha e sala. Ao ser informado do acontecido o homem levantou-se como um raio e adentrou ao quarto. Aos prantos debruçou-se sobre a cama inquinada de vermelho e de fluido amniótico sem saber ao certo se abraçava ao filho recém nascido ou à falecida esposa em decúbito dorsal.
Bem, como se sabe o tempo é a melhor botica onde se encontram os melhores tônicos para a melancolia. E assim foi que seu Florêncio aliviou as dores da tristeza pela perda da companheira, a qual lhes dera tantos filhos, mas que a pobreza, infelizmente, tomou-lhes. Ou seja, foram obrigados a dispô-los para que outras famílias os adotassem a fim de que tivessem um futuro melhor. Entretanto, seu Florêncio prometera a si mesmo que com este último, o caçula, seria diferente. Ele mesmo cuidaria custasse o que custasse.
Passaram-se oito anos, desde que Zezinho nasceu e a pobreza continuava a mesma. Os outros nove filhos de seu Florêncio raramente o visitavam, mas em nada o ajudavam. O trabalho era escasso, ainda mais para seu Florêncio que vivia de bicos aqui e acolá, pois não tinha estudo e nem uma profissão definida. Morava na mesma casinha, ele e Zezinho, porque o enlutado seu Florêncio ainda permanecia viúvo por conta do inexaurível amor que nutria pela finada esposa, dona Matilde Quincas Pedroso.
Zezinho foi matriculado com um ano de atraso no Grupo Escolar Arthur Bernardes, única escola primária da cidade onde estudavam ricos e pobres. Além dos excelentes professores, Zezinho destacava-se na escola por sua inteligência e sagacidade. Seu único uniforme, um guarda-pó, deveria ser branco, mas era amarelado pela falta de lavagem adequada, porque na maioria das vezes era ele mesmo quem o lavava. As ruas da cidadezinha eram poeirentas e ele sujava os pés pelos buracos que havia na sola da velha conga de cor azul desbotado. De tal maneira que, havia sempre uma preocupação a mais que era: o cuidado em não levantar os pés para que os outros alunos não fizessem troça dos furos de sua extrema pobreza.
Para piorar, Zezinho sentia um verdadeiro amor pela menina mais bonita da sala. Ela era realmente uma fada, daquelas que ele visualizava mentalmente quando lia os livros de contos infantis, na biblioteca da escola. Seu nome era moderno para a época: Tamara. Sua tez era muita branca, em cujo rosto e próximos de seus grandes olhos diáfanos podia-se perceber minúsculos vasos azulados. Seus cabelos eram longos e de um castanho dourado que, quando trançados, deixavam-na ainda mais bela. Zezinho por várias vezes se pegava distraído e hipnotizado por aquele amor inalcançável.
A menina era mais nova que Zezinho e pertencia a uma família abastada e tradicional da cidade, tanto que a avenida de terra, defronte à escola, levava o nome de seu avô paterno. Por outro lado, Zezinho, em várias ocasiões, esquecia o platônico amor e chorava quando ninguém o via: culpava-se pela morte de sua mãe. Sabia da história contada por seu pai e sentia-se o responsável por sua materna orfandade.
Zezinho terminou o curso primário que se estendia por cinco anos e ganhou, por conta das altas notas, um curso preparatório de admissão ao ginásio, uma espécie de vestibular destes dias, pois não havia ginásio para todos. Logo, quem possuía um diploma ginasial na época era considerado um "doutor".
Nessa altura da vida o menino prodígio contava com treze anos de idade e havia perdido o contato com o amor infantil, pois a família havia mudado para a capital onde possivelmente Tamara deveria estar continuando seus estudos.
Seu Florêncio, desgostoso, começou a beber e tornou-se alcoólatra e a pobreza piorou. Conseqüentemente a fome começou a bater à porta do casebre de Zezinho. Para piorar o que já estava ruim, seu Florêncio faleceu vitimado por complicações cardíacas. Era a gota d’água que faltava e Zezinho obrigou-se a sair de casa, uma vez que morava com seu pai de favor e o proprietário pedira a desocupação do imóvel. Fez, então, artesanalmente, uma caixa de engraxar sapatos e começou a ganhar seu sustento trabalhando durante o dia. Quando a noite chegava seu quarto era uma lataria qualquer, de carro desmontado, depositada em um pátio de ferro velho. Mas, continuou estudando e aos dezesseis anos formou-se no ginásio.
Recebeu seu orgulhoso diploma sozinho, sem ninguém para bater-lhe palma. Enquanto seus colegas de turma estavam rodeados de parentes e amigos. Este fato deixou-lhe um pouco triste, mas não o abateu. Pois, em seguida recebeu uma oferta de emprego fixo, como lavador de pratos em um restaurante. Porém, em poucos meses de trabalho foi promovido a barman. A vida começou a melhorar, pois o proprietário do restaurante ofereceu-lhe uma cama que havia em um depósito contiguo ao salão de refeições, para que pudesse passar as noites, descansar nos dias de folga e acomodar seus minguados pertences.
Aos dezessete anos apresentou-se ao Exército, mas foi dispensado por excesso de contingente. Fato que o deixou alegre, pois estava satisfeito com o emprego e não pretendia abandoná-lo. Porém, não pode continuar os estudos e parou no tempo, neste particular. Até que aos dezoito anos foi apresentado pela primeira vez, pelo dono do Restaurante, à corrupção.
Nesse dia seu Francisco, ou Chico, como era conhecido chamou Zezinho e deu-lhe uma ordem para que “desarmasse o gato da água porque os 'homens' viriam fazer a leitura do hidrômetro”. Então ele perguntou: - “Seu Chico, como é isso desarmar o gato da água?” Ele respondeu: - “anda logo, menino! Vai até ao medidor de água e retire um arame fino que lá está afixado.” E assim foi feito. Desse dia em diante Zezinho, como barman, discretamente passou a prestar mais atenção na conversa dos clientes do restaurante, principalmente daqueles que se sentavam nas banquetas do bar para beber e contar vantagem.
Depois de algumas doses a conversa fluía. Se o assunto não fosse sobre mulheres ou política era de como ganhar dinheiro fácil. E no último caso Zezinho ouvia de tudo: estelionato, sonegação, roubo, contrabando, suborno, etc. Chegou a um ponto que Zezinho se julgava um idiota, um anormal. Pois, trabalhava como cavalo para ganhar uma ninharia por mês, enquanto ouvia tantas histórias de sucesso financeiro contadas por aqueles homens que mais passavam o tempo bebendo, comendo e tramando do que trabalhando. Pelo que ouvia existia gente de todos os níveis naquele meio, como funcionários públicos, empresários, profissionais liberais, professores, conservadores e democratas. Os mesmos que em muitas ocasiões reuniam-se para reclamar dos altos impostos, dos índices inflacionários, da falta de escola, de segurança, de saúde pública, enfim, da corrupção que campeava o país.
Zé Florêncio, como o rapaz passou a ser chamado, sentia uma profunda necessidade de aconselhar-se sobre tudo aquilo, mas não tinha uma família, um lar de verdade ou alguém muito próximo para lamentar a falta de oportunidade de sucesso. Como a dos fregueses de seu Chico, por exemplo. Quando a esposa do patrão visitava o restaurante com o filho pequeno agarrado às mãos achava tudo muito estranho: desde os carinhos até os puxões de orelha que a mulher aplicava ao menino, quando este corria entre as mesas. Pois, Zé Florêncio não tivera a oportunidade de saber e entender como era o verdadeiro amor de mãe, que a fatalidade havia-lhe subtraído.
De maneira, que Zé Florêncio foi deixando-se levar pela vida e carregando o sonho dentro de si de ficar rico sem trabalhar. Foi trabalhando aqui e ali e maquinando sempre alguma tramoia, mas por sorte, da qual era inconsciente, não obtinha sucesso. Por vezes contribuía para a Previdência Social, mas a maioria do tempo não o fazia. Até nem por que queria, mas pela condição de trabalhos temporários que exercia, como taxista, garçom e vendedor, por exemplo. Por fim a estabilidade chegou como barnabé municipal, cujo emprego conseguiu por influência de um velho freguês do seu Chico que por Zé Florêncio sentia algum tipo de admiração. No entanto, envelheceu e aposentou-se com um mísero vencimento, sem, obviamente, ter realizado seu sonho de juventude: o de ficar rico facilmente ou sem esforço.
Mesmo na velhice e morando em uma pensão manteve-se solteiro, solitário e amargo. Praticamente não tinha amigos, pois era muito rabugento e retrógrado para os gostos da modernidade. No entanto, oportunidade de casamento não lhe havia faltado ao longo da vida, porque Zé Prudêncio era um homem bem apessoado e dentro de suas possibilidades mantinha-se bem alinhado. Entretanto, carregava consigo uma incapacidade de amar tão grande que a repulsa era mutua e imediata com qualquer candidata que se aproximasse com tal interesse. Isso ocorria talvez por falta de prática em amar ou por sequela do amor intenso e nem percebido pela garotinha dos tempos de Grupo Escolar. Pois, o amor deve ser praticado para que possa expandir-se, do mesmo jeito que se praticou o ódio ao longo da história, e até demais, nos dias atuais.
Seu José Florêncio Pedroso Filho, em conseqüência da sofrida vida que levava e ter passado por vários momentos depressivos e de ansiedade, muitas vezes transparecia-lhe comprometimento cognitivo leve, como os esquecimentos freqüentes, arautos de doenças degenerativas graves, como o Alzheimer, por exemplo. Assim que, seu Zé Florêncio foi levado ao médico da Saúde Pública, pela senhora, dona da pensão onde morava. Excluída a consulta, os remédios tinham que ser pagos e custava caro o bastante diante da mísera aposentadoria que recebia. Passado certo tempo a miséria em que vivia chegou a um ponto tal, que um pessoal da municipalidade esteve lhe visitando, possivelmente por denúncia de algum vizinho de pensão. Os homens do governo municipal convenceram-lhe em mudá-lo para um local onde havia somente pessoas de idade avançada, como a dele e que com uma contribuição de parte de sua aposentadoria todos os cuidados deveriam ser lhe dispensados. Estes cuidados seriam: cama, refeições, roupa limpa, remédios e tratamento médico e odontológico.
Na manhã do dia 25 de abril do ano de 2.002 chegou ao local sugerido pela gente do governo, o senhor José Florêncio Pedroso Filho. Contava ele nessa data com setenta e dois anos de idade completos e foi apresentado ao chefe do lugar, juntamente com seus parcos pertences, documentos e histórico de vida e familiar, coletado por ocasião da visita que lhe fizeram na pensão.
Em princípio seu Zé Florêncio gostou do novo lar, mas aos poucos foi vendo a frieza ou excesso de “profissionalismo” daquele pessoal que lá trabalhava. Os internos eram tratados ou apontados por grau. Seu Zé Florêncio era uma grau 1. Entretanto, havia mais os graus 2 e 3, e todos os três graus totalizavam mais ou menos sessenta internos. O grau um era o interno considerado totalmente independente para fazer todas suas necessidades básicas e de locomoção, bem como não deveria possuir nenhuma patologia do intelecto. O grau dois já era parcialmente dependente e o grau três, totalmente dependente de cuidado.
Apesar da decepção por não ter ganhado uma família e um lar como havia concebido, logo conheceu uma moça, segundo ele, belíssima e de olhos claros e azulados, iguais aos de seu amor da longínqua infância. Ela lhe chamou atenção, e a ternura foi aos poucos substituindo a amargura de seu coração. A jovem por quem se interessou seu Zé Florêncio chamava-se Rute e tinha, por seus cálculos, de 70 a 75 anos de idade. O fato é que dona Rute também demonstrou carinho por Zé Florêncio e começaram a conversar animadamente, todos os dias, sentados nos bancos, sob o bosque no pátio da instituição.
Rapidamente um ano se passou e no inicio de 2003, seu Zé Florêncio já se havia acostumado (ou esquecido) com o pétreo comportamento dos funcionários, em razão da amizade e carinho que sentia por dona Rute. Porém, algo não lhe parecia certo, porque seu amor pela companheira de internato não era igual ao da infância. Era bem diferente.. Estranho! Pensava... Em verdade é que mesmo assim ele estava feliz e o tempo deixava de existir. A não ser quando ela era tomada pelas crises de Alzheimer. Momentos em que desconhecia qualquer pessoa, inclusive seu Zé Florêncio. Ele se assustava com seus gritos de repulsa, mas logo passava. Entendera, compreensivamente, que ela era um grau dois. Excluindo isso, estava tudo bem. As alas dos dormitórios eram separadas por “femininas” e “masculinas”, mas, não havia nenhuma barreira física nos corredores que impedisse o acesso à ala contrária, a não ser pela intervenção de algum funcionário.
No dia primeiro de janeiro de 2.005 todo o local estava em festa por ocasião da entrada do ano novo, mas para seu Zé Florêncio a data ia, além disso: ele completava 75 anos de vida, neste mundo.
Todos estavam reunidos no refeitório para o grande almoço preparado pelos funcionários. Mas, deram por falta de seu Zé Florêncio, e funcionários mais alguns internos saíram da mesa e trataram de procurá-lo pelos quartos e corredores. Primeiro começaram pela ala masculina, mas não o encontraram. Então, houve a necessidade de revistar a ala feminina. Em meio à frenética busca, de repente ouviu-se um grito de alguém em um quarto: achei! Todos correram para lá, inclusive dona Rute, pois vinha do seu quarto aquele grito.
E lá estava seu José Florêncio Pedroso Filho, com 75 anos de idade, completados naquele fatídico dia, estendido no chão, próximo a uma velha frasqueira aberta e com uma certidão de nascimento amarelada pelo tempo em uma das mãos. Seu Zé Florêncio havia morrido no dia do seu aniversário. No documento em sua mão via-se que pertencia à dona Rute, mas o que chamou mesmo a atenção dos presentes foi o nome do pai da moça: José Florêncio Pedroso.
Dona Rute e seu José Florêncio eram irmãos. O coração petrificado daquela gente, em frações de segundo, amoleceu e o piso do quartinho banhou-se em lágrimas. A festa de ano novo acabou-se ali mesmo para a então Entidade Municipal de Amparo aos Idosos.