Duas canções em uma só
“Quando a gente ama qualquer coisa serve para relembrar...” Ouço no ritmo de um assobio distante, tal qual o uivo dos lobos em noites solitárias. Só então percebo que neste mundo de cá há um silêncio espantoso. O som vem dos recônditos do meu cérebro. Uma lembrança.
O silêncio mundano logo é quebrado por uma voz rouca, desafinada, dando continuidade ao trecho da música que havia parado. Espanto-me comigo mesma e sorrio. Enquanto a água ferve, meus olhos vagueiam por outros horizontes. Vejo-o em uma camisa de botão, uma calça de tergal, chinelos. O cabelo bem penteado para trás, o bigode, como sempre, intacto. Um cigarro na boca, de lado, carregado por um meio sorriso. Uma sanfona vermelha em mãos. Vejo-o tocando o trecho: “índia, seus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar”. Por um momento, as duas canções são, para mim, uma só. Pois que sempre foram, para mim, de meu avô.
Enquanto o café é coado, aquele aroma de quem chega sorrindo, de um sorriso tímido, usando os óculos que nunca lhe servem muito bem, guardados há anos na gaveta. Em suas mãos, um caderno. Nas minhas, um piano infantil. “Veja, este é o DÓ; este, o LÁ”. “PA-RA-BÉNS PRA VO-CÊ. Vamos anotar: DÓ, DÓ, RÉ, DÓ, FÁ, MI. Agora faz... Isso, muito bem”. Com a xícara em mãos, pego-me sorrindo. Um sorriso desses que faz a alma sobressair, o coração se aquecer. Os olhos, cá, não estão.
Esfrego o sabão na xícara. O aroma do café se esvai. Demoro-me na água que escorre e, gélida, eriça meus pelos. “Você precisa bater as mãos e os pés juntos, sem medo”. Novamente sorrio. E vejo-o, mais uma vez, a sorrir. Aquele mesmo sorriso tímido. Aqueles olhos que me dizem querer um abraço apertado. Em um Fusca vermelho, de cigarro na boca, cotovelos na porta, acena para mim. Aceno de volta. Espero que volte. Mas sei que não irá.
Ou irá. Pois quem sabe, talvez, nesse mundo de sonhos e recordações, ele vagueie sempre com a sanfona, o sorriso tímido, o cigarro, cantando as mesmas canções. E quando menos perceber, aquela voz rouca, desafinada, espantará a si mesma, novamente cantando aquelas duas canções em uma só. Sempre em um meio sorriso. E os olhos cheios d’água.