Libertação

Malcom observava a rua, a despreocupação das crianças. A água jorrando das mangueiras, displicentemente... O sol alaranjado brindando o fim de tarde. A brisa fresca trazendo o aroma do asfalto molhado, os sorrisos provocantes. Entrou carregando o contrabaixo escada acima. Tomou um banho, trocou de roupa e se pôs a observar a atmosfera azulada que encobria, aos poucos, os céus da cidade. Pôs um disco de vinil na vitrola. Queria ouvir um pouco os mestres. Foi um dia carregado, mas inspirado, com certeza. Doze horas dentro de um estúdio, e pra tocar a mesma música. Tantas variações, como alguém que não sabe o que quer. Pensou em diversos arranjos melhores que o que teve de executar. Fosse com ele, tudo seria mais rápido, mais simples.

Já o tinham convencido a fazer seu próprio som. Tocava naquele estúdio há quase dez anos. Na verdade, não era por comodismo, mas por prazer. Ao longo de todos aqueles anos, ver gente diferente entrando e saindo. Novos sonhos, novas melodias, novos estilos, novos temperamentos... mas, talvez estivessem certos. Havia grande experiência acumulada, além de algumas melodias na mente. O que faltava antes era a inspiração, a alma acima da mera técnica. Isso não faltava mais.

Ela tinha ido embora fazia já um mês. Sentia saudades, mas não tinha vontade de reencontrá-la. Talvez estivesse vivendo algum grande amor em alguma cidade distante, próxima do mar, como sempre quisera. Ele insistia em viver ali, não abria mão de seu espaço. Nem mesmo por ela.

Na verdade, talvez por ela ele mudasse de idéia, só não pensou que as coisas chegassem a tal ponto.

A separação teve lá seus frutos. Era músico desde criança, mas nunca foi de compor. Sempre preferiu dar seu brilho em interpretações de canções alheias. No entanto, desde que Débora partiu, uma enxurrada de notas musicais traduziu cada momento em que estiveram juntos, como numa trilha sonora, ao ritmo de seu coração, às vezes forte; noutras, descompassado.

Assim, num período de não mais de duas semanas, havia composto algo em torno de dezessete belas canções, todas dedicadas a ela, canções que falavam de um amor muito mais profundo do que efetivamente sentira quando estavam juntos, canções que lhe revelavam o que sentia, mas que os dias o impediam de perceber.

Começou a dedilhar “Café da manhã”, cuja letra ainda não havia escrito, mas que retratava o único momento do dia em que nunca brigavam. É como se as máquinas ainda não estivessem ligadas, e, assim, eram apenas duas almas que se amavam, pura e simplesmente. Era uma canção suave, em ritmo de rythim and blues, com caixas reverberadas, violão cigano, piano dedilhado e baixo bem grave. Com alguma sorte, Talma Guedes poderia interpretá-la. Afinal, eram amigos de longa data, e ela não negaria esse favor. Enquanto dedilhava a canção, olhou pela janela e viu o vôo de dois pássaros. Sorriu com a ironia, já que, sempre que brigavam tinha o costume de olhar para os céus e ver se conseguia achar um casal alçando vôo. Quando via, era sinal de que ela voltaria em breve.

Não havia esperanças de que tal ocorresse agora. Tinha vontade de permanecer só por algum tempo. Não queria encontrar um novo amor tão cedo. Precisava amenizar a turbulência em sua alma. Precisava se afinar como instrumento. Sua vida era uma música psicodélica nos últimos tempos. Precisava de uma pausa.

A perturbação, no entanto, começou a falar mais alto. Deixou o violão de lado e foi para a janela. Olhou novamente para a rua e tentou se lembrar de quem era. Quinze anos de relacionamento, sem filhos. Os amigos, os havia abandonado. Débora era um sonho de liberdade e de vida nova. Quando a conheceu, viu o paraíso em seus olhos. E agora ela não estava mais ali.

No dia seguinte, voltou ao estúdio. Talma aceitara ouvir as canções. Certamente aceitaria participar das gravações, as canções eram apropriadas para o timbre de sua voz. Juntaram-se à turma João Paulo, baixista de classe, Zé do Sax e Ditocujo, o baterista estressadinho que, na hora H, sempre acerta o ritmo.

Começou a tocar a primeira canção na guitarra, enquanto Talma improvisava o que compreendia das partituras da melodia vocal. A canção, Débora, era intimista sem causar constrangimentos, no entanto. Rapidamente o trio seguiu o improviso, sem que houvesse a necessidade de um arranjo previamente construído. Todos conheciam Malcom de muitos anos, eram grandes amigos, além de musicistas. Colegas de trabalho de longa data. Conseguiram captar na alma o sofrimento do amigo e dar à música a interpretação exata do momento que vivia. ‘Débora’ tinha mais momentos instrumentais que cantados. Talma cantava alguns versos que eram seguidos por algum improviso no sax, alternando com alguns solos do próprio Malcom. Momentos de magia foram sentidos. Tocaram a canção ininterruptamente, por um longo tempo, aprimorando cada versão. Tudo gravado.

Não foi preciso indicar o momento em que a música atingira seu ponto certo. Todos pararam simultaneamente, certos de que tinham dado o melhor de si. Pararam e ficaram em silêncio. Zé do Sax acendeu um cigarro, enquanto Ditocujo começou a bebericar um pouco de cerveja num copo de plástico. Talma olhava fixamente para Malcom. Podia ver claramente seus sentimentos. Mas ele não estava triste. Apenas contemplava o que seria a entrada de alguém em sua vida. A entrada e a saída. Alguém com quem tivera intimidades, mas que talvez jamais visse novamente. Alguém com quem pudesse ter uma história normal, como “viver felizes para sempre”. Uma canção ininterrupta, com diversos loops...

Compreendeu que a vida nem sempre era assim. E começou a pensar se realmente gostaria de eternizar aqueles momentos com a canção. Talma, como que lesse seus pensamentos, decidiu acompanhar sua conversa interna.

- Talvez fosse melhor se você mudasse o nome da música. Ficaria menos endereçado, entende? Mas não a descarte, é uma bela canção. O mundo precisa ouvir.

- É aquela tua teoria do aborto das ideias, não é mesmo?

- Justamente.

- Tem razão. E que nome eu deveria dar então? Tem alguma dica?

Talma lançou um olhar matreiro para o teto e, como que de brincadeira, deu diversas sugestões:

- Não sou muito boa nisso, vejamos... “De passagem”, “Tudo passa, até você”.

Ambos riram da última.

- Não, eu sei, isso é ridículo.

Malcom, sem qualquer preocupação estética, decretou o nome da canção. Seria “não para sempre”. Simplesmente assim. Ninguém gostou da idéia. Na verdade, nem mesmo ele gostou. Mas refletia perfeitamente seu estado de espírito naquele momento. O desprendimento, o desejo de se libertar. E, de repente, realmente conseguia se sentir mais leve e liberto. Como se, agora, pudesse renascer. A canção foi um ritual de exorcismo, e, agora, estava livre do demônio Débora, o qual atormentava suas noites solitárias. Expressou isso para os amigos, obtendo deles o consentimento.

A química que irradiou entre eles criou ânimo para que trabalhassem nas próximas canções. Tocadas com maior vibração a partir de agora. A guitarra de Malcom voltava à estrada como um motoqueiro raivoso, e os arranjos passaram de um jazz contemplativo para um blues rasgado.

Seu coração estava preparado para novas canções.

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 31/03/2016
Reeditado em 01/04/2016
Código do texto: T5591099
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