O Caso dos Ovos de Páscoa
Era páscoa de 1996. Lembro-me de que as crianças estavam alvoroçadas com a iminência da caça aos ovos de páscoa.
Católicos de nascimento, durante a nossa infância éramos instruídos e catequizados sobre a Semana Santa e a Páscoa. Havia muitos tabus e dogmas a cerca dessa semana e muitas histórias que a envolviam. As crianças faziam perguntas e assim a gente aprendia o que podia e o que não se podia fazer de jeito nenhum neste ou naquele dia.
A Semana Santa começava no domingo anterior com a procissão de Ramos. Na quinta feira era o Lava Pés. Os homens disputavam a honra de terem seus pés lavados na celebração ou na missa conforme o local em que a gente morava. Na cidade havia padre e por isso eram missas. No interior nem sempre havia padres. Por isso era apenas celebrações da palavra. Mas nem por isso o Lava Pés era menos interessante. Cercada de um certo suspense e feitas com capricho as cenas não saiam da nossa mente. Esta cena representava o que Jesus Cristo fez na última noite com os discípulos para mostrar-lhe que se Ele como Mestre lavou-lhes os pés, então que eles também fossem humildes uns com os outros.
Na Sexta Feira Santa não se podia falar alto nem xingar. O barulho era evitado a qualquer custo, Era um dia dedicado apenas a oração. A famosa torta era feita na quinta feira e assim nem tínhamos que deixar a oração para cozinhar. A celebração da crucificação de Jesus era sempre feita as três horas da tarde, hora suposta do acontecido. No sábado as 9 horas da manhã a gente podia finalmente brincar a vontade. Mas a celebração ou a missa da Aleluia era feita bem mais tarde da noite. Era uma celebração cheia de coisas diferentes. Havia a procissão das luzes e do fogo. A gente fazia lanternas que eram acesas no Círio Pascoal que era acendido e refeito na fogueira abençoada e a procissão ficava linda demais.
Mas o que a gente mais gostava era e ainda é sem dúvida nenhuma o domingo de páscoa.
A minha pequena irmã Lurdinha, de recem completados três anos de idade, perguntou a minha mãe naquele domingo:
_Porque o coelho é sempre lembrado na páscoa, mamãe?
_ Porque o coelho consegue ter até 15 filhotes por mês querida, e em se tratando de Vida Nova o coelho é imbatível! E Mamãe deu uma gostosa gargalhada e acrescentou: Coelho é mesmo o simbolo da Páscoa, sem coelho não tem páscoa kkkk.
Ficou pra Lurdinha a ideia de que o coelho era o representante da páscoa.
Naquele domingo de Páscoa as coisas corriam bem demais. Não havia ovos de chocolate como hoje em dia. As mulheres adultas da família junto com as crianças, faziam quindins e retiravam as gemas e claras dos ovos por um pequeno furo no topo dos ovos. Aquelas cascas eram preenchidas com gesso(os mais ricos) e barro (os mais pobres). Assim que o gesso ou o barro secava, os ovos eram pintados com tinta colorida, com desenhos lindíssimos ou bem bizarros (feitos pelos menores) mas não menos importantes. Todos adoravam receber aqueles ovos de páscoa. Alguns guardavam pelo resto da vida fazendo coleções, outros os substituiam a cada páscoa. Assim, para que não houvesse briga pelos ovos mais bonitos, todos eles eram escondidos pela fazenda da minha avó, e se iniciava a caça aos ovos de Páscoa. Tudo muito organizado.
Havia um boato crescente, pelos idos de 1990, de que algumas pessoas muito más estavam sequestrando crianças para roubar-lhes os órgãos para serem vendidos bem caros para quem precisasse de transplantes. Por isso não tirávamos os olhos da Lurdinha que era a menorzinha e do Tony que apesar de ter sete anos era um polenta e vivia caindo atoa. Naquele dia a Leonora, filha mais velha da tia Lucélia, ficou responsável de segurar a mão da pequena prima, de quem gostava muito. E o Tony não quis ninguém segurando a sua mão dizendo que já era um rapaz e não precisava de babá. Leonora disse que ficava de olho nele também. E partimos todos em busca dos tão sonhados ovos pintados. Espalhou - se meninos e meninas pra todo lado. Eram ao todo mais de quarenta primos. Os três mais velhos, no entanto, participavam da brincadeira ficando ali apenas como juízes, para que se cumprissem as regras. Não era permitido achar mais de um ovo. Quem achasse não deveria dizer a ninguém onde estavam e nem retirar de lá e esconder em outro lugar. Pegaria apenas um ovo ou acharia outro mais bonito que bem lhe aprouvesse deixando o outro onde estava. Se houvesse brigas eles também decidiriam quem achara o ovo primeiro.
Em certo momento da brincadeira ouviu-se um grito agudo e choro de criança. Mas a maioria estava muito distante para ouvir. O fato havia ocorrido atrás do celeiro, em frente a manga dos porcos. Leonora estava próximo ao chiqueiro onde os animais dormiam e por isso ela e a pequena Lurdinha ouviram o grito e o choro. Ela, a princípio, ficou confusa, mas logo se orientou. Era o Tony que havia saido correndo ha pouco e subido em cima do chiqueiro e quebrado algumas telhas. Suas pernas estavam penduradas e os porcos roçavam nelas. Eram animais mansos mas ele tinha medo deles. Não costumavam morder mas era melhor evitar esse contato tão direto. Leonora pediu a Lurdinha que esperasse sentadinha no chão e subiu no telhado pelo lado norte onde as grades de ripões e cumeeira do chiqueiro estavam mais firmes, para puxar o menino que gritava sem parar.
Falando devagar e acalmando o menino, com muita dificuldade para não provocar um acidente maior, Leonora conseguiu finalmente retirar o Tony dali e descer com ele do Chiqueiro, agora sob os aplausos dos outros que ouvindo os gritos vieram socorrer ao aflito.
Entre elogios e festa pela recuperação do pequeno ninguém se lembrou da Lurdinha. A maioria já tinha nas mãos ovos bem bonitos e começaram a compará-los. Só se lembraram da pequena quando a tia Florzinha veio ver o ocorrido e perguntou pela menina. Ninguém sabia dizer dela. Leonora correu ao local em que deixara a menina sentada mas ela não estava lá. E também não estava em lugar nenhum. Todos se empenharam em procurar pela fazenda e mesmo assim não a encontraram. Leonora chorava muito, sentindo-se culpada pelo sumiço da criança que afinal estava sob sua guarda. Alguns a acusavam e outros a defendiam, mas nada de mudar a situação. O delegado foi chamado e pôs seu efetivo( apenas dois soldados) na busca da menina. Os vizinhos também foram avisados para o caso dela aparecer por lá. Eles também se prontificaram na busca da Lurdinha. As velhas que não poderiam sair em busca dela se puseram numa vigília a rezar para que todos os santos ajudassem na busca.
Passou se o resto do dia e nada de encontrarem a menina. Anoiteceu e foi aquele desespero. Todos imaginavam que ela havia sido sequestrada para aquele fim horroroso mas ninguém tinha coragem de sequer falar nisso. Os homens continuaram a procurar pelo mato apesar da noite. Com tochas e lanternas a querosene se puseram na escuridão da mata até quase caírem de exaustão. Era desesperador pensar na pequena menina perdida na mata com aquela escuridão.
Em casa pusemo-nos a lembrar de fatos ocorridos com ela para desanuviar a mente. As travessuras, as respostas rápidas, as brincadeiras inventadas por ela os risos provocados e os dengos de bebê. Ninguém dormiu naquela noite. Foi a pior noite de nossas vidas.
No dia seguinte voltamos a procurar e desa vez as meninas também foram porque elas poderiam lembrar de alguns esconderijos que os adultos não pensariam. Eram 5 horas da manhã e assim que o dia clareou o bastante, saíram todos a procura de Lurdinha. Lucinha lembrou que quando era bem pequena descobriu um valão entre o rio e o morro. Ficamos assustados diante da possibilidade da menina ter caído ali mas fomos pra lá. Ela explicou que o morro era bem alto e lá embaixo havia um barranco capaz de abrigar algumas pessoas bem grandes. Mas se alguém tentasse descer por ali ficaria preso e não conseguiria sair. Ao chegar ao topo do morro, vimos Lurdinha deitada no barranco la embaixo. Começamos a gritar seu nome bem alto mas ela nem se mexeu. Ninguém comentou mas passou pela cabeça de todo mundo que ela estaria morta. Ela estava deitada em forma de feto e parecia proteger alguma coisa em seu colo.
Augusto, meu primo em segundo grau, desceu por uma corda que estava sendo segurada por todos nós pois ali perto não tinha nenhuma árvore para servir de apoio. Quando chegou lá embaixo, Lurdinha começou a gritar:
_Não, ninguém vai pegar meu coelhinho! Sai pra lá!
_Calma priminha! Eu só quero ajudar!
Com muita dificuldade ele chegou perto, tomando cuidado pra não aborrecer Lurdinha, pois ela estava perto do barranco e poderia cair. Abraçou a menina e então percebeu que no colo dela estava um coelho, muito assutado, tentando se libertar de qualquer maneira. O coelho já havia arranhado a menina de todas as maneiras que pode. Mas ela não havia cedido. A briga estava se desenrolando há muito tempo pelo visto. Com muito jeito Augusto convenceu a menina a soltar o bichinho. Ele segurou o bicho pelo pescoço e ele ficou bem mais manso. Pôs o coelho no laço e pediu pra que puxássemos. Logo o coelho estava nas mãos de meu primo Guélo que era especialista e caçá-los. Lurdinha foi a próxima e depois o Augusto.
Ela nos contou a sua maneira, que enquanto o Tony chorava em cima do chiqueiro ela avistou o coelho. Ocachorro deu em cima dele e ela correu e tocou o cachorro. Depois ficou com medo do cachorro voltar a perseguir o coelho. Tocou o coelho mas o bichinho voltava sempre e por isso começou a perseguir o coelhinho pela mata, afinal a mamãe havia dito que o coelho era o símbolo da páscoa e por isso tinha que proteger o coelho pois senão a festa da páscoa acabaria. Ela não queria ficar sem os ovos de páscoa e sem os quindins da família. Seria muito triste não ter a família assim juntinha na páscoa. O coelho tinha que ir embora pra voltar depois. Quando finalmente conseguiu espantar o coelho ficou com medo do coelho não voltar nunca mais. E saiu atrás do bichinho. Foi muito difícil encontrá-lo e quando o encontrou foi mais difícil ainda agarrá-lo. O coelho fugia e ela o agarrava de novo e novamente ele fugia. Quando o coelho desceu pela ribanceira do cânion do rio Grande ela o seguiu. Descer até que não foi difícil mas subir não foi mais possível. Ela chamou e gritou muito mas ninguém a ouvia. Escureceu e as estrelas iluminaram o barranco pra ela. O coelho ficou assustado no começo mas depois aceitou ficar escondido na barriguinha dela. Dormiu em concha e ele se aconchegou junto a ela. Ouviu vozes de manhã mas ficou com medo que lhe roubassem o coelhinho e por isso ficou quietinha. Agora não podiam deixar o coelhinho fugir senão não haveria mais Páscoa. Todos rimos muito da inocência de Lurdinha e voltamos pra casa. Fomos recebidos com grande alegria pelo restante da família. Lurdinha comeu e bebeu pois estava desidratada e faminta.
A nossa festa da páscoa nunca mais foi a mesma desde então. Acabou-se a brincadeira de caça aos ovos de Páscoa, mesmo porque perto da casa não tinha tantos esconderijos para os ovos e longe era muito perigoso. Alguns ovos, para que as crianças não os esquecessem, eram confeccionados e assim pelo menos um bocadinho de quindim a gente ainda tinha, pois minha avó Neusa não gostava de desperdício. Ficou proibida a caça aos ovos pelo perigo que representava. Dali em diante cada um dava pra quem quisesse o ovo que pudesse e assim a festa estava garantida. Era o ocaso da caça aos ovos de páscoa. A nossa festa hoje se resume em rabanadas e peru assado com lindas travessas de arroz ao forno. E, infelizmente, acho que isso deu origem a esses ovos exageradamente caros que encontramos por aí. Hoje em dia, ninguém mais quer ovos de gesso pintados por alguém com muito carinho, se é que alguém os quer pintar. De minha parte, apesar dos meus cinquenta e um anos de idade, ainda continuo desejando de coração que seja uma festa como as nossas de antigamente com muita pureza de coração e paz nas almas, a todos que encontro pelo meu caminho nesta época: Feliz Páscoa!