Duas encomendas para o senhor Jacó
Eu ainda tinha um poder incrível de me rebelar quando vi aquelas duas malas chegarem. Tinha começado a trabalhar na vendinha do seu Jacó há poucos dias. Vendinha era como todos chamavam á espécie de armazém que tinha no bairro, desde piá ouvia dizer que seu Jacó era esperto, e prosperou seu negócio á partir de uma banca de produtos piratas na rua. Quase dez mil pessoas moravam naquele bairro, no qual me criei jogando bola na rua com um par de tênis velho em cada ponta para demarcar as goleiras. Era meia hora de discussão para definir o time, e acertar o tamanho das traves, parecia que a defendida pelo adversário estava sempre menor. Paralisações homéricas se davam quando a bola passava por sobre um dos tênis. Discussões e brigas, que fazia parte da diversão, saudosos tempos.
Mas a referida vendinha era um mega mercado, que vendia de tudo, palito de dente até mobiliava uma casa completa, da bicicleta até carrões de luxo. Muito se falava sobre o que ocorria naquele lugar, todos tinham medo do seu Jacó. Como as pessoas falavam baixo, parecia que as casas e calçadas tivessem ouvidos, nunca se soube das reais movimentações da vendinha. A enorme facilidade de seu Jacó em fazer amigos era surpreendente, certa vez, eu corria pela rua atrás de um carro de som que puxava uma carreata para um candidato a presidência do país, e que parou e fez questão de ir conversar com o dono da vendinha a sós no escritório, sequer pediu assessores.
Neste dia, porém, estava eu na minha faxina diária no deposito, quando chegou este carro preto, de onde desceu três homens grandes, vestidos de longos casacos negros com duas malas, um deliberava as ações dos demais. Seu Jacó passou por mim apressado. Diante de tudo o que tinha ouvido falar de mal deste homem, temi até pela minha segurança naquele local. Mas como a curiosidade era maior, me escondi atrás de umas caixas. Imaginei sair daquelas malas muito dinheiro, pois todos falavam que seu Jacó era um temido mafioso Israelense foragido de seu país. Segundo diziam, aquele micro comércio tinha se transformado numa mega corporação devido ao dinheiro oriundo das drogas e comércios ilícitos sem tamanho, como compra de deputados, licitações fraudulentas.
No inicio, claro que acreditei, mas depois de algum tempo, conhecendo melhor as pessoas, calculei que era inveja pura. Seu Jacó era muito religioso, freqüentava a sinagoga, que ele tinha ajudado a construir no bairro, e nunca foi contra ninguém que praticasse outros dogmas, assim como eu Católico Apostólico Romano, não praticante. Fui batizado, catequizado, crismado e sei mais lá o que, mas vou a missa esporadicamente, e evito praticar o mal, em qualquer escala, imaginava que um ser humano, não poderia ser extremos opostos num só, religioso de dia e assassino á noite.
Não era isso, porém, que tentavam me fazer acreditar.
- Fui à falência por causa deste maldito Judeu.
- Esse calhorda traficante.
- Maldito!
Mesmo sem compactuar com essas acusações malditas e gratuitas, fui me deixando doutrinar por falastrões incompetentes, que não souberam fazer negócios limpos e rentáveis, e ainda culpavam terceiros pelos próprios fracassos. Tinha uma técnica própria de negociação, comprando produtos sempre pelos menores preços, sem nunca perder a qualidade de seus produtos. Diante de todos estas táticas comerciais não havia concorrente que suportasse.
Depois de uma discussão ferrenha, os dois puxaram suas armas e com dezenove tiros mataram seu Jacó. Li sobre isso no outro dia pelos jornais, naquele momento, não tive tempo de contar, só de correr, adentrei á loja numa corrida desenfreada, sentindo o calor das chamas do chumbo disparado pelos meus pensamentos. Tentava imaginar que tudo acabaria bem, pois era assim que terminavam as novelas os filmes. Vi o quanto isso emburrecia as pessoas, limitava as ações, e tirava nossa mais velha reação, a luta pela sobrevivência. Ao menos não na forma como sobrevivemos.
Ainda hoje, vivendo com nome falso, num lugar que nem sei onde, parece que vejo seu Jacó recebendo as duas encomendas. Morreu injustiçado, taxado de bandido, se bem que viver açoitado pelos pares, é como estar morto.
Sinto meus pés doerem, faz tanto tempo. Mas vejo meu corpo coberto de sangue estirado no chão de um armazém, assim com seu Jacó, pesadelo que povoa meus sonhos mais sutis. Eu já morto, olho ao longe, uma garça branca pescando a beira do lago, e imagino minha vida. Não é mais uma vida. Tive que fugir, trocar de identidade, nem minha família sabe onde eu ando, eu ainda recebo noticias deles, sei onde estão e o que fazem, mas eles só sabem que eu estou morto. Vivo numa cidade distante, isolado das pessoas que mais amei, tudo por fazer as coisas dentro da lei. Por ser honesto, vivo isolado da vida, é como que se dezenove tiros tivessem me perfurado. De certa forma eu estava morto, desde aquela quarta-feira ensolarada em que varria uma calçada.