Anjo
Dez horas da manhã, na porta de dona Maria alguém de leve tocou. Era uma terça-feira de Junho. Dona Maria deixou as vasilhas no tanque e veio ver quem era. Abriu a porta e deparou-se com uma menina de três anos, um vestidinho azul rodado e cuidadosamente embainhado, com babados brancos, estava descalça e na mão esquerda um par de tamanquinhos pretos, com umas meias brancas dentro e ainda no cabelo um laço de fitas azuis com detalhes brancos. Não lhe disse nada, apenas estendeu-lhe a mão direita, a pequenina mão direita, em cuja palma não se cabia muito. Dona Maria perguntou-lhe:
— O que você quer?
Sem rodeio ou cerimônia, com a mão espalmada ao ar, respondeu:
— Comida.
— Cadê sua mãe?
— Não sei.
— E seu pai?
— Não sei.
— Você está com quem?
— Ninguém.
— Mas meu Deus! E de onde você veio?
Recolheu a mão e apontou para Leste.
— Lá.
Estendeu novamente a mão em direção a dona Maria. Esta balançou a cabeça negativamente como em desaprovação a tal situação, dizendo enquanto virava-se para dentro:
— Espere aí.
Foi até a cozinha e apanhou um pão que fizera no dia anterior, foi à gaveta e procurou a faca para dividi-lo. Pensou melhor enquanto, ainda sobravam quatro pães, iria dar aquele inteiro mesmo, não haveria de fazer-lhe falta. Quem iria chiar certamente seria o seu Adalberto, marido de dona Maria, ele repudiava a ideia de dar coisas a esses meninos que ficavam pedindo na rua, em sua grande maioria são filhos de pais ociosos, em idade e condições de saúde produtivas, vivendo porém às custas da caridade alheia, alavancada por esses pobres anjinhos, outrora esses pais nem têm necessidade de por os filhos para pedir, faziam-no por desrespeito à dignidade humana. Essas crianças acabariam sendo aprisionadas numa ideologia de incapacidade, viciadas a pedir em lugar de lutar para obter. Enfim, dobrar-se ao apelo delas era quase agir contra elas mesmas. No entanto, faça o bem, não olhe a quem, aquele que cede ao apelo de uma mão estendida não pode ser punido, não haveria de haver na consciência humana uma única lei que proibisse tal humano ato. Assim pensava dona Maria, e tudo isso refletiu enquanto voltava para a sala, em cujo interior algo atraiu a atenção da pequena menina, que até se assustou com achegada da dona Maria. Estendeu de volta a mão direita espalmada. Ainda que existisse lei, dona Maria não seria capaz de negar um pedaço de pão àquela criança.
Mal teve poder absoluto sobre o pão e levou-o à boca, com certa voracidade. Dona Maria esperou um obrigado ao menos, um “Deus a ajude”, mas não ouvindo foi fechando a porta. Tão logo o fez, a menina bateu novamente à porta, dona Maria, já quase á beira de perder a paciência, voltou a atendê-la. Os tamancos estavam no chão e a menina pediu-lhe desculpas:
— Desculpe-me!
Introduziu a mão esquerda num pequeno bolso no centro do vestido, à altura da barriga, tirou uma moeda e entregou-a a dona Maria. Era uma moeda de cinco centavos. Dona Maria analisou o valor da moeda e disse a menina:
—Espere um pouco.
Foi até seu quarto e, numa caixa de sapatos junto aos perfumes na penteadeira, colocou a moeda, apanhou de lá duas únicas moedas de real, voltou e entregou à menina. Esta colocou ambas as moedas no mesmo bolso – e único – do qual tirara a moeda de cinco centavos, abaixou-se, pegou novamente os tamancos, olhou para dona Maria, flexionou ligeiramente os joelhos, trazendo-os ao normal no mesmo instante, simultaneamente dizendo:
— Obrigada, senhora!
— Por nada!
A menina virou-se, atravessou a rua correndo, após ter observado ambos os lados. Foi para a esquina da rua que com aquela se fundia, lá havia uma parte de terreno sem qualquer construção, ali na esquina mesmo, com uma árvore ao fundo. A menina foi até a árvore, pôs os tamancos no chão e comeu o pão, isso em curto espaço de tempo. Após, limpou cuidadosamente os pés com as mãos e calçou as meias e os tamancos. Isso tudo sob atenta observação de dona Maria, que se encontrava estupefata ante tal cena. De repente lembrou-se de seus afazeres, voltou ao tanque rapidamente. A menina ficou embaixo da árvore, deixando a mente de dona Maria completamente entregue às suas ocupações domésticas.
Pouco após as onze horas da manhã chegaram os filhos de dona Maria da escola. Eram quatro: Roberto, de onze anos, Amaro, de nove, Fabrício de sete e Fernanda de seis. Daí a uma meia hora chegou seu Adalberto. Ele trabalhava puxando leite, era ajudante de caminhão, o homem com quem trabalhava, um tal Clodoaldo, tinha um caminhão e prestava serviços a um laticínio dali, ele mesmo dirigia e seu Adalberto era seu braço direito. Além de ajudante era quem fazia a manutenção do carro e ia sozinho quando o patrão não podia ir. Tão logo chegou, dona Maria relatou-lhe o ocorrido.
— O interessante Berto, é que ela, apesar de aparentar-se bastante abatida, é uma menina muito bem cuidada. Educada, com retoques de fineza, higiênica, limpinha, pele e cabelo bem tratados, como se fosse filha de gente rica.
— Duvido! Se fosse não estaria solta na rua.
Roberto refletiu:
— Talvez tenha fugido de casa.
— É Berto, Bertinho tem razão, talvez ela fugiu de casa.
— Uma menina de três anos?
— Uai, sei lá? Quem sabe o pai dela casou com outra e a madrasta é ruim?
— Ah! Põe o almoço ai logo e esquece essa menina.
Foram almoçar. Surgiram outros assuntos e o caso da menina foi esquecido. Contudo antes de terminarem ela surgiu junto ao muro da varanda. Não disse nada, pediu comida com os olhos. Dona Maria olhou para seu Adalberto, esse fez um gesto de ombros, isentando-se de opinar, ela voltou para a menina:
— Quer comer?
Balançou a cabeça positivamente.
— Então venha sentar-se à mesa, eu vou dar-lhe comida.
A menina transpôs o portão, dirigiu-se à pia, não tinha altura, olhou para dona Maria, esta havia compreendido sua intenção, veio, abriu a torneira e ergueu-a. Ela lavou as mãos com água e sabão. Secou-as na toalha e dirigiu-se à mesa. Dona Maria pôs-lhe a comida, recusou farinha, quis feijão, arroz, carne e salada. Demonstrou-se faminta, contudo, da maneira de manusear os talheres à forma de mastigar o alimento pareceu indissociável à uma boa educação. Tão logo fez sua refeição, fez o sinal da cruz e, olhando ao redor, disse obrigado, descendo os olhos. Seu Adalberto questionou-lhe:
— Qual o seu nome?
— Não sei.
— Como?! Você não sabe o seu nome?
Balançou a cabeça negativamente.
— E o seu pai, quem é o seu pai?
— Não sei.
— Você tem mãe?
— Também não sei.
— E de onde você veio você sabe?
Ela olhou como querendo posicionar-se, mais já havia se perdido no espaço, movimentou os ombros com desânimo, dizendo não saber. Dona Maria intercedeu:
— Eu já perguntei isso a ela, Berto, não adianta, se ela sabe de alguma coisa não quer dizer.
— Mas é muito estranho.
— Também acho.
— E você veio como?
— Como eu vim?
— É, como você chegou até aqui?
— Eu vim num carro.
— Que tipo de carro?
— Um... caminhão. Com um tanto de lata em cima, que fazia o maior barulho.
— Caminhão de leite, Maria. E você veio em cima junto com as latas que batiam ou dentro?
— Não, eu vim dentro.
— E qual era a cor do carro?
— Do carro grande?
— É, do carro que você veio.
— A cor?
— É, a cor, azul, amarelo, vermelho?
— A cor eu não sei.
— E o nome do homem que dirigia?
— Que homem?
— O que ficava girando o volante. Você sabe o que é o volante?
— Sei.
— E então, qual o nome dele?
— Não sei. Mais ele tem uma barbona!
— Ah, Luzimar. Ele passa aqui em seu Liontero, vai lá embaixo na fazenda Cristais do Mar e volta pelo Córrego da Baixa, e sai de volta aqui, no mesmo lugar, na fazenda de seu Liontero.
Fernanda veio entrando:
— Mãe, vou brincar lá fora.
— Hoje à tarde vou lá no Laticínio, Maria, terça, quinta e sábado ele esta lá à tarde.
— Então o problema está resolvido, hoje você decifra o mistério dessa menina.
— Deixa mãe – insistia Fernanda, puxando o vestido de dona Maria, que a esta hora estava recostada na pia.
— Vai menina, mais você volta suja de terra, ouviu?
— ‘Brigada mãe!
Saiu pulando. Ao portão parou, a boneca numa das mãos, estendeu a outra mão em direção à menina, com os dedos unidos, flexionados, num gesto de chamamento:
— Vem.
A menina, ávida por ir, saltou da cadeira num sorriso e o mais ligeiro possível acompanhou Fernanda.
Lá pelas três e meia da tarde seu Adalberto foi ao Laticínio. Era bastante conhecido lá, e não digo só de nome, por trabalhar lá, mas era “chegado” de todos, pois era onde trabalhava há quase dezesseis anos. Foi gritando o primeiro que viu tão logo chegou:
— Fala Tião!
— Oi, seu Berto! Boa tarde!
— Boa tarde! Cadê Luzimar?
— Está ali embaixo, consertando aquele caminhão azul.
— Deixe eu ir lá.
— Vai lá seu Berto.
Aproximou-se do caminhão azul, bateu na lataria da cabine enquanto se agachava. Luzimar estava embaixo, cumprimentou-o.
— E aí, Luzimar, o que está pegando aí?
— Oi seu Berto! O senhor está bem?
— Graças a Deus, e você?
— Tudo bem. Eu estou aqui vendo se dou um jeito nesse feixe de molas.
— Oh Luzimar, eu vim perguntar sobre uma menina que você deu carona hoje, de três a quatro anos, ela é filha de quem?
— Olhe, seu Berto, aquela menina é um mistério. O senhor está falando de uma bem arrumadinha, não é?
— É. Estava com um vestidinho azul, com um babado branco.
— Pois é essa aí mesmo, seu Berto. Eu peguei essa menina lá no último ponto, estava com uma tal Francisca, do Córrego Vermelho. Eu abri a porta para Francisca entrar, ela ficou perto, então eu a pus dentro do carro. Viemos conversando. Cá na frente eu perguntei Francisca quem era a tal garota, o que era dela, foi aí que ela me falou que nem conhecia. Segundo ela o seu irmão vinha trazendo-a para o ponto onde ela me esperava, na penúltima cancela para chegar no ponto essa menininha estava, tinha umas vacas no caminho e ela estava com medo, o irmão de Francisca perguntou se ela queria passar, ela disse sim, eles a trouxeram.
— Mas assim!? Sem nem saber quem era?
— Francisca achou que era filha de alguma pessoa que já tivesse conversado comigo para trazê-la, ia até perguntar-me, mas viu-me colocá-la no carro sem mais demora.
— Nossa! Que complicação!
— O pior é que fiquei preocupado, mais quando cheguei ali perto da sua casa, onde parei para uma mulher descer, a galinha dessa tal mulher escapuliu, eu tentei ajudar pegar e esqueci-me da menina, como já estava atrasado e preocupado com esse feixe de molas eu nem lembrei.
— Nossa! Você deve ter chegado tarde de lá, da outra linha sua, não é?
— Não, eu pedi o primeiro que apareceu aqui para ir buscar pra mim, fiquei com medo desse caminhão deixar-me na estrada.
Seu Adalberto ainda demorou um pouco mais ali, mas ficou preocupado quanto à menina. Em casa chegando relatou à esposa conforme se interara do assunto. Mal terminou de contar tudo e sua filha Fernanda chegou.
— Cadê a menina, Nandinha?
— Não sei, mãe.
— Menina sonsa, volta lá agora buscar aquela menina.
— Ah pai, ela sumiu tem horas.
Já com voz de choro e correndo para o lado da mãe, seu Adalberto saiu rápido, ainda perguntou:
— Onde estavam quando ela sumiu?
— Brincando de queimada perto da casa de Luiza.
Seu Adalberto procurou, mas não encontrou. Procurou informações por ali, mas ninguém soube informar, a menina tal como apareceu, sumiu. Seu Adalberto desarmou-se na poltrona desanimado.
— Menina misteriosa, Maria, parece fantasma, some aqui, aparece ali, desaparece de novo.
— Deixe de bobagem, Berto, ela deve ser é meio tolinha. Coitada, esta noite parece que vai fazer tanto frio.
— Vai ver a mãe dela a encontrou, gente – tentou amenizar Roberto.
— É, vai ver foi isso mesmo.
Disse dona Maria, com o olhar deixado pela varanda, não cria nessa possibilidade, mas esperava que fosse. A lembrança da menina foi ficando sonolenta, sonolenta... Espreguiçou-se por final e adormeceu, antes mesmo deles.
A casa de Luiza, a que Fernanda se referira, ficava nas proximidades da ponte de um pequeno córrego ali do bairro. A pequena garota havia descido junto à ponte, atraída por uma boneca que pairava à margem do leito. A menina desceu e, recolhendo a boneca, recostou-se junto à pilastra e ali ficou. Após brincar um pouco, juntou jornais velhos espalhados ali e adormeceu sobre eles. Aquela era a “casa”, ou, pode-se dizer abrigo, de Pedro cachaça. Pedro Cachaça era um bebum de aproximadamente quarenta e cinco anos, nunca se encontrava sóbrio, pois quando se recolhia em seu abrigo levava algum tanto de bebida e, logo que o sol surgia e o despertava, ele já se embriagava, de forma que as pessoas não o viam senão bêbado. Mas a história de Pedro Cachaça é emocionante. Há quinze anos Pedro tornou-se Pedro Cachaça, metamorfose para um estado precedente da morte.
Pedro era filho único de um fazendeiro, perdeu a mãe aos oito anos num acidente de carro, que também deixou seu pai paralítico. Desde cedo aprendeu a lidar com fazenda e passou a tomar conta das terras do pai. Aos dezesseis anos tombou o caminhão do seu pai com vários empregados da fazenda em cima. Morreram três e seu pai teve que vender parte das terras para indenizar as famílias das vitimas. Em decorrência do fato ele mudou-se para São Paulo. Lá ficou dois anos, conheceu e apaixonou-se por uma prostituta nordestina que lá trabalhava. Trouxe para morar com ele e seis meses depois ela teve um filho, uma menina, uma fotocopia dele de tão parecida. Denominaram-na de Pedrita, tamanha semelhança. Algum tempo depois perdeu seu pai para um câncer. Foi para a pequena fazenda (restara na verdade um sítio) e tentou recomeçar sua vida. Comprou uma casa na cidade quando a filha fez sete anos, para que a pequena Pedrita pudesse estudar. Mas naquele mesmo ano descobriram que ela estava com câncer. Foram mais de quatro anos de sofrimento, uma luta aparentemente leal, porque de um lado uma doença incurável, e do outro uma esperança invencível. Pedro, o garoto que recomeçava, um jovem fazendeiro ascendente, viu-se em dificuldade. Primeiro gastou o que tinha, depois vendeu o gado, depois a casa da cidade, depois o carro, então começou a endividar-se. Numa terça-feira um amigo veio trazer sua filha em casa, Pedrita, de Pedro, de pedra, de rocha, não parecia tão rocha. Expirou às três da tarde, às três e dez talvez, aos onze anos, quando a mãe, com o auxilio do pai, tentava sentá-la para dar-lhe água, pois reclamava de sede. Não bebeu a água.
Enterraram-na, na quarta de manhã. Na quinta-feira ele quis tentar recomeçar, foi ao encontro de seus credores. Devia realmente bastante, teria mesmo que vender parte de suas terras até porque não tinha mais nada do que pudesse desfazer-se. Vendeu a terra toda, o dinheiro que sobrasse compraria algum sitio em outro lugar. Iria sair dali, recomeçar significa zerar, partir do nada, morrer para voltar a viver; nascer de novo. Sexta-feira foi à cidade levar os documentos, vender burocrática e oficialmente. O comprar e seu maior credor pagou-lhe à vista a quantia que sobrepunha à divida, fez questão disso, ainda deu-lhe prazo de até sessenta dias para entregar a terra, pois entendia a situação difícil pela qual Pedro passava. Foi voltando para casa, já no fim da tarde, à pé ela estrada refletindo, pensando, fazendo contas. O dinheiro restante dava para comprar um sitio equivalente a três quartos do seu, iria mudar de cidade se possível, quando chegasse em casa, se a sua mulher estivesse fértil iria fecunda-la, não para substituir Pedrita, mas para ter forças, recuperar o ânimo. Chegou já escurecia. Um silêncio fúnebre envolvia a casa e o lugar inteiro. Girou pela porta da cozinha, foi em direção ao quarto da filha onde certamente estava a esposa, agarrada às roupas da filha. E realmente passara lá, havia retirado todas as roupas do guarda-roupa e jogado sobre a cama, mas não estava lá. Um cheiro de queimado fê-lo voltar à cozinha, mas nada se encontrava queimando. Foi ao quarto, agora já chamando por ela, nada. Pela janela, notou algo fumaçando um pouco longe, mas não a viu. A penumbra pouco a pouco cedia à escuridão total, impedindo-o de identificar o que ela teria posto para queimar. Segui rapidamente para lá. O que era fumegava, e o que fumegava se mexia, parecia tremer. Seu fôlego apresou-se, seu coração acelerou, suas pernas fraquejaram. Sua esposa não havia resistido, fraquejou no tempo da desgraça, jogou álcool no corpo e incendiou-se. Pedro socorreu-a, pois ainda estava viva.
Segunda-feira, dali a três dias, no bar do seu Antonio, na rua do cemitério, Pedro foi visto pela ultima vez sóbrio, às três ou quatro da tarde (alguns falam que era às cinco), tomando uma dose de cachaça ali no balcão. Olhando para o copo antes de beber, disse:
— Ela era a força com que contava para superar a morte da minha filha, agora preciso superar também a morte dela, não sei se vou conseguir.
Seu Antonio, o mesmo seu Antonio, dono do mesmo bar, no mesmo lugar, conta sempre essa história, bastando para isso ver Pedro Cachaça passar na rua quando tem alguém diferente dentro do bar. Agora Pedro Cachaça estava ali, debaixo de uma ponte. O local era bastante propicio, oculto aos olhos de muitos curiosos que passassem na rua. Ainda, o córrego entrava na cidade por ali, naquele ponto era completamente virgem dos dejetos da cidade.
Então amanheceu, aquela noite foi realmente gelada. Às cinco da manhã, quando seu Adalberto se levantou, Dona Maria lembrou-se da criança.
—Como estará a esta hora aquele pobre anjinho!
Não tão bem, mas nem por isso deixou de viver. A neblina desfez-se logo e o sol chegou despertando a pequena menina. Ela levantou-se dentre os jornais e pôs-se de fronte ao sol. Pedro acordou enquanto isso, encantou-se com a presença dela, a qual não notou no dia anterior quando chegou para dormir, ou talvez até tivesse visto, mas não era capaz de se lembrar. Ainda estava meio tonto, mas foi capaz de fazer-lhe as mesmas perguntas: Quem é você?, De onde veio?, Quem é seu pai? Sua mãe, etc., para as quais a menina tinha as mesmas respostas, ou melhor, não as tinha. Cessada suas perguntas foi a vez dela perguntar. Aproximou-se dele, que não se tinha ainda levantado, mas apenas o tórax soerguido, tendo o braço esquerdo apoiado no chão, ficando da mesma altura da menina. Ela olhou-lhe nos olhos, uns olhinhos de menina bem-cuidada (apesar do vestido já não está mais como no dia anterior), nos olhos de um homem sofrido, com barba debutante, quinze anos por fazer, tal qual o cabelo, já nos ombros, digno da adjetivação: trapo humano; nestes aqueles olhos, e ela perguntou-lhe com imensa ternura:
— Quer ser meu pai?
— Eu!? Mas você quer um cara feio como eu para ser seu pai?
— Você não é feio, acho você bonito, parece Jesus.
Aquilo tocou-lhe fundo, atingiu o coração. Jesus foi-lhe apresentado aos quatorze anos, quando leu o Evangelho de São Mateus, e foi nesse mesmo Jesus que ele apostou quando tirou uma prostituta de um bordel para casar-se com ela, e foi feliz em sua aposta, pois a finada tornou-se uma esposa fiel, zelosa, carinhosa, e ainda uma bondosa mãe, adquirindo respeito e admiração de todos. Levantou-se logo do meio dos jornais, dos trapos, da vida maltrapilha, do passado, despediu-se rapidamente do que era, querendo voltar ao que foi. Entrou na água gelada, num poço sob a ponte feito por ele, mergulhou nas águas do batismo, morreu e viveu de novo, retirou toda sujeira, cada migalha de lembrança ruim ajuntada nos poros, livrou-se do mau cheiro. Saiu da água, enxugou-se num pano velho, vestiu sua melhor roupa (é chato e até paradoxal, quanto ao intento do texto a esta altura de empolgação, dizer que ele vestiu sua roupa menos, digamos ruim, escolhida entre suas duas calças velhas e suas cinco camisetas também velhas). Parou frente à menina, agachou-se:
— Você promete que me chama de pai?
Ela exuberante de felicidade, com um imenso sorriso respondeu:
— Prometo.
Pronto. A adoção foi aprovada pelas atuais circunstancias. Eram pai e filha.
— Vou leva-la para tomar café.
— Obá!
Pedro olhou em volta, de valor apenas a garrafa de cachaça. Talvez dessem cinquenta centavos nela, dava ao menos para comprar pães para a sua filha – lembrem-se a adoção foi aprovada. No mais iria proceder como sempre o restante do dia, pois vivia de pegar bicos, era um recado aqui, levar isso ali, até pagar contas tinha quem o mandava fazer, pois era um bêbado, mas honesto. No outro dia também, talvez tivesse que fazer bicos, e quem sabe em quantos mais, mais iria procurar um emprego. Pegou a garrafa de cachaça, a menina perguntou:
— O que é isso?
— Cachaça.
— A gente bebe isso?
— Tem gente que bebe.
— Você vai levar para nós bebermos, papai?
O “papai” empurrou-lhe lágrimas nos olhos com tanta força que foi impossível conter. Virou-se de costas, e disfarçou, respondeu:
— Não, o papai vai vender para comprar pão.
— Não precisa, papai, eu tenho dinheiro.
Ele voltou-se para ela, a qual estendeu-lhe a mão e deu-lhe as duas moedas de real. Ele pegou-as. Refletiu um pouco, destampou a garrafa e jogou a cachaça no rio. Tomou a menina pelo braço e seguiu para a padaria que ficava num retorno ali perto. Sentou-se na mesinha da padaria e pesquisou preços, depois pediu café com leite e pão para ele e a menina. Não faltou quem estranhasse o fato. Ao terminarem ele foi ao balcão pagar, mas o proprietário não quis receber, explicando-se:
— Você, a essa hora, tomando café em lugar de pinga, eu preciso incentivar.
Alguém que entrava na padaria, ao vê-lo com a menina, indagou-lhe logo:
— Uai, Pedro, que menina é essa?
— Agora é minha filha.
Disse já saindo, levando a menina pela Mão.
— E qual o nome dela, Pedro?
Parou à porta, hesitou-se um pouco, virou-se:
— Anjo, o nome dela é Anjo.
E foi saindo.
— Anjo!? Mas Anjo? Isso pode ser nome de alguém? E me vê aí cinco pães.
— Todos de sal?
— Pode ser. O senhor conhece essa criança?
— Não, mas também nunca vi Pedro Cachaça são. Para dizer a verdade, desde que o conheço, nunca o vi sem estar chapado, fosse a hora que fosse da manhã.
— É. É bastante estranho.
Pedro seguiu em direção à barbearia. No caminho alguns perguntaram, e todos, todos estranharam. Chegou na barbearia.
— Será que você cortaria meu cabelo e faria minha barba, Zé, para eu pagar fazendo qualquer serviço aí?
— Cortou o cabelo, fez a barba. Ficou devendo, firmou trato de voltar no sábado para descarregar umas lajotas que viriam entregar ali na parte da tarde. Seguiu para o bar de seu Antonio, na rua do cemitério, teria ele de conhecer esse novo capitulo de sua história. O seu Antonio ficou mesmo abismado ao vê-lo, já quase onze horas da manhã, sem vestígio de bebida, ainda mais assim, cabelos curtos, barba feita. Aproveitando-se de ser velho conhecido pediu para dormir num pequeno cômodo que tinha no fundo do bar e ficava vazio. Inclusive ele mesmo ajudara fazer, em troca de cachaça.
— Claro, Pedro, você pode dormir lá com a pequena... – olhou para a menina, como que lhe perguntando o nome, ela mesma respondeu:
— Anjo.
— ... Anjo. Agora, possivelmente vocês estão com fome; eu vou dar-lhes almoço.
Almoçaram ali.
Um homem e seu protetor; um anjo e seu protegido.
A notícia ressoou, passou de boca em boca. Pedro cachaça havia se regenerado e agora andava pela rua com uma pequena garota. A notícia chegou até Dona Maria.
— Você tem certeza Bertinho?
— Tenho mãe, é aquela mesma menina que estava aqui.
— E agora, Berto? Não vamos fazer nada?
— Maria, não temos qualquer responsabilidade sobre essa menina.
De qualquer forma tornou-se realidade, Pedro Cachaça havia adotado a menina. O nome Anjo foi bem posto, pois ela veio do nada e transformou um bêbado imundo e infeliz em um homem feliz e cheio de planos. Era tal qual como se tivesse descido do céu. Os mais desacreditados procuraram avisar a policia, para esta ficar de sobreaviso caso alguém procurasse alguma criança desaparecida. Também espalharam a noticia pelo Córrego Vermelho e proximidades. Ninguém sabia nada sobre ela.
No Córrego Vermelho passava uma BR, mas para uma criança daquele tamanho vir da BR ao ponto onde foi pega pelo irmão de Francisca teria de ter andado um dia todo ou mais. Ela não conseguiria. Havia um mistério aí, aparentemente insolucionável. Ou então não havia mistério algum, ela era mesmo um anjo. Desceu do céu.
Passou pouco mais de um mês, Pedro já era um novo homem, não resmungava como antes, agora sorria. Dona Maria ofereceu-se para cuidar da menina durante o dia, quando Pedro saísse para trabalhar onde não pudesse leva-la. Nos seus planos, conforme contava no sábado à tarde ao seu Antonio, depois de um dia de trabalho, era a de fazer uma plantação de milho nas terras de um fazendeiro, próximo da cidade, como meeiro. Já havia até conversado com o tal fazendeiro, estava tudo certo, no início do outro mês, setembro, iria preparar a terra. Então, era só esperar a chuva.
— Se do céu caiu um anjo para você, Pedro, imagina chuva!
Saiu do bar do seu Antonio pela ultima vez na vida, veio um anjo do céu e levou-lhe a alma. Os médicos disseram que foi infarto do miocárdio, ou coisa parecida.
Talvez o coração dele não suportou voltar à felicidade. Foi mais de um mês feliz, a menina Anjo trouxe-lhe de volta a vida, aquela essência do fato de viver que muitas vezes a desesperança nos tira. Parece aquela estória de Mario Quintana?(Confirmem), em que um homem sai para pescar, pega um pequeno peixe, mas ele não morre e o pescador resolve adotá-lo como animal de estimação, e leva-lo consigo para todos os lugares. Um dia porem, ao passar nas proximidades de um lago (ou rio, falha-me a memória), creu ser direito devolver o peixe ao seu habitat, e jogou-o na água. A água fez um redemoinho e aos poucos foi se acalmando, acalmando, acalmando, e o peixe morreu, afogado. (AH! Mestre, admiração e respeito nos cumprimentos de um discípulo). Parece análoga a história de Pedro.
Por ele ter passado quinze anos bêbado talvez alguém possa pensar que não havia ninguém no enterro, mas pelo contrario, muita gente estava lá. Pedro era conhecido por todo mundo na cidade, e de certa forma, amado a seu modo. Por aqueles últimos dias, muitos, como seu Antonio, que o conheceram antes, apostavam na possibilidade dele recuperar tudo quanto perdera, no campo financeiro. Ao menos morrera em plena esperança de felicidade. Pode-se dizer que ele conheceu Anjo e foi feliz pelo resto da vida.
No momento em que desceram o caixão, e era um caixão bonito, doados pelos donos de boteco da cidade, com uma coroa de flores em cima, homenagem do seu Antonio, a menina, a pequena Anjo, estava em frente, agarrada à boneca. É aquele momento de grande tristeza, em que impera o silêncio, e quando é jogada a primeira pá de terra sobre o caixão, ecoa um ruído característico por todo o cemitério. Nesse momento, em que a primeira pá de terra foi jogada, a menina gritou:
— Não!
O coveiro parou, a atenção de todos voltou-se para ela.
— Se você enterrar o papai, ele nunca mais vai sair daí, eu vou ter que ficar sozinha, e eu não quero ficar sozinha.
Silêncio, muito silêncio.
Durante um bom tempo Anjo sentiu falta de Pedro, mas acostumou-se por final. Dona Maria e seu Adalberto registraram-na como filha, batizaram-na, educaram-na. No entanto, não conseguiu atingir o status de filha, não lhe compravam roupas, usava as que Fernanda já não queria ou não lhe servia mais, uma vez que Fernanda se desenvolvia na frente. Recebia comida, abrigo e estudos. Seu Adalberto e dona Maria acreditavam estar dando tudo o que Anjo necessitava, mas não era bem assim. Anjo sentia-se vivendo de favor, mesmo trabalhando ali tal uma doméstica, por cujo trabalho não recebia salário. Não conseguiu um relacionamento de Irmã com Fernanda, a própria Fernanda fazia questão de deixar clara a posição de cada uma. Em qualquer discussão ou briga entre ela e os outros ela quem perdia, era indicada como errada. Recebia enfim tratamento diferenciado. De certa forma, ao não ser tratada como queria, ela não se sentia parte da família. Em parte devia-se a culpa a dona Maria e seu Adalberto, pois a adoção ficou no papel, em parte devia a culpa ao fato dela ser frustrada por não saber quem realmente era, de onde veio, quem era sua família, seu povo. À medida que ia crescendo, essas coisas todas foram acentuando-se mais. Aos dez anos ingressou na puberdade, veio a menarca, seu corpo começou tomar formas de mocinha, com inclusive o surgimento dos seios. Aos onze arranjou o primeiro namorado.
O ingresso na adolescência já havia acelerado o crescimento da rebeldia de Anjo, mas o namorado ainda mais o fez. Dona Maria se opôs radicalmente, ela ainda era uma criança. No entanto, ao ir aconselhá-la a esse respeito, ouviu dela:
— Você acaso é minha mãe?
O erro veio do início, não a fizeram sentir-se filha, e não a educaram quanto à sexualidade, ela não sabia exatamente o que era de fato certo ou errado. Seu Adalberto e dona Maria temiam o pior, o pior aconteceu. Ela tinha o rosto lindo, os cabelos muito bonitos, no entanto era magricela, o seu namorado era o tipo conquistador, com seus dezessete anos, gostava de colecionar números, achava Anjo muito criança, mas percebeu que poderia lucrar com seu “impasse familiar”. Partiu para tentar seduzi-la, conquistar sua intimidade, seu corpo. Disse-lhe que toda menina quando namora transa, não tinha porque ter receio ou vergonha, não era nada anormal ou errado, ainda que tivesse onze anos. Ninguém lhe disse o contrario e ela acreditou. E como disse o rapaz a seus amigos:
— Nem precisei suportá-la por muito tempo.
Tão logo conseguiu obter sucesso em sua investida, pôs-se ele de fora. Ela, ao perceber que fora usada, enganada, amargurou-se, mas nada podia fazer. O pior foi ouvir os amigos dele, ou melhor, a turma dele, comentar sobre ela, com deboche. Perdeu o namorado e a dignidade, jurou-se não ficar com outro homem mais nunca em sua vida. Mas o pior ainda estava por vir. Não se sentindo muito bem foi ao posto médico, fez exames de urina, fezes e sangue. Dona Maria foi pegar o resultado no outro dia de manhã, já que necessitava ir ao posto. Quando chegou em casa abriu o exame por curiosidade. O resultado era gravidez. Dona Maria custou crer. Naquele dia Anjo ia ajudar a irmã de dona Maria, por isso chegaria no inicio da noite, uma vez que a casa da irmã da dona Maria ficava do lado oposto do colégio, vir almoçar e voltar seria enorme perda de tempo. E agora? Hora do almoço, família reunida.
— Vamos fazer o que agora, Berto?
— Ora, Maria, como continuar com ela aqui? Temos uma filha moça dentro de casa.
— Não tem nada a ver, pai, cada um tem a sua cabeça.
— Concordo com seu pai, filha, e tem também três rapazes dentro de casa.
Fabrício, o mais novo, logo disse:
— Se vocês querem expulsá-la de casa, tudo bem, mas não nos coloque no meio, por favor.
— Realmente, vocês estão insinuando que se eu ficar grávida de uma hora para outra a culpa é dela.
— Vira essa boca pra lá, menina!
— A senhora acha que ela é santinha, mãe?
— O que você sabe da minha vida Amaro, hein!? O que você sabe?
— Respeite sua irmã, rapaz! Ordenou seu Adalberto.
— O que vocês estão esquecendo é que ela ainda é praticamente uma criança, não fez se quer doze anos.
— Nada disso, Bertinho, você é que esta se esquecendo de que fomos eu e seu pai quem lhe damos essa idade arbitrariamente, e tenho certa desconfiança que erramos, ela já deve estar com quase treze.
No final venceu a acusação. Chegaram juntos à conclusão de que Anjo devia mesmo ser mandada embora de casa. Seu ato consistia num fato de grande desagravo à família. Anjo chegou por volta das sete e pouca. Entrou para o quarto na intenção de trocar de roupa. O exame estava aberto sobre a cama. Ao conferir o resultado desesperou-se em principio, de forma silenciosa na intimidade do quarto. Repensou sua vida. Tinha sido má comportada. Fora acolhida ali, desrespeitara aquela família. E conhecia bem o conservadorismo de seu Adalberto e dona Maria, não teria sido talvez mais ingrata de qualquer outra maneira, aquela era a pior possível. Que tipo de caráter se atribui a meninas que se engravidam antes dos quinze anos? Que se fala de seus pais e ou responsáveis? Na verdade não foi sua culpa, tinha sido vitima de todo um processo, mas isso já não contava agora. Seu Adalberto, por certo, iria dar-lhe uma boa surra e expulsá-la de casa. Tinha ouvido outras vezes, quando Fernanda se enfeitava de mulher, que se ela acaso engravidasse por aí iria ser expulsa de casa, depois de uma boa surra. Devia preparar-se já. Olhou em volta no quarto, nada era seu, a não ser uma roupa de dormir, bem simples, sendo uma blusa transparente, e um short de cor rosa, e também, é claro, o vestidinho, os sapatos e meias, e o lacinho, com os quais chegara ali, dona Maria lavara-os e guardara-os de recordação. No mais as roupas eram de Fernanda, ainda que inutilizadas por as medidas se inadequarem, ou mesmo Fernanda desprezá-las por algum outro motivo, elas continuavam sendo dela. Dizia-se: esta blusa de Fernanda que Anjo esta usando, aquela calça que Anjo usa; jamais a calça de Anjo. Lembrou-se dos tamancos azuis que tanto desejara. Fernanda comprou e usou-os até que começaram a quebrar-se, deu-os então a ela, que os consertou, um pouco depois chegou em casa e procurou-os para ir à igreja, mas não os encontrou:
— Nandinha, você viu os tamancos azuis em algum lugar?
— Eu os dei a uma mulher que passou aí pedindo coisas.
Chorou por aquilo.
Vestiu sua única roupa, a de dormir, não apanhou sutiã nem calcinha, pois nem isso tinha, ficou descalça, colocou o vestidinho, o lacinho, os tamanquinhos e as meias numa sacola, juntou em cada canto do quarto e da alma coragem e preparou-se para sair.
Na sala estavam à sua espera. Anjo era humilde, simples, passiva ate, e mesmo submissa, mas quando lhe dirigiam a palavra com certa autoridade no sentido de vida, tipo ‘você está errada porque este ato x leva à consequência y’, ela reagia muitas vezes agressiva. Quando lhe chamavam a atenção por algo errado em casa, como ter falhado na limpeza dos móveis, da casa, ou por ter exagerado no sal do arroz, ela abaixava a cabeça e corrigia o possível, mas quando lhe vinham falar sobre aquele namoro, que todos reprovavam, ela ficava agressiva e violenta. Queriam ver naquele momento como ela reagiria, certamente iria tentar ostentar a empáfia. Acaso daria respostas como aquela de quando dona Maria lhe fora dar conselho: “acaso você é minha mãe?” Seu Adalberto dar-lhe-ia uma boa surra de cinto, dir-lhe-ia para, no outro dia após a escola, procurar um lugar para ficar, pois não a aceitava mais dentro de casa. A surra seria ali na sala, à frente de todos, isso seria bom para alertar Fernanda, que certamente agora iria pensar duas vezes antes de deitar-se com alguém. A noite era propícia para tal, pois vinha forte tempestade se formando, os trovões e relâmpagos anunciavam que a chuva se aproximava impetuosa. Vagabunda! Isso era o que ela era, não demoraria muito para ela tornar-se uma dessas zinhas por aí, que os homens põem em seus carros e vão para onde bem entendem. Vai ver era filha de alguma rapariga, e fora abandonada no meio do nada, sequer nome recebeu. E quando ficou sozinha em casa? Não teria trazido aquele qualquer, seu escolhido, para dentro de casa, desrespeitando aquele lar de família? Assim, foram um a um pegando as pedras, tão logo estivesse na sala apedrejá-la-iam.
A televisão estava desligada, o temporal aproximava-se com muita violência ameaçando danificá-la. Seu Adalberto estava sentado de frente para a porta do corredor, de onde viria Anjo, dona Maria em outro sofá, bordando, Roberto, Amaro e Fabrício, respectivamente, liam um livro, uma revista e outra revista, Fernanda lixava as unhas. Ouviram a porta abrir-se, após os passos no corredor aproximando-se da sala. Seu Adalberto preparou o cinto, o ruído dos passos parou por uns instantes, voltou logo em seguida, todos esconderam as pedras, levando as mãos para trás das costas. Chegou à sala. Queria ir até seu Adalberto, não conseguiu, alguns passos apenas em direção ao centro da sala, suas pernas não podiam ir mais. Ele levantou-se, ela começou a chorar, a tremer, encolheu-se em forma de defesa. O ruído do cinto em seu corpo, seu soluço e gemido, no mais silêncio. Do lado de fora trovões, e a voz comum das ruas. Apanhou por dois minutos, em pé, no mesmo lugar. As pernas porém fraquejaram, caiu de joelhos, seu Adalberto voltou ao seu lugar. Ela ainda ficou algum tempo sentada no chão, recuperando-se, chorando muito. Levantou os olhos, passou-os por todos, tinham parado seus afazeres, olhavam para ela. Levantou-se, andou um pouco em direção à porta, acompanhada com olhos, olhos em olhares de acusação. Levantou a sacola, abriu-a:
— É só a roupa que eu cheguei vestida, e não estou levando nenhuma calcinha, não.
Falou mostrando que estava sem calcinha.
Levou a mão à porta, virou-se.
— Deus ajude vocês, dê-lhes em dobro tudo o que me deram, o mau que lhes fiz faça-lhes Ele o bem três vezes mais. E se um dia, não permita Deus, vocês precisarem, darei até a minha vida para ajudá-los.
Abriu a porta e virou-se mais uma vez para a sala:
— Fiquem com Deus.
Disse olhando para toda a sala, os móveis, o lugar enfim. Ficou parada ali alguns instantes, como se despedindo de tudo. Jesus entrou pela porta aberta, estava coberto por um manto azul, com uma coroa suspensa à cabeça, formada pelo ouro da terra, cravejada de estrelas do céu, seu rosto brilhava. Trazia as suas cicatrizes parecendo ainda sangrando. Sentou-se na mesinha de centro e ficou brincando com o cinzeiro em forma de carro de boi, e Ele empurrava-o de um lado para o outro. Ao verem-nO, lembraram-se logo do que Ele diz – “diz” e não “disse”, pois ainda vive e sua palavra não passa —: “Aquele que de entre vós está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela – Jó 8, 76”. Folgaram os dedos e soltaram as pedras. Anjo baixou o olhar, virou-se para a porta e partiu em direção à noite. Transpôs a porta, levantou a mão à maçaneta e foi fechando-a. Jesus levantou irritado e disse: “O que vocês deram para ela? Vejam a roupa da sacola, ela quem trouxe quando aqui chegou, e a roupa que veste, comprou com o dinheiro que alguém de fora deu. Foi a escrava de vocês, trabalhou em troca de comida e morada, e do direito de usar roupas velhas. Agora, que precisa tanto de uma família, vocês deixaram-na perceber a mentira de vocês, pois nunca foram a família dela. Despendem-na assim, seminua e descalça, jogam-na na noite em meio a uma tempestade”. Antes que de todo a porta se fechasse, Fernanda manifestou-se:
— Anjo!
A porta voltou a abrir-se. Fernanda foi em direção a ela, descalçou as suas sandálias, já gastas, oferecendo-lhas:
— Tome, calce isto.
— Obrigada, Nanda! Eu sei que você deve estar temendo por você, pois não estamos livres de nada, e pode acontecer um dia com você, mas veja, se lhe sobrevier tamanha falta de sorte, não será assim como está sendo comigo, pois como você me disse um dia: “Eu sou filha, você é nada”.
Deu-lhe um forte abraço, um beijo no rosto e saiu. Fernanda fechou a porta e correu para o quarto, às lagrimas. Naquele instante um forte relâmpago interrompeu o abastecimento de energia, toda a cidade ficou às escuras. Seguiu-se um estrondoso trovão, fazendo estremecer. Imediatamente a chuva veio, Fernanda voltou correndo para a sala, agarrou-se à sua mãe. O coração de todos ficou menor, e se acontecesse alguma coisa a Anjo? Sabiam o quanto ela tinha medo de tempestades, e também temia o escuro, quando as vezes faltava energia ela corria para o quarto e cobria-se toda, dos pés à cabeça. E ficaram esperando que ela voltasse, batesse na porta e pedisse para ficar só mais aquela noite.
— Berto, sinto vontade de ir procurá-la. Eu sei que ela não vai voltar. Se acontecer alguma coisa com ela, não vou perdoar-me nunca.
— Não a mandamos embora, Maria, ela foi porque quis, mas quando a chuva passar, se ela não tiver voltado, vou ver se a encontro.
Ele também estava preocupado. Por pior que ela fosse não merecia aquilo. Além do mais, era uma menor sob sua responsabilidade. Sua culpa o questionava, não havia feito sequer um carinho, um afago nos cabelos no muito. Não lhe trouxera presentes no decorrer dos Natais, nem lhe trouxera chocolates pela páscoa. Tão logo a chuva cessasse iria á procura dela. E dona Maria? Também se condoía. Ela e Fernanda não faziam quase nada dentro de casa, Anjo era quem fazia tudo, não passava de uma empregada doméstica, melhor, escrava, pois não recebia salário em troca. Pode-se dizer que as pedras por eles apanhadas para atirarem em Anjo, ao cair de suas mãos, caíram em seus calcanhares.
Ao sair Dali Anjo não tinha a mínima ideia de onde ir. A luz do relâmpago paralisou-a, a cidade às escuras e os primeiros pingos d’água quase a fizeram voltar, mas não podia, não tinha coragem de pedir-lhes abrigo ao menos por aquela noite. Só uma coisa a fazer, procurar o pai do seu filho. Foi rapidamente à sua procura. A casa dele não ficava longe, apesar da escuridão chegou logo. Vinha protegendo a cabeça com a sacola plástica onde trazia a roupinha. A porta ficava ao lado da garagem, o portão estava aberto e ela entrou, bateu na porta. A mãe do rapaz veio atender, a luz da vela foi insuficiente para mostrar-lhe a real situação de Anjo. Foi chamar o filho, anunciando-lhe:
— Tem uma moça aí na porta querendo falar com você.
— Moça!? Nesse temporal? Eu, hein?
Ele estava em seu quarto tocando violão, deixou tudo lá, pegou uma lanterna e veio à porta. Tão logo percebeu Anjo, ralhou com ela:
— O que você está fazendo aqui?
— Escuta, eu estou grávida, eles descobriram e puseram-me para fora de casa.
— E daí?
— Como e daí? Você é o pai da criança que estou esperando, tem que me abrigar.
— Primeiro, fala mais baixo, segundo, eu não sou pai dessa criança coisa alguma, e terceiro, eu não tenho nada com você, não quero ter, portanto vê se dá o fora!
— Você sabe que o pai é você.
— Sei é nada. Agora vá embora e não volte nunca mais.
Saiu puxando-a pelo braço até o portão, abriu-o, não se apiedou nem mesmo percebendo a intensidade da chuva.
— Eu vou para onde?
— Não sei, problema seu. E escute bem, se você aparecer de volta aqui em casa eu vou dar-lhe uma surra tão grande que você vai até perder o caminho de casa.
Disse isso empurrando-a com violência para o meio da rua, ela caiu junto ao meio-fio, cortou a testa e o joelho, e ficou sentindo dores no braço, pois caíra sobre este. O rapaz fechou o portão e voltou para dentro de casa, sua mãe até lhe perguntou pela moça, mas ele afirmou se quer conhecê-la. Anjo ergueu-se com dificuldade, precisou do auxílio de um relâmpago para encontrar a sacola, pois esta fora parar longe com a queda. Saiu meio tonta e abrigou-se debaixo de uma cobertura de bar, o vento, no entanto, continuava a jogar chuva contra ela. Decidiu voltar para a casa de seu Adalberto, iria esconder-se na área, no outro dia bem cedo sairia, antes de todos darem por sua presença. E certamente nem levantariam tão cedo, pois seu Adalberto estava desempregado, seu patrão havia vendido o caminhão, havia ido pela última vez naquela manhã mostrar o percurso ao novo carreteiro. Ficou pensando se isso não havia contribuído para a agressividade do seu Adalberto, fazendo-o dar-lhe tão árdua surra. Desde há um mês, quando seu patrão anunciara que entregaria a linha de leite em trinta dias, seu Adalberto trazia-se triste e preocupado, mesmo tendo os seus filhos empregados, inclusive Fernanda, numa loja de roupas.
A chuva reduziu-se um pouco, os trovões e relâmpagos pouco a pouco cessavam, o temporal havia passado. Anjo estava imóvel, apenas chorava, e chorava de dor. Seu braço e seu joelho doíam muito, a testa, apesar de ainda estar sangrando, não lhe incomodava tanto. Por estar encolhida, já se havia ensanguentado toda. Quis andar, mais doía muito mesmo o joelho, a ponto de impedi-la. Resolveu ficar um pouco mais ali, talvez o joelho melhorasse.
A chuva parou por completo, seu Adalberto preparou-se para sair. Roberto disse-lhe:
— Olhe, pai, ela certamente deve estar na casa do namorado.
— Claro! – Deduziu Fernanda – Ela não sairia de casa desembestada daquele jeito, sem ter aonde ir.
Dona Maria intercedeu:
— De qualquer forma, Berto, vá conferir, só para nos tranquilizar.
Seu Adalberto foi em direção à casa do rapaz. Anjo esperava, tremia de frio, gemia de dor. O temporal havia passado, trovões já quase não se ouviam mais, mas os relâmpagos ainda clareavam tudo. A rua estava deserta, passou uma motocicleta, depois dois homens conversando, e a rua voltou a estar deserta. Pensou em pedir ajuda, mas desistiu. Viu aquele homem vindo ao longe, os relâmpagos mostraram-lho ainda longe. De um relâmpago para outro o homem aproximava-se rapidamente. Parecia, pelo jeito de andar, seu Adalberto. Os passos do homem iam passando por ela, do outro lado da rua, começou a rezar para relampejar, e assim certificar-se se era mesmo seu Adalberto. Os passos denunciavam ser dele, mas ela temia. Os passos passaram, a dor, o frio, o medo de ficar ali sozinha fê-la gritar:
— Seu Berto!
Os passos pararam, voltaram, agora direcionados a ela. Chegou junto dela, que suplicou-lhe:
— Pelo amor de Deus seu Berto, ajude-me!
— O que ouve?
— Eu caí, machuquei o joelho e não consigo andar.
— Venha, eu vou levá-la.
Pegou-a no colo. Pela primeira vez na vida, pegou-a no colo. A noite não estava de todo escura, havia luz numa parte da cidade, a esta hora era possível ver o vulto das coisas. Quando estavam a poucos metros de casa, o abastecimento elétrico foi restabelecido. Ele pôde então perceber como ela estava mal. Levou-a pelo fundo. Todos foram encontrá-los, dona Maria empalideceu-se:
— Meu Deus! Mas o que houve?
— Ela caiu.
Dona Maria e Fernanda levaram-na para o banheiro, ajudaram-na a banhar-se, depois Fernanda deu-lhe roupas e fez curativos em suas feridas. Fez uma análise primaria no braço, conclui não estar quebrado. Ela não conseguia parar de chorar. Depois que a puseram na cama e cobriram-na, ela lhes disse:
— Eu prometo que amanhã bem cedo eu vou embora.
Seu Adalberto respondeu-lhe:
— Não, você vai ficar aqui até conseguir lugar certo para morar.
— Mas seu Berto, eu acho que nunca vou poder retribuir.
— Quem faz algo por alguém, faz por Deus, e quem faz algo por Deus não fica sem recompensa.
E foi assim, ficou por uma semana, depois por outra, e seu Adalberto quis que ela ficasse até ter o filho. Era uma menina, ela pôs-lhe o nome de Marcele Luiza. Não sabia como mas aquele nome lhe parecia familiar. Também no vestido seu, com o qual viera vestida, havia bordado no bolso suas letras: ML. Depois do nascimento da criança ela procurou o padre Lucas José, ou simplesmente LJ, como era conhecido. Foi pedir a ele para morar em um casebre no terreno de uma capela, o casebre havia sido feito para abrigar uma certa mulher louca, que vagava pela rua, ela havia morrido e o casebre estava abandonado.
— Eu cuido da capela para o senhor, padre.
— Mas menina, você vai viver de quê?
— Como assim, padre?
— Vai comer como, se você não tem trabalho?
— O senhor me daria comida?
— Só se for hóstia, minha filha.
— Por favor, padre.
— Tudo bem, vá e depois resolvo isso.
Ela foi. Passou a morar no casebre. Não é justo falar casebre, melhor seria dizer casinha simples, ou simplesmente casinha. Ganhava coisas das pessoas, comida, roupa para sua filha. Manteve-se na linha, não se prostituía, nem sequer namorava que fosse, porém às vezes embriagava-se, talvez por tamanha tristeza que sentia, por não ter no mundo alguém, por ter um passado incompleto. Aconteceu de dormir bêbada na rua, a menina, coitada, dormiu abraçada a ela, numa calçada qualquer. Não tinha qualquer emprego, vivia de esmolas (ainda que não ficasse nas ruas pedindo) e de serviços sem importância, ajudando um e outro em troca de algumas moedas. Comprava comida, coisas para sua filha e, de vez em quando, cachaça. Estranhas reminiscências de Pedro Cachaça.
A família de seu Adalberto, como também ele, ficavam admirados com ela, apesar de ter tornado-se mãe solteira aos doze anos, estar solta no mundo, não se tornou mais uma dessas raparigas de rua. Quando souberam que ela estava se embriagando Fernanda foi até ela.
— Anjo, não faça isso. Você tem uma filha para criar, não pode ser assim.
— Às vezes não consigo segurar, sinto-me tão perdida, Nanda, como se eu não tivesse lugar no mundo. É difícil demais.
— Eu sei que é difícil. Lá em casa também as coisas estão difíceis, Roberto está na faculdade, mas o Amaro, Fabrício e eu estamos parados. Meu sonho é estudar mais agora não tem jeito, o papai está sem emprego, e ainda por cima, doente. Estamos gastando o que não temos, sinceramente às vezes passamos necessidade de algumas coisas para Berto continuar estudando.
Para o fim, Fernanda pediu-lhe ao menos que, quando quisesse embriagar-se, levasse a menina para sua casa. Em que ela acabou concordando.
O padre Lucas havia sido transferido da paróquia, alguém ali da comunidade daquela capela achou de querer desocupar a casinha onde estava Anjo. Intentava levar para lá um certo senhor que inspirava cuidados. Alegava que Anjo era jovem, podia conseguir emprego, e o velhinho ali perto facilitava-lhe o trabalho. Deus sabia que ela (o alguém) estava mentindo, não estava errada em seus argumentos, mas sua real finalidade era tirar Anjo da casa. Nós católicos que acendemos a vela do altar ou ajeitamos a batina do padre sabemos que entre nós há pessoas infinitamente más. São espiões do diabo dentro da casa de Deus, os assassinos de Cristo ainda perambulam entre a arca e o altar. Levam a bíblia na Mão direita e fazem o mal com a esquerda. Passam a semana toda dentro da igreja, “trabalhando de graça para o padre”, às vezes nem vão em casa comer, mas são víboras miseráveis, com o corpo voltado para Deus e o coração voltado para o diabo. Ferem os joelhos de tanto ficarem ajoelhados, rezam o terço todos os dias, e não conseguem estas pessoas sequer descobrir que são tão más. Eu recomendar-lhes-ia o Evangelho de São Mateus, capitulo 12, versículo 7.
Não penso, no entanto, em tornar-me protestante, gosto dos ensinamentos católicos, do nosso jeito de pregar, vejo como eles pregando mais no estilo: “Não faças o mau, teme a Deus”, enquanto seguimos mais no estilo: “Não faças o mal, Deus te ama”. Não tenho nada contra o protestantismo, ou melhor, contra a igreja protestante enquanto igreja, seu louvor em cantos e orações, sua coragem e lealdade em falar o nome de Jesus em qualquer canto, ambiente e lugar, mas enquanto protestante, já tenho ressalvas, parecem crer piamente que Deus é evangélico, e que delegou a eles o poder de julgar, conferido apenas a Cristo, e com esse poder insinuam que o Papa é a besta, entre outras coisas, parecem absolutos na certeza de que o único caminho certo é o deles. Não aceitam o batismo na igreja católica, rebatizando os católicos que por ventura ingressem em suas igrejas, ora, não se pode rebatizar no mesmo Espírito, nem se lava a alma com água, pois esta é apenas simbólica. E não há um homem na terra, nenhum sequer, que possa julgar o Espírito Santo de Deus, e garantir que ele não se derrama sobre nossas crianças com o batismo, elas que possuem o Reino do Céu (Mateus 19, 14). Eles zombam da nossa fé em Santos, de nossa devoção a Maria, não entram em nossas igrejas – a não ser em casamentos, formaturas, etc. –, têm-nos como pecadores, também divergimos de muitos dos seus ensinamentos, proíbem bebida alcoólica, mas vinho é álcool e Jesus transformou a água em vinho, algumas proíbem cortar o cabelo, mas sabemos que São Pedro não montou qualquer perucaria no céu. Enfim, muitas coisas nos dividem, porém são muito pequenas em relação àquilo que nos une, o próprio Cristo, por isso devemos evitar discussões bobas, como adverte-nos Paulo em sua Segunda Carta a Timóteo, no capítulo dois, versículos vinte e três em diante. Finalmente, devemos crer à nossa maneira e respeitar a maneira de crer do irmão, pois Deus transcende nossa capacidade de compreender.
O certo é que Anjo foi para a rua, uma adolescente de quatorze anos de vida, com uma criança de dois anos de idade. Anjo e seu anjinho. Voltou a habitar embaixo da ponte, no mesmo lugar onde encontrara Pedro Cachaça. Não raras vezes se embriagava, levava a menina para a casa de dona Maria e sumia na rua. Nem sempre voltava para sua casa, ou devo dizer “casa”, entre aspas, estas lhe fazem imaginar o sentido em que tal palavra adquire aqui, amanhecia pelas calçadas. A menina, logo que acordava, queria a mãe. Então levavam-na até encontrar Anjo, às vezes ainda dormindo. A menina, a pequena Marcele Luiza, sentava-se a seu lado e ali ficava até que acordasse. Em não muito tempo, tornou-se uma moradora da rua, com algumas coisas em um saco – dentre elas os sapatinhos, as meias, o laço de fitas azuis, o vestidinho – perambulava de calçada em calçada, de toldo em toldo. Dona Maria fez muito para ficar com a menina, mas ela não dava, não menos fez a avó paterna, do rapaz não ter reconhecido a paternidade sua mãe repetia:
— Que tem aquele pobre anjinho a ver com isso?
Mas Anjo não abriu mão de sua única riqueza, e Marcela Luiza ia com ela, sempre tendo por perto alguém da família de seu Adalberto e sob tutela continua da pastoral da criança. Apesar dos pesares, Anjo tinha bastante zelo pela sua filha, precisando a menina de alguma coisa corria ela em busca de ajuda. O rapaz, pai da criança, evitava Anjo, principalmente se perto dos colegas e se ela estivesse bêbada, pois apesar do tempo corrido temia alguma gozação, que de quando em quando acabava acontecendo, e se Anjo chegava com a menina então ele saia rapidamente, mas sempre, sendo possível, deixava pago balas, doces, chocolates etc. para a menina. Afastava-se não poucas vezes aos insultos dos amigos:
— Volte cá, moço! Venha dar a benção à sua filha.
Anjo mantinha-se em silêncio. Um dia Anjo chegou com Marcele Luiza e ele estava sozinho numa pequena praça, ninguém por perto. Anjo disse à menina:
— Vá até seu pai.
A menina foi em direção a ele, ele percebeu-a, levantou os olhos e viu Anjo, após, conferiu em volta se havia alguém. Anjo não pôde ouvir, mas ele pegou na mão da menina, dando-lhe a benção, e disse mais qualquer coisa, depois deu-lhe dinheiro, curvou o corpo e beijou-lhe o rosto, e saiu às pressas, agora já não tinha medo dos colegas, mas de si mesmo. Parece ter saído a pouco das lagrimas.
Na casa de seu Adalberto as coisas pioraram com o falecimento de seu Liontero. Ele era um bom homem e gostava muito de seu Adalberto, pois este, logo quando começou a sua vida de ajudante de carreteiro, auxiliava muito seu Liontero, o seu trajeto em tal época passava pelo ainda sitio do seu Liontero. Ao ver seu velho amigo doente e necessitando de ajuda não media esforços esse bondoso fazendeiro, pagava o transporte de Roberto para a faculdade e mandava leite todos os dias, mandava também vários produtos da fazenda. Colocou ainda seu carro à disposição, para caso seu Adalberto precisasse ir fazer algum exame fora, n’outra cidade. Os quatro filhos de seu Liontero, que era viúvo, resolveram vender a fazenda, recomendaram porém ao novo proprietário o leite de seu Adalberto, o qual não fez objeção.
O novo proprietário era um bom homem também. Casado, não tinha filhos. Haviam perdido a única filha aos três anos de idade, num acidente de carro, onde morreu seu cunhado, irmão de sua esposa, que estava ao volante. Ele havia levado a sobrinha para passar o fim de semana em sua casa, com a sua filha, trazia-a de volta no domingo à tarde, mas não chegou nem deu noticia, na segunda de manhã encontraram o carro com dois corpos dentro, um de adulto, outro de criança, carbonizados. Apesar da tragédia aquela pobre mãe, de nome Ana, recuperou-se para a vida, contudo não conseguiu mais engravidar. Seu esposo chamava-se Ranulfo.
Eles não pretendiam morar ali, apenas passar uns dias para organizar as coisas, aproveitando o período de férias de seu Ranulfo, que era médico. Ficara sabendo da fazenda por um dos herdeiros, que lhe alugava o local onde funcionava o consultório. Seu Ranulfo havia passado-lhe o interesse em comprar terras.
Por aqueles dias seu Adalberto piorou. Anjo foi visita-lo quinta-feira à tarde.
— Anjo! Aproxime-se.
— Oi, seu Berto. O senhor está bem?
— Vou ficar. Preciso de uma cirurgia. Vou realizá-la, se Deus quiser, mês que vem.
— Não pode ser já?
— Não tenho condições, vou ter que esperar pela prefeitura.
Anjo entristeceu-se, tinha o pressentimento de que seu Adalberto não conseguiria esperar tanto. Saiu deixando a filha com Fernanda, embriagou-se e caiu na calçada da padaria, ali mesmo dormiu e passou a noite. No outro dia bem cedo a menina deu de querer, como era costume, ir atrás da mãe. Fernanda impedia-a, apesar do choro em protesto. Amaro disse-lhe, chegando da rua:
— Pode deixa-la ir, Nanda, Anjo está ali na padaria.
Então Fernanda soltou a menina.
Naquela mesma hora seu Ranulfo e dona Ana vinham da fazenda, estavam indo embora. Seu Ranulfo parou o carro frente à padaria, do lado oposto. Desceram ele e dona Ana. Quando voltaram para o carro, estando parados à porta do motorista, dona Ana virou-se sem segunda intenção, Marcele Luiza estava de costas para ela, com os joelhos no chão, sentada sobre os calcanhares, ajeitando a roupinha de uma boneca. A semelhança entre ela e a filha de dona Ana morta era grande, ela era idêntica, naquela posição. O cabelo, os ombros, o tamanho, era tão parecida! O tempo perdeu o sentido e dona Ana esqueceu-se dele, a razão empalideceu-se, parecia ter voltado ao dia em que viu sua filha pela última vez, naquela mesma posição, quando foi chamá-la para ir ver a priminha. O tempo perdeu o sentido, a razão empalideceu-se, a morte morreu, e dona Ana viu-se de novo à porta do quarto de sua filha, chamou por ela:
— Marcele! Marcele Luiza!
A semelhança ultrapassou os ombros, os cabelos, a posição, chegou ao nome. Seu Ranulfo olhou para ela, seguiu a direção dos seus olhos e estatelou o olhar na menina, percebeu o risco que sua esposa corria, antes de acordá-la do “transe” ela voltou a chamar pela filha:
— Marcele Luiza!
Anjo teve um sonho, estava no fundo de um longo corredor, ouviu sua mãe chamar, no momento em que dona Ana chamou pela segunda vez Anjo acordou, colocando-se sobre os cotovelos, respondendo:
— Oi!
Nesse mesmo instante também a menina virou-se ao ouvir o segundo chamado. Não era tamanha a semelhança, parecia-se um pouco apenas. A morte ressuscitou, a razão recuperou-se, o tempo revigorou seu sentido. O brilho da felicidade trazida pelo desvario cedeu novamente à opacidade da tristeza nos olhos de dona Ana. Seu Ranulfo pôs-lhe a mão no ombro, beijou-lhe o rosto, conduziu-a à porta do carro. Anjo pôs-se de pé, chamou-lhe:
— Mãe!
Ela enrijeceu-se, seu Ranulfo forçou-a a entrar no carro.
— Vamos, Ana.
Fechou a porta e deu a volta, entrou no carro também. Anjo cruzou a rua correndo, seguiu para a outra porta. Dona Ana assustou-se com sua presença à porta, seu Ranulfo acionou o vidro automático. Enquanto Anjo ia dizendo:
— Mãe, você veio buscar-me! Eu sabia que você viria, eu nunca deixei de acreditar.
Dona Ana, no entanto, não lhe encarava, e antes mesmo do vidro se fechar por completo, o carro – cujo motor ficara acionado – foi saindo.
— Por favor, mãe, não vá, fique comigo!
Dona Ana derramou-se em prantos, mas sentiu compaixão de Anjo.
— Volte Ranulfo, dê uma esmola àquela pobre criança.
Seu Ranulfo voltou. Anjo ficara no mesmo lugar, o rosto já se lhe molhava. O carro voltou para onde estava, o vidro abriu, seu Ranulfo pegou uma cédula de cinquenta reais, dona Ana entregou-a a Anjo.
— Obrigada! Eu sei que a senhora é minha mãe, mas a senhora não acredita. Posso ao menos dar-lhe uma coisa?
Dona Ana e seu Ranulfo se olharam, consentiram. Enquanto ela ia, no entanto, seu Ranulfo disse:
— Ela vai querer dar-nos a menina.
Pensando assim saíram. Anjo estava apanhando a sacola, só queria dar-lhes as roupas. Ainda tirou o vestido, o vestidinho azul, levantando-o em direção ao carro e sussurrando:
— Eu só queria dar-lhes isto.
Dona Ana virou-se para trás, viu o vestido.
— Pare o carro, Ranulfo.
Seu Ranulfo parou, olhou para trás.
— É só um vestido parecido, Ana, essa menina deve saber o que nos aconteceu e está tentando impressionar você.
— Volte, Ranulfo, por favor.
Ele voltou. Anjo pegou a sacola e levou-a até o carro. Dona Ana pegou o vestido com as iniciais ML, o laço de fitas, as meias, os tamancos. Parecia impossível, mas era verdade. Seu Ranulfo ponderou:
— É impossível, Ana, eu vi o corpo. Menina, onde você conseguiu isso?
— Eu estava vestida quando aqui cheguei.
— Ranulfo, são as roupas da nossa filha, de nossa Marcele Luiza!
Anjo tirou os cabelos das costas, deixando o pescoço livre, após girou o corpo. Ela tinha uma pinta no pescoço, uma marca de nascença. Era a prova. Seu Ranulfo desceu do carro, abraçou Anjo, beijando-lhe incansavelmente o rosto, dona Ana, meio paralisada de emoção, desceu e acompanhou o marido. Após o primeiro momento, seguiram para a casa de seu Adalberto, a pé, ficava a uns cem metros. Lá tiveram a confirmação de que Anjo havia vindo assim, com aquelas roupas, falou ainda de seus modos.
A noticia espalhou-se rapidamente. Até por que Anjo quis fizeram um teste de DNA. Positivo. Houve uma enxurrada de especulações. No início houve quem duvidasse, mas estando tudo confirmado, passaram a procurar explicações. Numa delas, Anjo teria ressuscitado. Continuo chamando-a de Anjo, a esta altura do conto não faz sentido chamá-la de Marcele Luiza, apesar de ser esse seu verdadeiro nome.
A única explicação viável e aparentemente real era a de que outra criança morrera no lugar de Anjo. Investigando o caso descobriram que o acidente havia ocorrido numa curva do Córrego Vermelho, num ponto considerado perigoso da BR. O carro havia saído da estrada e capotado várias vezes, caindo numa estrada, o carro caiu do barranco, bateu o lado do motorista no chão, apoiou o teto no chão, encostando o lado do passageiro no barranco do lado oposto, o corpo da criança estava entre o barranco e o carro, com as pernas debaixo do teto e o corpo caído para dentro do carro. A porta do passageiro havia sido arrancada durante os capotamentos, o que permitiu que parte do corpo houvesse ficado do lado de fora. Disso concluía-se que Anjo estava no banco da frente, mas a esposa do falecido motorista garantia que a menina, no momento da saída, estava no banco traseiro, no assento apropriado, conforme recomendações de trânsito. Diante dos novos fatos surgiu essa nova explicação, teria uma criança na estrada, no exato lugar onde o carro caiu, adotando uma posição de defesa encostou-se no barranco, ficando com as costas voltadas para o carro. Anjo, que teria ficado intacta até então, ter-se-ia soltado e saído por um dos espaços dos vidros traseiros, antes do fogo tomar o carro completamente. Ninguém viu o acidente, a policia só foi avisada de madrugada e o carro localizado já quase de manhã, foi o tempo suficiente para Anjo afastar-se. Ela teria seguido por um caminho até o ponto em que fora encontrada, caminho praticamente deserto, pelo menos da BR, onde começava, até uns dois quilômetros de onde ela fora encontrada. A terra por onde o caminho passava era de um único fazendeiro e destinava-se à engorda de bovinos, carro só ia da BR até um curral destinado à embarcação de animais, a poucos metros do local do acidente, os vaqueiros percorriam as mangas duas vezes por semana, no mais era um ou outro transitando, a pé ou de animal, vez por outra. Mas, e a criança que morrera, de onde teria vindo? Sem uma criança para estar no lugar de Anjo a citada hipótese desnudava-se de qualquer razão. Um fato porém dava-lhe base: uma viúva da região, moradora daquela estrada (a casa onde morava ficava no ponto em que a estrada encontrava-se com a BR) tinha um filho de quatro anos, ela amasiou-se com um vaqueiro daquela fazenda, ele bebia e espancava-a, o menino sempre fugia para não assistir à cena. Escondia-se no meio do mato, geralmente no capim à margem da rodovia, e só voltava no outro dia. Na tarde de um domingo o vaqueiro chegou bêbado e espancou a tal viúva, o menino saiu correndo, pela madrugada, como sempre acontecia, aquela mulher saiu à sua procura. Tendo o dia amanhecido procurou por muito, até a tarde, veio novamente a noite e ela desesperou-se. Muitas pessoas tinham-na alertado para o risco do menino ser roubado quando ficava sozinho às margens da rodovia, principalmente à noite, pois era uma criança bonita, com os caracteres de crianças vítimas de tais crimes, como cabelos claros e bons, pele clara. Informou-se isto á policia: o rapto de uma criança. A tal viúva, após o acontecido, foi embora morar com os outros dois filhos, quanto ao vaqueiro, foi despedido.
Uma coisa ainda causava impressão, como uma menina de três anos teria andado tanto, quase oito quilômetros, sozinha? Aí, alguns diziam que foi a alma do menino que se tornou um anjo e acompanhou a menina. E os perigos da noite? Duas que ela passou no meio do mato. Bem sabemos, o olhar de Deus enxerga no meio da escuridão.
Explicações à parte, era fato e real, ela estava ali, sã e salva. Apossou-se da condição de filha rapidamente. Conseguiu de seu pai a cirurgia de seu Adalberto, e ainda, a família de seu Adalberto passou a ser responsável pela fazenda. Seus pais tiraram trinta dias para curtir a filha que ressuscitara. Ela, a primeira coisa que fez, foi aprender dirigir, era seu sonho. Quem a ensinou foi Amaro, ali nas estradas da fazenda, e olhem que ela se tornou realmente uma boa motorista. Visitou parentes, familiares, quinze dias na praia, até conheceu outro amor. Voltou para a fazenda, dirigir, andar a cavalo, estar um pouco livre antes de voltar à vida de estudante.
Certo sábado ela chegou à cidade, era um sábado de festa. Ela chegou por volta das dez horas da noite, trazendo sua filha, na companhia de Fernanda. Ela mesma quem dirigia. Parou o carro na sua mão de transito, desceu. Esperou a filha que desceu do outro lado com Fernanda, deu-lhe a mão. O bom trato pegou seu rosto bonito, seus cabelos bons, deu-lhe uns dez quilos, sabiamente distribuídos pelo corpo, ajuntou à sua elegância inata, cobriu tudo com roupas bem escolhidas, retocou com maquiagem e fez da mendiga uma mulher linda e sensual. Ergueu-lhe a cabeça, pôs-lhe no rosto um sorriso triunfal. Do outro lado, sentado com os colegas de sempre, o rapaz que a engravidou. Ela atravessou a rua em direção ao bar em cuja calçada ele ocupava uma das mesas. Ele não arredou dessa vez, já não era mais uma mendiga que vinha lá. Já previam a cena: ela ia passar fazendo de conta nunca tê-lo visto, era a sua vingança. Certamente os colegas dele fariam comentários, Fernanda até tentou puxá-la para a outra porta, o mais longe possível da mesa onde estavam eles, mas ela quis passar junto à mesa. Quando subiu da rua para a calçada, parou frente à mesa, não usando tom de deboche disse à menina:
— Vai dar um beijo no papai.
Disse soltando a mão da menina, enxotando-a em direção ao rapaz, subiu em seguida para o bar, indo ao balcão, a menina chegou-se ao rapaz, pediu-lhe a benção, abraçou-lhe o pescoço e beijou-lhe o rosto. Anjo tudo fez com um sorriso, o sorriso que havia conseguido com o abraço dos pais, e não mais perdera. E não se vingou com as próprias mãos, mas deixou isso a terceiros. Como está escrito em alguma parte da Bíblia: “Minha é a vingança, eu te vingarei, diz o Senhor”.
Dalí as três saíram, a pé, indo pela rua em direção à igreja. Passaram de frente a um bar quando ali principiava uma discussão, alguém puxou uma arma, efetuou três disparos, não vitimou quem ensejava, mas acertou Anjo, depois saiu correndo. A bala, ou, tecnicamente dizendo, o projétil, penetrou no peito esquerdo de Anjo, trespassando sua alma, alojando-se em sua vida. Ela veio ao chão. Fernanda desesperou-se, gritando por socorro, Marcele Luiza, que ainda não entendia muito a diferença entre isso e aquilo, ficou ao lado da mãe, e esta segurou-lhe a mão e olhou-lhe nos olhos. Não houve muita dor. E ela viu Pedro tomar uma no balcão do bar, e viu a praça vazia, e somente ele, e ele veio, e com um sorriso imenso pôs-se ao seu lado, e os que estavam ao seu redor e não por ela eram vistos viram-na abrir os lábios e num sorriso pronunciar meigamente: “Pai!”. E deixou a vida. Era aniversário do quinquagésimo terceiro dia de felicidade, havia realizado naquele tempo todos os sonhos que tivera durante a vida até ali. Ninguém podia negar que, a exemplo de seu primeiro pai adotivo, ela morreu de coração.
É, estranhas reminiscências de Pedro Cachaça.
Conto disponível também no site do autor:
http://www.edmilsonantunes.com.br/anjo_26.html
Disponível em formato digital na saraiva:
http://www.saraiva.com.br/anjo-7457656.html