A Montanhesa - Parte 3
A Montanhesa
Parte 3
Os estrondos dos engenhos da morte pararam uma primeira vez em muitos anos.
Nessa noite, pesada de silêncio lúgubre, caída num cochilo cabeceante e fatigado, a velha "vještica" sentiu o estertor vivo da jovem que, abrindo os olhos em terror, afundou-se mais no leito, retesou o corpo, braços em posição de defesa amedrontada, e gritou; um grito profundo de surpresa inconsciente, o regresso da morte à vida e de expulsão de trevas passadas e males vindouros
Soergueu-se e tentou fundir-se, em osmose, na parede confinada com o catre, onde se quedou indefesa.
Tentando aquietá-la, a velha dama falou-lhe carinhosamente e, apelidou-a, instintivamente, de "Meu Lírio" e "Meu Anjo", estendeu-lhe as mãos rugosas e trémulas num gesto acolhedor como a uma criança.
- Vem, meu Lírio, não tenhas medo! - encorajou-a a velha senhora.
- "Babuška? Babuška!" - titubeou, entre a interrogação e o espanto
- Vem, meu anjo!
Timidamente, a princípio, afastando o medo, largou-se sôfrega naqueles braços convidativos que a tomaram e embalaram vagarosamente num vaivém ritmado por monólogo cantante.
Adormeceu a rapariga, num nanado sono sem pesadelos ou fantasmas, abandonando-se nesse aconchego trémulo, quente e protector. A noite repousou lenta e gélida no leito do sensual amanhecer que acordou preguiçoso, tristonho cinzento, opaco.
A velha senhora depositou entorpecida o corpo de menina no catre, tapou-a com os trapos e mantilhas e, tremendo de frio, espevitou a lareira que remoía as brasas dormentes, deitando mais achas à voracidade das chamas vivificantes. Quedou-se, ai, talvez uma *meia hora, aquecendo-se e dispôs os preparativos para a confecção da sua parca primeira refeição do dia. Parcamente alimentada, saiu a libertar as cabras do cerco na gelada vastidão íngreme, que esgravatariam o espesso manto branco procurando o pobre sustento e renovou a ração de talos cerealíferos secos ao jumento. Atrozes pensamentos ferviam-lhe, de novo acerados, a mente.
Recordações pungentes da anterior vivência chegavam em catadupas A memória; 0 marido, os filhos, os netos, os amigos, os feitores, os servos, enfim todo o seu feliz domínio inundado de abundância e paz...
Relembrava a perda dessa felicidade em todo e território onde as disputas, quando geradas, eram eliminadas no acorde e na concórdia.
Lembrava a brandura do esposo e o carinho dos filhos e netos.
Raiava-se a utopia e a sensatez, o diálogo e o acordo, a paz e o bem-estar, a educação e o lazer que se perderam na ilimitada confiança que, traída, os lançou nos antónimos correspondentes.
- Onde estariam eles todos? - pela primeira vez em muitos anos do exílio imposto por si mesma, a família ocupou-lhe o pensamento lançando-a nesta memória dolorosa.
Teriam, eles, perecido ou sobrevivido à hecatombe?
A rapariga, na sua semi-inconsciência, tinha-a chamado "babuška", porquê?
Porque teria ela respondido, chamando-a de "Meu Lírio"? Ou ainda de "Meu Anjo"? - muitos porquês, filhos do desespero e da estupefacção, fizeram-na estremecer dolorosamente, emoções acobertadas de frio, e interrogar-se de novo:
E se aquela menina fosse...?
Não, não podia ser! Ou era...?
Exausta, outra imagem a trespassou feroz; a imagem de uma menina de tez de lírio - açucena agarrada ao seu colo, sorrindo zombeteira e travessa.
Aquele seu Lírio querido que, quando assustada ou acossada pelos irmãos e amigos, se refugiava no seu regaço de avó, qual portão seguro das investidas infantis e dos ralhos paternos.
A avó era a substituta eleita da mãe que perdera ao nascer – o que lhe faziam recordar sempre, ferindo-a, no seu mais íntimo.
Um aflitivo apelo interrompeu-lhe misericordiosamente o fluxo de pensamentos da figura pálida e magra reclinada e amparada à entrada do casebre que tomou a sua atenção:
- Gospođa…? Gospođa!
Obrigou-se, a velha senhora, a responder-lhe confiadamente e a dirigir-se, tão lesta quanto a força física lhe permitia, para a figura esquálida e murmurou:
- Sim "meu Lírio", a "tua babuška" está aqui!
- E se...? - num último esforço expulsou os demónios, adormecendo a mente.
(continuação - parte 4)