A Montanhesa - Parte 2

A Montanhesa

Parte 2

O conflito degenerou em genocídio.

Mesmo entre os predadores da mesma estirpe, grassava a traição. Morria-se mais em usurpações de poder que propriamente nos campos de batalha, porque, de tão pejados de morte, os campos rivais acobardavam os confrontos e esgotavam os ávidos senhores dos "interesseiros validos". As tréguas arcavam de medição de forças e suspeita.

Porém, se as forças combatentes já não se digladiavam, esforçavam-se “corajosamente" a espalhar o horror, a pilhagem, a violação e a morte, em suma a tirania, sobre as gentes, sem clarividência de credo, partido, idade, sexo ou posição.

Estes campos sofridos de agricultura sobreviventes de antanho, eram, neste tempo de martírio, de cores negra e cinzenta fumegantes, cultivados de putrefacção, juncados de sinistros predadores metódicos de carnificina, sedentos de carne e sangue que pudessem rasgar ou fazer jorrar. Morrer era um favor concedido pelo cansado desprezo da vida. Fugiam as gentes; refugiavam-se na incerteza de longínquas terras povoadas de mais temores.

Nas estradas do exílio arrastavam-se amarfanhados seres pejados dos parcos haveres que, consoante a fadiga galopante, eram deixados sobre o junco amorfo dos que a vida desistia e a morte ávida os acolhia. A fome, o frio e as razias dos salteadores maculavam a enlameada brancura da neve de tons diversos emoldurados, quase sempre, do vermelho coagulado. Os sobreviventes, de afaimado olhar esgazeado, demente, arribavam esgotados às esperançadas vizinhanças ainda de paz, enchendo o grosso dos desalojados ou outras valas comuns, mais cuidadas é certo, mas tão horripilantes, pelos ressequidos cadáveres amontoados em camadas de areia e terra, como as outras. Deixaram, estes sobreviventes, para trás os familiares mortos pelos aliados das guerras - a fome, o frio, os salteadores, os martírios, as execuções em massa, as violações, as torturas e outros actos similares – que pretendem glorificar os loucos e imolar os inocentes, e os bens, que tão parcos eram já supérfluos e extenuantes. Cuidar dos mortos e dos sobrevivos era um esforço vão e surripiador de outras vidas e energias.

Abandonados eram os corpos ora em valas mal cavadas, ora em depressões naturais, ora sobre a mórbida paisagem.

As intempéries, os animais, ou outras gentes, por medidas higiénicas, os lançariam em piras funerárias, e se encarregariam de os fazer desaparecer das vistas destas gentes. Apenas o cheiro nauseabundo se preocuparia em os assinalar, já que a ávida fuga pela avara vida os lançava no esquecimento de os assinalar nominal e religiosamente, numa tentativa bem sucedida de entorpecer a razão e o amor.

Os sobreviventes, silenciosos, suplicantes, desconfiados, quase sempre incompreendidos, uivadores quezilentos, rogavam sofrida piedade dos vizinhos, estes forçados hospedeiros preocupados pelo mar de gentes, que, em catadupa, desaguava infinitamente nos seus lugares de esperança pacifica, conspurcando-a com a incómoda guerra que não era deles, e que iria devorar a maior parte das suadas provisões e o risco potencial de os vitimar pela intenção latente da generalização do conflito.

Entupiam, assim, os desalojados, as vizinhanças com marés de gente suja, doente, martirizada e de espírito infecto. A paz social era, assim, ameaçada para estes vizinhos que, não tendo tomado partido ou parte no litígio avassalador da região.

Elevavam-se protestos e avisos preventivos em uníssono; uns, xenófobas, previam o apocalipse; outras, mais caritativas, afirmavam a calamidade, mas todos eram favoráveis à pacificação das nações conflituosas.

Ora por economia interesseira ora por altruísmo abnegado das vizinhanças, "exércitos da boa-vontade" foram formados. A indiferença fora fortemente abalada; era premente impor aos "senhores da guerra" a cessação das hostilidades e forçá-los à negociação e ao compromisso, a tréguas duradouras, senão a Paz total. Era urgente confrontá-los com forças coesas e dissuasórias na procura incessante da estabilização e no cumprimento integral dos compromissos assinados, mas nunca antes assumidos na integra ou, useira e vezeiramente, ignorados e quebrados. Assim, tornaram-se atitudes e acções determinadas.

Ousara-se sentar à mesa das negociações os inimigos, outrora "poderosos", hoje meros e falsos pedintes de benesses e prerrogativas, e comprometê-los incondicionalmente à exacta observação dos acordos estipulados e transcritos.

Fácil fora destruir; bastava uma simples ordem e todos os engenhos de guerra percutiam a Ária do Caos em marcha grave e ribombante, raiando os limites da pretendida perfeição – Morte e Destruição . Sublime!!!

Missão titânica seria reconstruir.

Aliaram-se "os Senhores da Paz", mandatários que observavam e interpunham as suas forças para a separação, negociada ou forçada, dos litigantes. Porém, terminar estes conflitos é, decerto, urna tarefa árdua e morosa e só a perseverança alimenta o desejo pacificador. Era necessário construir o que nunca fora construído e reconstruir o que fora destruído; as edificações apenas precisariam de mão-de-obra, mas assegurar o regresso dos desalojados, reunir as famílias sobreviventes, cuidar dos órfãos e solitários, providenciar o seu tratamento físico e psíquico, em suma, ensiná-los a reviver, assim corno proteger os ainda nativos, deslocados internamente ou não, separar e integrar antigas vitimas e carrascos numa sociedade mais justa, procedendo judicialmente contra estes últimos, era a luta diária, com poucos avanços e muitos reveses, apadrinhada e declarada pelos "pacificadores".

Os símbolos de azul celeste e branco foram adoptados e arvorados no alto etéreo. Com eles, subiu a vontade férrea e os avisos implícitos dos mandatários da ordem e da paz.

"Cuidai-vos, nefandos predadores! A carniça não sustentará mais a fome do horror e da tirania que gerastes!".

"Parem a destruição que paristes!".

E na despedida acalentavam:

"Parti, pacificadores! Rezai e velai pela Paz!"

"Até breve, meus amigos! Paz e Bem!".

Contudo, a Justiça tinha-se decidido pela injustiça do esquecimento e do pretensioso arrependimento.

Vítimas e carrascos teriam de conviver numa nova ordem inatingível que preservasse a paz possível.

Só que os carrascos nunca largariam de bom grado as mordomias e os ataques esporádicos às gentes continuavam, sangrentos.

(continuação - parte 3)

Poeta sem Alma
Enviado por Poeta sem Alma em 21/03/2016
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