Na nuca o código de barras
Com gases e dor de barriga, o homem vai passando a madrugada sentado no vaso sanitário. Não há galos para marcar o tempo, mas se escuta a torneira da pia pingando. Contou até 2222 pingos, número bonito, esotérico talvez, e parou. Outro dia, contaria mais e cuidaria da torneira. Devia ser a carrapeta, coisinha minúscula, fácil de consertar. Tinha coisas mais importantes no momento para preocupar-se: de dentro dele saíam palavras misteriosas, que precisavam fazer sentido. Mas talvez fosse apenas a tradução, em língua de gente, da língua de intestinos saturados:
- Boleto, graveto! Graveto, boleto! Antúrios, espúrios, entojo, zeugma! Boleto, graveto! Graveto, boleto...
Não teve sossego. Não sarava do mal-estar e nem parava de pensar no que queriam dizer as palavras misteriosas. Tinha de fazer alguma coisa para distrair-se. Saiu à rua, tinha chovido muito, pisou numa poça d'água no asfalto, escorregou, afundou e foi parar direto na Ginza, pleno Tóquio, pleno Japão. Lá continuou a lenga-lenga, ainda em português:
- Boleto, graveto! Graveto, boleto! Antúrios, espúrios, entojo, zeugma! Boleto, graveto! Graveto, boleto...
No Japão, não conseguiu falar com ninguém dos cento e tantos milhões de habitantes e pediu para voltar. Demorou um século para alguém entender o que queria. Multidões subiam e desciam as escadas rolantes do shopping, nem o fitavam. Cada um imerso no seu mundo, contas, horários, promessas a cumprir. Às vezes, uns conhecidos se cruzavam, faziam as formais reverências orientais e seguiam caminho. Pensou conhecer uma ou outra pessoa, porém, se era pessoa conhecida, fingiu não vê-lo, não lhe deu trela. E voltava outra vez àquela questão primal, pois não conseguia silenciar nem interpretar o discurso interior que teimava em subir à superfície:
- Boleto, graveto! Graveto, boleto! Antúrios, espúrios, entojo, zeugma! Boleto, graveto! Graveto, boleto...
Do seio da multidão, eis que, de repente, emergiu a voz salvadora, que não ouviu, fez apenas uma leitura labial:
- Sobe àquele edifício. Lá termina e começa a sua poça d'água.
Do terraço do edifício, a uns quarenta andares do solo, alçou a mão e alcançou a sua poça d'água. Em segundos subiu e estava no asfalto de novo, perto de casa. Lembrou-se da torneira pingando. Tinha de consertá-la. Fez venha de voltar a casa, mas não queria distrair-se. Tinha coisa mais importante para pensar. Por exemplo: pensar que tinha acabado de conhecer a solidão na multidão, como era possível? Daí, lembrou-se da tristeza imensa que estava sentindo, pôs-se em posição fetal e ficou tão triste e desamparado que Deus, em pessoa, desceu e veio lamber suas penas. Consolado por Deus, levantou-se, podia de novo andar pelas ruas, tentando achar o vínculo entre as palavras misteriosas:
- Boleto, graveto! Graveto, boleto! Antúrios, espúrios, entojo, zeugma! Boleto, graveto! Graveto, boleto...
Um dia, iria entendê-las ou achar alguém que as traduzisse. Enquanto se afastava, alguém se lembrou de filmá-lo com um celular, pelas costas. Na nuca, tatuado, ele transportava um código de barras. Era a prova que buscavam. Um alerta foi emitido. Confirmada sua identidade, agora era apenas esperar que cometesse o primeiro erro.