"Uma Deusa e eu"

1

Me chamo Karine e tenho uma irmã caçula que passa por uma gravidez de risco, mas felizmente já esta em suas últimas semanas. Ela espera um menino. Contudo, o parto ainda promete ser problemático, mas espero que sejam apenas distantes probabilidades.

Mayara tem apenas 15 anos e o garoto que a engravidou, 17, um maloqueiro sem responsabilidade alguma que não ouso nem proferir o nome odioso. Não está nem aí para a criança que nascerá, desinteresse total. Ela se martiriza todos os dias por ter deixado se envolver com aquela criatura. Ansiosa, fica estressada facilmente e ainda põe em mais riscos a vida do bebê.

Nossa mãe, Madras, não se conforma com o rumo das coisas. Sempre buscou nos educar para a vida, apesar de trabalhar quase o dia inteiro. De certa forma me responsabilizo também, pois era eu quem cuidava da minha irmã até a mãe chegar do trabalho. Sei lá. Até que ponto devo me culpar? Porque Mayara tem ouvidos perfeitos, cérebro perfeitamente em funcionamento para realizar decisões, analisar situações... Sei lá. Não entendo. Em que falhamos? Eu tenho 22 anos e meu foco é nos estudos e no trabalho. Claro que quero ter filhos, mas quando EU tiver condições de criá-lo. Do que adianta parir uma criança para os outros criarem? Bom, é assim que penso. Só que agora, nenhuma reflexão dessas servirá para Mayara. O desafio está aí. Porém, uma coisa é certa: vamos acolher esse pequeno ser com todo amor e carinho necassários.”

2

Como era de se esperar, a hora esta chegando, um pouco mais cedo que o normal. A barriga dela está enorme naquele corpo pequeno de menina. Ela não aguenta mais o peso que carrega e as dores na coluna. Mayara olha seu reflexo no espelho todos os dias e se repreende com palavras severas. Quando flagro esses momentos, procuro dar-lhe apoio. Não posso permitir que dê asas a esses sentimentos ruins. A mãe, por sua vez, desde que soubera da gravidez dela, afastou-se emocionalmente, apesar de seus esforços. Contudo, a decepção é maior. Quem sabe isso não mude quando ver pela primeira vez o rostinho rechonchudo do pequeno? Vish... não é só isso. Perguntei a minha irmã se já havia escolhido o nome do bebê e a resposta foi uma negativa seguida de copioso choro. Respirei fundo e a abracei. Então, me propus a ajudá-la a encontrar um belo nome. Diz ela que o chamará de Procópio e ponto final. Talvez estivesse num daqueles maus momentos.

3

Durante esses meses de gestação conheci uma mulher que tinha fama de bruxa, Helena. Não era bem isso. Ela cultua deuses antigos e têm conhecimentos sobre ervas e alguns encantamentos antigos de proteção. Afinal, quem hoje em dia não conhece uma simpatia sequer ou um amuleto de proteção? Isso não faz de uma pessoa necessariamente uma bruxa. Atualmente qualquer um pode ter inúmeros e estranhos conhecimentos e TALVEZ consiga aplicá-los.

Iniciamos uma forte amizade e passei a confiar bastante nela a ponto de lhe contar sobre o momento perturbador pelo qual minha irmã estava passando. Certo dia, Helena recomendou que Mayara se aproximasse de deusas pagãs ligadas a maternidade, pois precisaria de grande apoio para proteger sua gravidez. E ninguém melhor que uma “Mãe” para ajudar nesse processo. Transmiti o recado a Mayara, que se recusou veemente devido a sua pseudoformação cristã. Nossa mãe pouco fez caso do conselho de Helena. Aliás, minha mãe anda desacreditada de tudo ultimamente que para ela tanto fazia. Insisti com Mayara, ela continuou contrária à ideia e ainda por cima ameaçou parar de falar comigo caso eu não desistisse dessa história. Por outro lado, ela mesma não fazia nada a fim de fortalecer-se espiritualmente, muito pelo contrário, só mergulhava cada vez mais fundo em sua tristeza.

Mayara andava cada vez mais triste, teimava em não sair da cama, não abria as cortinas nem as janelas do quarto.Preocupada,solicitei ajuda da minha amiga, que me entregou um pequeno objeto dourado, arredondado, carregando o desenho de uma flecha dentro de uma meia-lua.

- Bom, o jeito é você fazer sua parte, Karine. Leve este amuleto consigo, coloque-o escondido no centro da casa e aguarde os sinais. Procure não deixar sua irmã sozinha durante os próximos dois dias.

-Por quê? Isso vai causar algum mal a ela?

-Você entenderá. Confie em mim.

Mais tarde, faltando algumas horas para nossa mãe voltar do trabalho, chegui em casa e escondi o amuleto na cozinha, debaixo do fogão. Nesse meio tempo Mayara saiu do quarto, mal vestida, e bebeu água. Conversamos um pouco e logo se nos dispersamos. Assim que viramos as costas uma para outra, soprou da janela uma súbita ventania e todos os objetos de vidro racharam e os mais frágeis terminaram estilhaçados. Nos abaixamos instintivamente e corremos uma para outra, nos encolhendo num forte abraço. Dona Madras ficou furiosa quando viu as coisas quebradas sem que pudéssemos explicar nada.

No outro dia, Helena explicou:

-Eu não quis dizer o que eu sabia para não te assustar: a sua irmã estava cercada por criaturas errantes nada saudáveis. Pelo menos agora foram lançados longe e por algum tempo darão trégua. Contudo, Mayara precisa se fortalecer a fim de evitar maiores complicações futuras.

-Parece até filme de terror, Helena! Hahaha!

-Hehehe. Pois é, mas é isso o que acontece quando baixamos a guarda!

4

Eu trabalhava de operadora de caixa num movimentado hipermercado e era semana de recebimento, portanto, superlotado. Cheguei “podre” em casa e fui entrando silenciosamente, ninguém notou minha aproximação. Mayara e a mãe discutiam com certa violência verbal, faltando pouco para saírem no tapa. Eis que logo minha irmã começou a procurar algo para se apoiar, gradativamente caindo em desmaio e reclamando de muita dor, até que um liquido vazou por entre as pernas dela. Sem mais demora apareci e liguei para uma ambulância. Tentei reconfortar Mayara, ao mesmo tempo em que lancei olhar de reprovação à minha mãe.

Já dentro da ambulância, tentei manter a calma a fim de demonstrar alguma segurança. Calada, a mãe permaneceu do meu lado, contendo o próprio choro de arrependimento. Mais tarde eu saberia o motivo da discussão, que na verdade era tudo em relação à gravidez precoce de Mayara, assunto evitado por meses e meses a todo custo pela Dona Madras. Aliás, ela quem havia começado o embate.

Mayara precisou urgentemente de atendimento, pois o trabalho de perto iria iniciar e eu fui sua acompanhante.

Longas e doloridas horas passavam, a pressão de Mayara oscilava demais e queixava-se de muita dor de cabeça. Várias vezes pedia para morrer, chorava sem parar. As coisas estavam dando errado e ela e o bebê corriam riscos sérios. Não aguentei, sai da sala de cirurgia e pedi a nossa mãe que ficasse no meu lugar, ao que ela prontamente aceitou, como se esperasse pela oportunidade. Desesperada liguei para Helena, mesmo sendo altas horas da madrugada e supliquei por ajuda. Ela me atendeu e disse para que eu fosse já para casa dela.

5

Helena me esperava na frente de sua casa, munida de uma pesada mochila nas costas. Ela percebeu meu rosto inchado de tanto chorar e me deu um forte abraço. Explicou que a única coisa que podíamos fazer por Mayara era suplicar pela intervenção da deusa Ártemis Ilítia, senhora dos partos. Mas para isso precisávamos subir um morro a 30 minutos de ônibus de onde estávamos. Felizmente logo ele surgiu e partimos. Eu chorava e rezava para que desse tempo. A possibilidade de perder mina irmã e seu filhote era aterradora.

Enfim descemos numa encruzilhada, um lugar inóspito, em que uma das vias dirigia-se ao morro sombrio, coberto por uma floresta solitária, á beira de um imenso lago. O sinal do telefone podia desaparecer, então entrei em contato com minha mãe, ao que ela não me deu boas notícias. Corremos mato adentro, subindo pela trilha trevosa e repleta de pedregulhos. Cobras cruzavam nosso caminho e outros pequenos animais. Ainda havia o pio assustador de certos pássaros. Meu coração estava a ponto de sair pela boca. A lua minguante pairava serena nos céus. Durante a jornada vislumbrava Mayara contorcendo-se de dor, e isso era uma verdadeira facada no meu peito.

Eu questionava Helena sobre o caminho e ideias de desistência surgiam a mente. Porém a fraqueza era suplantada pela memória de minha irmã. Enquanto andávamos, meus pelos do corpo se arrepiavam, era como se estivesse sendo observada. Na verdade, tinha impressão de enxergar formas humanas, femininas ao redor, escondidas na escuridão. Então, começamos a ouvir passos rápidos a se aproximar, quase tive um ataque do coração. Seria eu o sacrifício? Minha vida pela de minha mana? Uivos sinistros e latidos ao longe se ouviam. Eu tinha quase certeza que morreria ali. Helena tentava me acalmar, explicava que era a “Senhora” a se aproximar.

Finalmente nos libertamos da densa floresta e alcançamos o topo do morro, onde era escampado. No centro, um grande bloco branco de pedra, com inscrições. Havia sido construído por uma família pagã que morava nas redondezas, mas tiveram que se mudar.

Helena retirou da mochila tigelas, taças, pacotes de grãos variados, uma caixa de leite e velas verdes. Montou tudo sobre o altar, uma visão belíssima capaz de me tranquilizar minhas águas interiores, agitadas como o mar revolto. Parecia outra dimensão. Contudo, os gritos de Mayara voltavam e dilaceravam aquele momento paradisíaco. Nesse ínterim, uma mensagem recém-chegada fez meu celular vibrar, escrito: “Vem depressa. Talvez não dê tempo. Vem depressa”. Em seguida, avisos de vinte chamadas recebidas apareceram.

-Venha, Karine! Erga seus braços e feche seus olhos. Apenas repita comigo. Depois te darei a palavra. – obedeci e quando fechei os olhos, senti mais lágrimas quentes rolarem pelo meu rosto.

Helena encheu as mãos com grãos de cevada, ergue-as e começou a prece - eu tentava repetir, com a voz embargada, me contendo ao máximo para não cair em prantos:

“Senhora que reina entre as ninfas

Aquela que se rejubila nos cumes montanhosos escuros e selvagens

Dona do arco de ouro, gêmea de Apollo!

Ártemis Ilítia, protetora dos nascimentos, nós te chamamos...”

Ela arremessou os grãos sobre as oferendas e altar e prosseguiu sozinha:

“Rainha Ártemis, tu que foste a primeira a nascer de sua amada mãe Leto, e em seguida ajudou a realizar o parto de seu querido irmão;

Ouça a voz de suas suplicantes pela vida de Mayara e seu bebê,

E que possa abençoa-los com a oportunidade de ver a luz do sol!”

Ao calar-se, fez um gesto para que eu falasse. Não me segurei e lancei-me de joelhos ao chão, foi mais forte que eu. Chorei mais do que falei, soluçando tentei:

- Por favor, por tudo que é mais sagrado, suplico que salve a vida de minha irmã e de seu filho... Dê-nos essa oportunidade de corrigirmos tudo, de crescer com esses desafios... Eu imploro, salve-os, salve-os...

Eu não tinha mais o que dizer, apenas chorei, encolhida no chão. Podia sentir a vida se esvaindo de minha irmã.

Um vento repentino soprou e novamente os uivos e latidos misteriosos se fizeram ouvir. As corujas piavam, como que se lamentando.

O dia estava prestes a despontar, Helena me ajudou a levantar e pegamos o caminho de volta. Meu celular avisou de mais ligações recebidas e finalmente uma mensagem: “Oi, sou eu, a Lurdes (uma amiga da família). Venha depressa. Sua mãe precisa de você urgente”. Minhas pernas amoleceram.

“O espírito de Mayara caia lentamente num abismo trevoso e frio, onde acima tímidos raios de luz brilhavam, e abaixo um rio ruidoso seguia seu curso desconhecido. Ela segurava nos braços o pequeno bebê, protegendo-o com seu frágil calor. Podia ouvir o eco de uma voz familiar a lhe chamar cheia de desespero. Madras, sua mãe, no mundo dos vivos gritava pela vida da filha.

Nesse momento, Mayara percebeu algo colossal se formar e flutuar acima dela. Três rostos femininos unidos por um único pescoço criaram-se da matéria negra. A garota levou um susto e por pouco não soltou o filho. O Ser tricéfalo calmamente começou a falar:

-Apenas um dos dois pode retornar à superfície, menina...

Mayara se encorajou e se atreveu a perguntar:

-E o que acontecerá com quem ficar?

-Descerá rumo ao Mundo dos Mortos, através do barco que aguarda logo ali embaixo...E assim lá permanecerá por tempo indeterminado.

Lágrimas escorreram pelo jovem rosto:

-Tenho certeza que minha amada irmã irá dar todo o amor que ele precise. E minha mãe também... Pode levá-lo de volta, por favor.

De repente, o Ser reformulou sua aparência, tornando-se uma bela mulher vestida de preto e vermelho, usando uma coroa prateada. Cuidadosa, tomou a criança em seus braços e se afastou com ele, subindo na direção da luz.

Mayara continuou afundando na escuridão e até desaparecer próximo do rio nevoento.

Nos limites dos mundos das trevas e da luz do sol, a mulher com o bebê se encontra com outra, uma moça esbelta e forte, com arco dourado pendurado nas costas.

-Aqui está, Virgem Arqueira. – disse cortês entregando a criança a outra.

-Grata, Senhora dos Limiares. – respondeu a arqueira de físico forte, prosseguindo pela dimensão luminosa.”

6

1 dia depois...

Cemitério da Cidade

No final das contas, minha irmã não resistiu e se foi. Os médicos disseram que ela sofreu muito ainda logo após o parto, e que subitamente parou de queixar-se. Então, todo seu corpo acalmou-se, e conseguiu murmurar que as dores haviam desaparecido. Do nada, perguntou quem era “aquela moça alta e brilhante” recém-chegada, intrigando a todos. Finalmente fechou os olhos e...

Desmoronei aos prantos junto de minha mãe quando voltei ao Hospital. Eu esperava a solução completa da situação. Esperava um fim mais feliz... Aquela deusa recusara nossas súplicas? Fora tudo em vão?

Minha mãe contou que havia pedido perdão a Mayara durante o duro parto e prometeu fazer o máximo possível para que a criança crescesse forte e amada e que daria apoio a ambas. Sem mais ressentimentos, se despediram definitivamente. Nike foi o nome escolhido para o bebê, balbuciado por minha irmã. Ele permaneceria alguns dias no Hospital para tratarem de sua frágil saúde.

Agora, lançávamos terra e flores sobre o caixão. Nem uma palavra era dita.

Dias depois, me encontrei com Helena, a pedido dela. Porém eu estava com muito receio de revê-la. Fui logo verbalizando minha fúria e frustração, sem que ela me retrucasse em nada. De repente parei de falar e comecei a chorar. Quando me acalmei, ela explicou:

- Salvação aos dois não era permitida. Às vezes Moiras são demais inflexíveis e nenhum deus pode dobrá-las facilmente. É assim com todo mundo, não interessa o deus que cultue.

Eu não sabia o que pensar. Até hoje não sei bem, na verdade. De qualquer maneira, quando Níke foi liberado do Hospital, bordei uns sapatinhos e consagrei à deusa de Helena em agradecimento.

Certo dia, minha mãe e eu levamos Nike para uma praça tomar banho de sol, sob um lindo e dourado entardecer, inclusive convidamos Helena. Então, ficamos boquiabertas a aproximação de uma pessoa. Pensamos que passaria reto, apesar de automaticamente nossas mentes começarem a formular milhares de xingamentos possíveis.

Era o pai do bebê, o desgraçado que engravidara minha irmã. Meu corpo enrijeceu e logo pedi à mãe que segurasse Nike. Porém, fui surpreendida com o que ocorreria em seguida e paralisei.

Luciano, pai de Nike, caiu de joelhos na nossa frente, aos prantos, implorando por perdão e uma oportunidade de corrigir seus erros, que pudesse se aproximar do filho, jurando dar todo o suporte necessário.

Permanecemos caladas, estarrecidas. Senti uma súbita tontura devido ao misto de ódio e espanto, que meu olhar percorreu todo o parque. Então, fitei minha atenção ao bosque próximo. Não sabia se era uma alucinação, mas nos observava de lá uma mulher muito alta e bela, de corpo atlético. Helena percebeu que congelei olhando em determinada direção e me chamou com um cutuco.

-Você sabe o que isso pode significar, não é? – sussurrou Helena.

Daquele dia em diante permitimos a gradativa aproximação dele, mesmo cheias de resistências interiores.

Felizmente, até hoje, três anos depois, não precisamos nos arrepender da decisão e Nike cresce forte e feliz, com o amor de todos nós.

A Demétrios HSR
Enviado por A Demétrios HSR em 20/03/2016
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