Uma chance de escapar

Jogaram-me numa sala e disseram: “Quando você terminar de montar este quebra-cabeça, estará livre para partir.” Não houvera nenhuma explicação a mais. Não sabia por que estava ali, só sabia o que deveria fazer para sair. E, assim, comecei a analisar as peças, procurando por padrões de cores, formatos, qualquer pista que pudesse me ser útil. O começo foi até interessante, de certo modo. Um conjunto de mistério e desafio, e a projeção de um final em liberdade. Eu sabia que nenhum quebra-cabeça poderia ser difícil demais; era tudo questão de tempo e persistência e, em breve, isso tudo estaria acabado.

Cinquenta mil peças. Não que tenham me falado. Mas depois de muito tempo tentando encontrar qualquer encaixe, resolvi me distrair contando as peças. Contei quarenta e nove mil novecentas e noventa e tantas. Contei cinquenta mil e duas. Achei a margem de erro aceitável e assumi que seriam cinquenta mil. Cinquenta mil pedacinhos desconexos que, de alguma forma, eu era responsável por fazer encaixarem-se e dar sentido à figura que deveria se formar. Sobre esta, eu também não tinha ideia alguma.

Não sabia o que encontrar e as peças também não estavam me ajudando. Voltei a procurar padrões. Tentei juntar alguns tons de marrom escuro com preto, encaixes parecidos, mas para mim era muito evidente que as peças não se encaixavam. Procurei pelos cantos do quebra-cabeça. Eu poderia usar as esquinas como referência. Separar as peças com um lado chato. E testar todas as possibilidades. Tentei. Elas não se encaixavam.

Mas isso não fazia o menor sentido. O problema deveria ser que eu já estava exausta e perdera a capacidade de focar, tão fixada estava no alvo de sair daquele lugar. Fechei os olhos. Tentei cochilar. Em meus pesadelos, as peças me cercavam, gigantes, e apontavam para mim. Eu, no centro daquela imensa roda, só enxergava olhares de deboche e ouvia as peças rindo da minha cara. Tentei, no sonho, encontrar semelhanças entre as peças. Até que uma delas me perguntou por que eu tanto as analisava. Não sabia se deveria contar. Contei. E o recinto encheu-se de gargalhadas. Acordei assustada.

Estava suando frio. Esperava que o cochilo fosse me dar novo ânimo, mas aquele pesadelo contaminara minha mente, e, cada vez que eu falhava na tentativa de unir duas peças, tudo o que eu consegui pensar era que elas jamais se encaixariam. Eu fora abandonada com peças aleatórias, as quais eu jamais seria capaz de juntar. Não, isso só podia ser besteira da minha cabeça. Desde quando eu deixava pesadelos me afetarem assim?

Foco. Foco. Foco. Era disso que eu precisava. Tentei cantar, relaxar, esquecer de tudo. Quem sabe se eu agisse como se aquilo tudo fosse uma brincadeira, um divertido quebra-cabeça para passar longas tardes de férias... Eu poderia tentar focar no desafio – que, aliás, não era tarefa fácil mesmo. Aquelas, hã, três horas que eu tentara certamente não haviam sido suficientes!? Três horas... certo?

De repente, bateram na porta da sala. Finalmente, o responsável por tudo aquilo deveria ter cansado de me torturar com aquela piada de mau gosto e eu finalmente iria sair. Vejo uma pessoa na porta. Ela diz que “perceberam um erro” – e eu já vou quase agradecendo – quando ela continua e diz que vão trocar algumas peças que estavam falhadas. Dois assistentes entram em seguida e coletam uma porção de peças – sem parar para analisá-las muito bem – e despejam outro tanto de peças novas no meio daquela bagunça. Vão embora, batendo a porta, e eu me vejo novamente trancada entre quatro paredes.

Adormeço novamente, e dessa vez não há falas em meu pesadelo. Simplesmente me vejo deitada, cercada por peças, até que peças e mais peças começam a cair do teto e formam um monte sobre mim. Elas vão me soterrar, preciso escapar. “Quem sabe com tantas novas peças eu consiga encontrar algumas que se encaixem – penso. Mas vou morrer. Já não consigo mover meus braços e estico meu pescoço para evitar que as peças me impeçam de respirar. Tento gritar, completamente imersa naquele mar de peças, mas não há ar em meus pulmões. Acordo. Acordo na esperança de estar em casa, tranquila, debaixo de meu cobertor quentinho. Mas ainda estou cercada de peças. Dizem que em torno de cinquenta mil.

Acho que já se passaram três horas outra vez. Já se passaram tantas vezes. Mas não sei mais contar. Quem sabe se passaram cinquenta mil vezes três horas, mas já nem sei quanto isso iria dar. Estou trancada, cercada de peças, e não há jeito de escapar. Podiam ter me dito que seria uma prisão perpétua. Podiam até ter me matado de uma vez. Por quê? Por que resolveram me iludir com esse falso desafio de escapar? Por que não tirar logo esta vida, em vez de apenas torturar? Eu não sei existir, se não houver como escapar. E as peças não se encaixam, então não há.

Dancker
Enviado por Dancker em 20/03/2016
Reeditado em 25/09/2017
Código do texto: T5579386
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