A vingança
O cão vira–lata rasgara–lhe as pernas da calça surrada, confeccionada com mescla barata, de cor azul, a qual costumava trajar todos os dias. O pobre idoso voltava de seu passeio diário que costumeiramente fazia pelo seu bairro ao final da noite, antes da madrugada chegar, ocasião em que riscos de assaltos eram aumentados de maneira significativa, o que bem era sabido por aquele andarilho, o qual muitas vezes tomara sustos ao ver as corujas em seus voos baixos a emitir seu canto em 'rasgos' repentinos e assustadores, também entendidos como agouros pelo povo em seu folclore rico, cuja crença diz que a desgraça haverá de chegar com asas rápidas sobre casas em que o grito daquela ave de voo noturno for emitido.
Na manhã seguinte, bem cedo, ele saíra de casa apressado e levara uma tranca de porta, feita de madeira de lei, grande e muito pesada, segurando–a firmemente com as duas mãos. Minutos antes, para as paredes de sua casa onde vivia solitariamente em idade avançada, já centenária, bradara:
– Vou matá–lo! vou matá–lo! vou matá–lo!...
– Vou...
Os vizinhos de parede–e–meia, como de costume, encostaram–se nas janelas de suas residências contíguas para ouvir melhor aquele misterioso ser que falava sozinho quando dentro de sua residência. Os curiosos caçavam por assunto novo para suas conversas quando de seus fuxicos e fofocas à tardinha, antes do por do sol, diariamente no bar da esquina.
Poucos minutos depois, estava de volta ao seu “lar” o homem intrigado da comunidade, agora parecendo tranquilo em sua fisionomia de aposentado a curtir a plenitude de seu habitual ócio, como sempre fora visto e observado pela comunidade deseducada de sua ruela abandonada, senda de há muito não merecedora de cuidados das autoridades governamentais do município, que jamais havia dispensado tratamento algum àquele 'buraco de rato' sujo, sem água, esgoto e luz. Talvez fosse a prefeitura mais omissa do mundo para os proletários que lá viviam repletos de carências mil! O homem idoso, no entanto, continuava a falar sozinho como de praxe, recolhido em sua morada isolada do mundo e de pessoas que nunca eram vistas em seu habitat quer nele entrando quer dele saindo. Falava muito alto àquela manhã e os fuxiqueiros e fofoqueiros, ávidos por saberem o que realmente se passava lá dentro, punham–se com suas ouças orientadas para a emissão daquela voz rouca e trêmula, ouvindo o ancião falando para seu mundo imaginário:
– “´tô” vingado! “´tô” vingado! “´tô” vingado!...
– “´tô”...
No bar da esquina, ao redor das mesas de aço doadas por fabricantes de cerveja, normalmente espalhadas sobre o passeio e praticamente bloqueando a passagem de pedestres pela calçada, o menino Zezim, residente em um barraco de madeira em frente à casinha branca do velho albino que não podia levar sol, era o foco das atenções dos ociosos reunidos para contar amenidades e falar mau da vida alheia. A criança falava de que seguira os passos daquele homem àquela manhã, quando ainda esbraveja com o universo sobre sua falta de sorte por ter sua calça única danificada pelo cão, motivo de sua vingança em curso e ao tempo que andava com passadas lépidas, com as bocas das pernas de sua calça em tiras e ao vento, carregando a tranca de proteção do único acesso ao interior de seu casebre quase em ruínas. Falava o homem tresloucadamente. Mantinha aparência de apavorado, dirigindo–se rumo à esquina da ruela em que morava com a pista de rolamento, conhecida de todos por rua dos ônibus. Pasmado com a visão do ser vingativo, então de olhos arregalados e a urrar de raiva notoriamente descontrolada, observara o longevo bater violentamente com a tranca no lombo de um cachorro morto, com inchaço natural em todo corpo sem vida, cujas pernas estavam distendidas, estando o animal junto à coxia. Em seguida, consumada a vingança pelas pauladas aplicadas ao bicho já em rigidez cadavérica, voltara para sua toca, trazendo de volta sua tranca: sua arma branca. Segurava–a nas mãos, apoiando–a então no ombro, sabiamente para compensar a perda energética que sofrera quando da consumação do ato de seu acerto de contas.
Moradores comentavam sobre a ferocidade do cão que morrera atropelado àquela madrugada, sem entanto compreenderam a raiva revelada por aquele ser secular.
Salvador, 2006.
Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 79-81).