A viagem

Tinham quase uma semana de folga e partiram em seu UNO 1000 velho para uma viagem até Fortaleza. Saíram de Salvador e viajaram uma tarde inteira e parte da noite de sexta–feira daquele período de Momo de noventa e nove. Chegaram em Salgueiro, lá nas bandas agrestes de Pernambuco, próximo ao Raso da Catarina, onde o capitão Virgulino um dia fora habitante que impunha medo ao povo daquelas plagas. Dormiram tranquilamente no hotel melhor daquela cidade sertaneja extensa. No dia seguinte, após o desjejum matinal delicioso e farto, com disposição gastronômica, partiram rumo ao seu destino objetivado: Fortaleza. Era uma manhã bonita e ensolarada naquela região imensa e interminável, castigada pela seca impiedosa, uma vez já maravilhosamente tratada por Graciliano Ramos na obra memorável Vidas secas. Era uma paisagem bela em seu verde raro e miserável em sua latência triste de caatinga granítica ressecada pela falta do solvente universal. Era uma terra amada no inverno produtivo e odiada no verão mórbido, tão–paradoxalmente cheia de filhos e amantes que revelavam–se como retirantes potenciais para o mundo que os observa singularmente!

Horas após aquele reinicio de viagem, o carro começou a perder velocidade inexplicavelmente para seus ocupantes, que eram sabidamente leigos em mecânica de autos, parando definitivamente na entrada do município de Milagres, no interior do Ceará. Conseguiram um reboque para puxar aquele veículo até a oficina única capaz de sanar tal problema intempestivo. Lá, foram avisados de que se tratava de problema de desgaste do sistema de embreagem e, por isso, deveriam substituí–la por uma nova. Foram horas longas e intermináveis até serem conseguidas as peças em municípios fronteiriços à cidade de Milagres, acolhedora e salvadora. Pareceu–lhes um milagre terem o carro quebrado somente em Milagres! Deixaram uma grana naquele lugar ainda muito atrasado, onde também ouviram muitas histórias de políticos que lá viviam (e ainda devem viver!) exclusivamente da prática política e com atividades mau conduzidas contra terceiros, sugando os recursos parcos aportados naquele lugar de carências humanas ilimitadas. Ficara estampada em seus pensamentos sadios que a política está no sangue dos homens, mas não parece ser cousa do coração, principalmente quando se lhes apresenta como politicagem!

Estavam de saída de Milagres precisamente quando a manutenção corretiva de seu carro frágil acabara de ser concluída por volta das sete horas da noite. Como que surpreso com todos, pois que eram forasteiros ali, São Pedro9A mandou um violento pé d’água, talvez para falar–lhes que havia agricultura por lá, que a vida tinha a água dos céus e outras maravilhas tantas. Todavia, Ele os obrigou a guiar o automóvel com lentidão excessiva ao prosseguirem sua viagem já bem atrasada. Houve até um momento em que precisaram parar e esperar a chuva acalmar um pouco, pois que ficara insegura a viagem com o céu nublado e ainda com aquele aguaceiro medonho que lavava tudo e escondia a feiura das crateras inúmeras do asfalto velho e quase sumido da BR–1169B abandonada, o que era negativamente corroborado pela iluminação péssima advinda e insuficientemente conseguida com os faróis do FIAT UNO. Por necessidade extrema, pararam o auto junto a um posto de gasolina daquela estrada, pois presenciavam então algo como que um voo cego naquele fim de mundo, o que se lhes mostrava agravado pela escuridão daquela noite tenebrosa, densa, úmida e silenciosa de sábado de Carnaval.

Bondosamente, a chuva lhes dava uma trégua, o que os animou a prosseguir com destino ao Município de Icó, onde pernoitariam num hotel qualquer. Repentinamente, bem à sua frente se descortinou um buraco enorme tomando mais da metade da pista em que trafegavam. Não deu outra: caiaram, ou melhor, cruzaram–no com as rodas do lado do motorista sendo impactadas violentamente naquele buraco incidental e gigantesco. A roda traseira fora a mais afetada, ficando com o aro de liga leve amassado e ovalado, secando imediatamente o seu pneu sem câmara. Pararam o carro no acostamento daquela via interminável e tomaram as medidas de segurança recomendadas e, após colocarem corretamente o triângulo de sinalização sobre a pista, procederam à troca da roda sinistrada pela única sobressalente que dispunham. A outra roda, a dianteira do mesmo lado esquerdo, que também sofrera grande impacto na colisão com o buraco maldito, estava aparentemente em estado bom e o seu pneu não havia esvaziado. Novamente, partiram. Sabiam que estavam por chegar em Icó após alguns minutos de percurso. Contudo, ainda a apenas algumas dezenas de quilômetros daquele ponto de seu incidente, a roda da frente – há pouco caída naquela cratera horrenda – também secava. Eram cerca de onze horas da noite e já não tinham mais outro pneu para substituir aquele que acabara de secar, murchando por completo e de forma rápida.

A escuridão era muito intensa. O local era muito silencioso e demonstrava para o universo que as vidas por ali estavam fora dele ou simplesmente em processo de latência profunda. Podia ser a natureza sábia economizando energia durante a noite, quando o sol forte de faroeste ainda estava em sono pesado. Nem as estrela podiam ser vistas. Não havia algo para ser visto além do carro parado e com as luzes piscando, quando utilizaram o celular abençoado para se comunicar com Fortaleza e falarem com o Sr. Waldemiro, genitor de Bartira, que logo haveria de providenciar uma ajuda junto a seus parentes que então moravam no Município de Cedro, cerca de cem quilômetros daquele local onde estavam estacionados, no que se configurara como o prego pior ou mais crítico de suas vidas.

O socorro aguardado somente chegara por volta das quatro horas da madrugada: eram dois rapazes, parentes de Dr. Bitú em um PARATI e se lhes mostravam ser pessoas muito solícitas e estavam dispostos a lhes ajudar no que fosse preciso. Naquele momento, a bateria do carro havia descarregado quase que totalmente com o uso das luzes de sinalização que estiveram ativadas por mais de cinco horas, obrigando que aquele socorro fosse estendido para a consecução de uma bateria carregada, após terem substituída a roda dianteira por outra que lhes fora emprestada pelo pessoal do PARATI. Infelizmente, chupeta elétrica alguma tinham, urgindo–se a substituição da bateria por outra em funcionamento bom, o que fora inicialmente pensado com o uso da que alimentava o PARATI, numa ação que não pôde ser implementada de pronto porque não havia uma chave de boca ou um alicate para desatarraxar as porcas dos parafusos das presilhas da bateria daquele carro que viera para lhes socorrer naquela madrugada. O PARATI fora enviado a Icó para a obtenção de empréstimo de uma daquelas ferramentas em algum lugar daquele município, aproveitando–se o fato de que os moços que então lhes prestavam socorro serem conhecidos por ali, principalmente por integrarem a família de um político importante e conhecido, o médico Dr. Bitú, de Cedro, que era tio de Bartira por parte de mãe.

O sucesso do empréstimo fora logrado e a bateria do FIAT fora substituída pela do PARATI. O dia já amanhecia quando tentaram dar a partida elétrica do FIAT e não obtiveram êxito. Nascia então um problema mais, recomendando–se, de forma prudente, partirem todos para a casa do médico Dr. Bitú em Cedro, onde todos poderiam descansar da noite de vigília recém–terminada ao relento torturante e imprevisível, na ânsia da espera pelo socorro que somente chegara mais de cinco horas depois do incidente ocorrido. O carro quebrado fora estacionado próximo à casa de um terreno que margeava aquela estrada esburacada, de um senhor idoso, o qual lhes havia oferecido café ao clarear do domingo amanhecido, antes de dirigirem–se a Cedro. Aquele senhor se dispusera a ficar de olho no veículo. De carona, todos partiram no PARATI para a residência de Dr. Bitú, que lhes havia feito o convite providencial e gentil para estar com sua família enquanto as coisas se resolvessem e para que pudessem retomar à viagem interrompida.

Em conversa durante o café matinal com a família do tio de Bartira, todos os presentes àquela mesa rica, com tantas iguarias típicas dos sertanejos de poder aquisitivo bom, ficaram sabendo que o local do prego comentado era muito conhecido pelos muitos assaltos noturnos já ocorridos naquelas imediações, revelando algo que lhes pôs muito medo e que, se conhecido previamente ou naquelas horas longas e problemáticas, certamente teria feito daquela noite péssima o momento pior e mais terrível de suas vidas! Felizmente, nenhuma anormalidade acontecera com eles além daquelas horas de espera demorada.

Quando Oswaldo retornou àquele lugar onde o FIAT havia sido deixado, em companhia de dois mecânicos arregimentados em Cedro e mais um cidadão que era parente da família de Dr. Bitú, lá estava o velhinho simpático a fitar o universo sem nada por fazer, posicionado à janela de sua casinha humilde naquele propriedade seca imensa. Novamente, com muita presteza, de posse de uma garrafa térmica na mão, logo se lhes aproximou e ofereceu café a todos, que acabaram por aceitar e agradecer por sua ajuda cordial. Ele observava do alto de sua sapiência de idoso que todos haviam passado e estavam ainda vivendo problemas – afinal de contas, estavam no prego! Onde já se viu ficar no meio do mundo e sem socorro, ainda mais com Lara, uma criança de menos de três anos? Junto àquela paisagem sem conforto algum e sem novidades, o dia terceiro de uma viagem longa estava iniciado e ainda tinham a esperança de chegar em Fortaleza naquele mesmo dia. Mas, naquela manhã ensolarada de sertão cearense de época de seca, os mecânicos não tiveram muita sorte, não conseguindo descobrir o que impedia que o carro desse e segurasse a partida elétrica. Aqueles homens eram mesmo do tempo do carburador e, logo de saída, condenaram a agulha do sistema de injeção eletrônica, que Oswaldo não contou conversa e solicitou sua devida compra em Fortaleza, utilizando–se de seu telefone celular para pedir ao Sr. Waldemiro providências naquele sentido. Com rapidez, a peça fora comprada e enviada para a rodoviária de Icó, onde deveria ser mais tarde apanhada no balcão da empresa de ônibus que a transportaria. Os mecânicos não lograram o resultado desejado por Oswaldo, o qual se viu obrigando a solicitar o seguro BRADESCO 24 HORAS para rebocar o veículo com problema, sendo atendido com presteza. Com habilidade, guincharam o carro para cima de um caminhão, sendo então levado para Cajazeiras, na Paraíba. Acompanharam aquele caminhão no PARATI. Na oficina paraibana, um ex–funcionário da FIAT de Betim iniciava um serviço árduo de investigação do problema, após lhes falar de suas qualificações e lhes mostrar os muitos certificados de cursos que realizara na empresa italiana, todos expostos em molduras afixadas nas paredes de sua oficina ampla, mas rústica. Seus conhecimentos não foram o bastante para lhes dar alegria e lá passaram todo aquele dia, sem obter sucesso. Eram quase vinte e duas horas de sábado de Carnaval e um bloco carnavalesco desfilava em frente àquela oficina onde ainda estavam naquele dia: eram homens vestidos em trajes femininos, havendo alguns caracterizados nas vestimentas da Tiazinha sadomasoquista idolatrada. Faziam brincadeiras e uma pequena multidão os acompanhava a pé ou em pequenos carros. O cansaço lhes dominava, quando o técnico experiente em autos da marca FIAT teve a ideia magnífica de substituir as peças do sistema de injeção do carro quebrado ou com pane instalada pelas similares de uma pick–up FIAT em manutenção em sua oficina. Uma a uma foi substituída e sempre seguida da tentativa de fazer funcionar o velho UNO. Deu certo! Uma peça eletrônica fora substituída e o carro pegou e funcionou bem. Haviam encontrado finalmente o defeito. Estavam aliviados! Dado o adiantado da hora, retornaram para a cidade de Cedro, passando antes na rodoviária de Icó, onde pegaram a agulha de injeção que Oswaldo havia adquirido por telefone e que lhe fora enviada de Fortaleza. Em Cedro, pernoitaram na residência de Dr. Bitú, que então lhes prestava todo apoio logístico para que solucionassem aquele problema intrigante, disponibilizando um de seus carros e um motorista para tanto, além do conforto de seu lar. O clima estava cheio de preocupações crescentes e Oswaldo estava com os nervos à flor da pele, não tendo ânimo para coisa alguma. Não parava de se lastimar com tudo aquilo, jogando muita praga no carro amaldiçoado, sempre que se referia ao mesmo.

Domingo cedo. Estavam de volta à oficina simpática de Cajazeiras. Seu técnico estava agora tranquilo com o problema já solucionado, somente resolvido depois de muitas horas de trabalho no dia anterior e por uma sorte divina de haver naquela oficina uma pick–up FIAT com a mesma motorização do UNO, fato que possibilitou a troca de todas as partes do sistema de injeção defeituoso pelas peças correspondentes do outro veículo. Estava, portanto, identificada a razão de todo aquele prego longo e, de imediato, saíram para adquirir aquela peça famigerada na concessionária autorizada da FIAT daquele município, que estava fechada àquela manhã de domingo carnavalesco – sem vestígio algum do Carnaval loucamente agitado que então devia estar rolando em Salvador! Em Cajazeiras folião algum podia ser avistado nas redondezas daquele lugar pacato: ainda dormiam? Procuraram o gerente da concessionária FIAT em sua residência própria, que lhes atendeu prontamente, abrindo sua empresa para lhes vender a peça desejada (a última em seu estoque!), que após instalada, tornou–lhes capazes de prosseguir a viagem com o carrinho problemático. Retornaram ao Cedro, lá chegando por volta do meio dia daquele domingo. Almoçaram com a família de Dr. Bitú e, no começo da tarde, reiniciaram aquela viagem interminável rumo à capital Fortaleza, sem pressa e devagar, ainda com preocupações muitas quanto à confiabilidade vulnerável do carro frágil. Finalmente, por volta das vinte e três horas estavam adentrando Fortaleza sem que problema algum tivesse ocorrido com o carro fraco durante aquela fase última da viagem.

Para todos os viajantes, o day after fora a terça–feira imediata, na fazenda de 'seu' Waldemiro, a cerca de cem quilômetros de Fortaleza, onde confortavelmente instalados e rodeados de parentes de Bartira, tornaram conhecida sua odisseia carnavalesca através da caatinga granítica nordestina. Estavam felizes e já não mais lembravam daqueles momentos tristes. Tinham, entretanto, uma preocupação com o filho Igor, há cerca de um mês de férias em companhia dos avós maternos, o qual se lhes mostrava a ingerir muita água. A princípio, acreditaram tratar–se de sede em virtude de quentura ou mormaço do interior do Ceará no mês de fevereiro.

Na quarta–feira de cinzas, em Fortaleza, Igor fora observado por um clínico geral, o qual prontamente requisitou aos pais que fossem realizados exames de sangue e de urina completos de seu filho, coisa que providenciaram de imediato junto a uma clínica séria e respeitada da cidade. No dia seguinte, de posse dos relatórios laboratoriais sobre os exames realizados, o mesmo médico que atendera Igor no dia anterior informava ao pai que a criança era diabética e seu estado de saúde inspirava cuidados urgentes. O pai saíra dali apavorado. Igor, em companhia de seu pai e de seu irmão Iuri, ouvira também a forma direta e grosseira da colocação do médico sobre sua diabetes e começou a chorar, emocionando ainda mais o pai e o irmão após aquela notícia triste. Oswaldo sentira um pouco de raiva sobre o comportamento estúpido daquele médico que não respeitara a idade do paciente ainda criança de idade tenra, revelando um despreparo ímpar que jamais deveria acontecer com um profissional experiente. A mãe Bartira fora informada imediatamente por Oswaldo da comprovação da diabetes de Igor, com o que também ficara tristemente emocionada, embolando um pouco a voz ao telefone.

Na quinta–feira, uma médica gastroenterologista atendia Igor em seu consultório. Com sucesso e demonstrando um comportamento invejável, desfizera a imagem nojenta deixada aos pais de Igor pelo clínico geral do dia anterior. Em seguida, fora iniciada a ministração de insulina ao filho diabético para a devida normalização do teor de glicose no sangue. Paralelamente, os pais foram instruídos de tudo que se relacionava com aquela disfunção do pâncreas, seus cuidados etc.

'Surpresa' alguma aconteceu mais e, no final de semana, Oswaldo retornou para sua residência em Salvador dirigindo seu carro (que antes sofrera um check up pleno e teve seus aros consertados, somente aí desaparecendo suas amassaduras) em companhia do filho Iuri, realizando uma viagem normal e sem imprevistos. Lara, Igor e Bartira retornaram de avião na segunda–feira.

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 69-78).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 19/03/2016
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