Enrolando Línguas - Falar espanhol é moleza

Falar espanhol é moleza, dizia o Carlão, do alto de sua cultura linguística de sacoleiro no Paraguai. E dava os pulos do gato:

- Toda palavra que terminar em "ão" você pronuncia "ión", tipo "ação", que vira "ación" e 'caminhão", que vira "caminhón"... O que terminar em "ento" você põe "iento", tipo "estacionamento", que vira "estacionamiento". O que terminar em "L", tipo, "papel" é a mesma coisa. Se for plural, fale "papeles". Fácil, não? Na Cultura o ensino é bom, mas é que ensinam espanhol da Espanha, é muito diferente. Vai por mim, no Mercosul yo soy el rey!

Azar da Marinês por ter acreditado naquele cara metido a professor e, além de tudo, um incansável falastrão. Foi passar uns tempos no Paraguai, primeiramente, depois iria estender a viagem à Argentina e ao Uruguai. Queria trabalhar e, ao mesmo tempo, praticar o espanhol aprendido na Cultura por muitos anos. Depois de alguns dias em Assunção, sua primeira escala, já trabalhando, foi levar o carro zerinho na oficina, para manutenção, e a encaminharam para um escritório. Queria um escritório, lhe deram uma escrivaninha. Não entendeu patavina! A cabeça começou a dar nó. Pediu uma borracharia, e ganhou convite para uma festa regada a uísque e cerveja, que ia descambando, aí pelas três da madruga, em um desfile de nudismo. Melhor se a tivessem enviado a uma "gomería", pra consertar um pneu furado e pronto!

Pediu talher, aí sim, lhe mandaram pra oficina mecânica, quando o que queria era garfo e faca. "Taller", com dois "eles" é que é o lugar onde ser conserta carro. Precisou de bombeiro pra consertar a pia do banheiro, veio o caminhão alucinado, com sirene estridente e solícitos soldados vestidos de vermelho, mangueira em punho, procurando o incêndio que não havia.

- Ah, desculpa, a senhora queria era um "plomero", não, pra consertar um vazamento?

No posto de gasolina, lhe perguntaram se queria abastecer com "gasoil" ou "nafta", entendeu que "gasoil" era gasolina e mandou ver: encheu o tanque de diesel. É porque "gasoil" é diesel e gasolina é "nafta". O carro nem cem quilômetros tinha rodado, andou só mais três metros e nunca mais prestou.

E o pior era a confusão que ela aprontava quando chegava ao trabalho e convidava alguém para malhar:

- Vamos correr no parque esta tarde? Não gosto de correr sozinha.

Ninguém respondia, mas percebia uns sorrisinhos disfarçados, os homens arregalavam os olhos e passavam em revista seu corpo bem cuidado. Daí uns dias, um colega caladão passou a piscar para ela todas as vezes que a via e, um dia, chegou a passar-lhe a mão no traseiro. Até que a colega Josefa a chamou em particular e lhe disse o que as pessoas entendiam com o seu "correr".

- Para com isso. Tá pegando mal.

Daí entendeu que se queria dizer correr, melhor dizer "trotar" ou "correr" mesmo, mas com a pronúncia dos gaúchos, com dois ERRES de macho, tchê! Mas o que significa correr, nesses países, na pronúncia comum do brasileiro, não vou dizer. Cada um que procure por si.

Outro incidente foi com o patrão, quando o escutou dizendo que ela era uma funcionária "sin competencia". Perdeu a calma, foi de dedo em riste, desaforada, e bradou:

- Seu falso. Vive me elogiando, e agora essa. Sem competência é você. Pode fazer minhas contas, amanhã vou mostrar quem não tem competência.

O patrão apenas queria elogiá-la, ao dizer que ela não tinha competidores no trabalho, era "sin competencia", assim mesmo, sem circunflexo, a melhor funcionária entre todos.

A gota d'água foi quando perdeu a amizade da Josefa. A colega apareceu de manhãzinha no trabalho com uma linda sandália de salto. O elogio foi imediato e sincero:

- Que linda sandália. E que lindo salto de borracha!

Josefa a mirou com ódio, virou a cara e entrou chorando no banheiro. Talvez estivesse com algum sentimento de culpa, pois tinha tomado umas cervejas na noite anterior, nada exagerado, não a ponto de ser confundida com uma "borracha", uma bêbada ou que os saltos de suas sandálias pudessem ser chamados de "saltos de cachaceira".

Na volta ao Brasil, já que sua planejada viagem cultural pelo Mercosul abortou na primeira escala, Assunção apenas, Marinês está pensando entrar com um processo contra a Cultura Espanhola, sentindo-se lesada. Perdeu um carro, foi assediada por tarados, confundida com alcoólatra, perdeu o emprego e uma amizade sincera pelo espanhol que não aprendeu. E ao Carlão nunca mais dirigiu a palavra. Bandidão, picareta, gogó!

Nota: Os trechos em português das falas dos hispano-falantes são traduções livres e propõem-se a evitar mais desentendimentos. Não queremos causar nenhuma guerra desnecessária na América do Sul por mero desconhecimento de falares regionais.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 18/03/2016
Reeditado em 10/07/2021
Código do texto: T5577445
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