A sopa

Era março de 1976 e todos acabavam de iniciar o CENPEQ – Curso de Engenharia de Processamento Petroquímico. Foram antes matriculados como alunos regulares do Curso de Engenharia Química da UFBA – Universidade Federal da Bahia, onde foram aceitos após aprovação em concurso específico para o CENPEQ. Integravam o grupo de 8 (oito) alunos vindos da UFC – Universidade Federal do Ceará, dentre os 34 (trinta e quatro) que foram selecionados junto à UFPA – Universidade Federal do Pará e à UFPE – Universidade Federal de Pernambuco para compor o alunado do convênio PETROBRÁS/PETROQUISA/UFBA, todos engenheirandos, excetuando–se dois funcionários da PETROBRÁS, já graduados, os quais não fizeram o concurso: Aloísio e Nery (Antônio Messias Nery).

A sala de aula ficava no sétimo andar do prédio da Escola Politécnica de Engenharia, no bairro da Federação. Ali, todos os alunos do CENPEQ eram admirados pelos professores e alunos daquela escola tradicional, o que naquela ocasião decorria de terem sido aprovados em concurso aberto para aquela pós–graduação muito badalada, a qual despertava o desejo de todos os engenheirandos e engenheiros químicos, o que se dava em função do Polo Petroquímico da Bahia recém–criado, o qual viria a absorver todos os egressos daquela especialização e, consequentemente, já terem garantidos seus empregos – naturalmente após a conclusão do CENPEQ!

Os egressos da UFC foram informados do RU – Restaurante Universitário por João Nery, aluno regular do Curso de Engenharia Química da UFBA e aprovado para fazer o CENPEQ, recomendando–lhes adquirir os tickets para serem comensais dali:

– Fica lá no Corredor da Vitória e a comida é muito boa e barata! Vale a pena irmos comer lá, pois é bem mais barato que na cantina da Escola Politécnica! Fora uma atitude simpática daquele colega, que já era comensal do RU.

– Onde compraremos os tickets? Perguntou José Gilson.

– Podemos ir todos juntos lá, vocês vão gostar! Frisou João Nery.

– Quantos de vocês vão querer? Indagou José Gilson aos egressos da UFC.

– Para o mês inteiro! Todos responderam a indagação ao mesmo tempo.

No dia seguinte, por volta das 12:00, lá estavam na fila quilométrica para almoçar, quando alguém falou baixinho, o que todos escutaram perfeitamente:

– Há calouros na fila!

– Calouros não, quintanistas de Engenharia Química! Retrucou José Afonso, de imediato, fazendo aquele engraçadinho calar–se, provavelmente porque era aluno ainda com poucos semestres em algum curso da UFBA.

Chegavam cada vez mais perto do local onde teriam enchidas as bandejas com alimentos servidos do almoço daquele dia, quando José Júlio deu uma olhada rápida nas bandejas já abastecidas de comensais à sua proximidade e disse:

– Vejam só, tem uma sopinha muito legal!

– Dou o maior valor! Oswaldo soltou esta frase com sua boca cheia de saliva, quase emitindo–a sobre a superfície da própria bandeja que segurava.

Com a bandeja repleta de tudo que garantia o direito de comensal naquele restaurante, passaram a procurar por um lugar desocupado ou livre para sentar e comer. De repente, começaram a bater os talheres contra os pratos, o que provocara uma zoada intensa naquele restaurante sem nenhum cuidado ergonômico, especialmente quanto ao conforto sonoro, muito neglicenciado em sua concepção arquitetônica:

– O que é isto? Perguntou Fernando Parente.

– É o protesto dos comensais por ter acabado a sopa e por não mais estarem repondo o panelão! Responderam José Gilson e Augusto César, quase que simultaneamente.

– Fomos salvos por um triz! Oswaldo falou juntamente com José Afonso e José Ribamar.

– Bem, tem uma mesa lá no canto, vamos para lá! Apontou José Júlio com ajuda de sua bandeja, fazendo um gesto meio tímido com o rosto.

Sentados e famintos, passaram a atacar suas bandejas. Muitos comentários sobre os alimentos foram postos por todos:

– A comida está fria! Retrucou José Afonso.

– A carne está muito dura! Fora o comentário de José Ribamar.

– O arroz está quase cru! Falou Fernando Parente.

– O feijão está com cheiro e gosto de alimento queimado! Oswaldo ressaltou tais propriedades organolépticas.

Naquela ocasião, a sopa parecia ser a única salvação para todos. Logo, a palavra foi tomada:

– O que estão achando da sopa? Oswaldo dirigindo–se aos vizinhos acomodados à sua mesa.

– Puxa, de que é mesmo esta sopa? Perguntou Fernando Parente.

– Acho que é de galinha! José Afonso e José Ribamar responderam, mas não demonstraram muita convicção na afirmativa.

– Não é de carne? José Júlio e José Gilson intercederam, mostrando fragmentos de carne bovina em suas colheres, a qual mais parecia ser formada de pelancas ou aparas de carne, certamente.

– Tem cheiro de peixe! Falou Raimundo Amorim, alheio àquela sopa nas bandejas dos demais e por não tê–la em sua refeição, arregalando os olhos vibrantes e muito espantado ao colocar sua própria observação com crueza notória.

Naquela ocasião e sem conversa alguma, esqueceram–se daquela comida temperada e passaram a comer a sobremesa de queijo e doce de goiaba: Romeu e Julieta. No momento seguinte, deixaram o restaurante para retornar à Escola Politécnica, quando Augusto César falou:

– Não volto mais ao RU! Todos concordaram com aquela posição, através de um silêncio que teve a conotação de reprovação completa da qualidade da comida ali servida.

– E os tickets, o que vamos fazer com eles? Perguntou José Afonso.

– Jogar fora! Respondeu José Júlio, objetivamente.

Aquela sopa de galinha horrivelmente fatídica – com aparas de carne bovina e com cheiro de peixe – matara apenas temporariamente o apetite exagerado e costumeiro de todos, deixando–os hipoglicêmicos e obrigando–os a fazer um lanche complementar antes do início das aulas do horário vespertino na cantina instalada na escola, explorada pela simpática Dona Hilda, no mesmo andar onde funcionava o CENPEQ, logo ao adentrarem à Escola Politécnica de Engenharia.

Suas memórias registraram tudo aquilo para sempre, tendo também lhes afastado definitivamente do RU, aonde nunca mais voltaram; e, mesmo ele tendo sido desativado pela UFBA somente muitos anos depois, ainda hoje persiste em suas mentes aquela aventura histórica e folclórica de tentarem ser comensais do RU da UFBA quando se depararam com uma sopa não consumível ou intragável. Daquele lugar saíram completamente frustrados, fato que marcou definitivamente suas vidas, transformando–se em motivo hilariante quando de comentários sobre o assunto 'comida' em suas reuniões raras ou encontros esporádicos, geralmente quando procedem abordagens sobre seus momentos primeiros na cidade maravilhosa de todos os santos.

Apesar de terem reprovado a qualidade da comida do RU, a qual se lhes mostrou incompatível com as exigências particulares daqueles comensais, reconhecem que aquela existência real garantiu as refeições necessárias a muitos dos alunos formados pela UFBA, sem as quais não teriam tido condições de estudar e morar em Salvador, particularmente para os oriundos de municípios outros ou distantes da capital baiana ou se cidadãos originalmente humildes – mesmo que originários de Salvador. Por terem sido bolsistas bem remunerados da PETROBRÁS/PETROQUISA nos idos de 1976, formaram um grupo de alunos extremamente privilegiados e tiveram dinheiro para pagar as refeições na cantina de Dona Hilda, em restaurantes espalhados pela cidade ou mesmo no apartamento alugado, onde consumiam regularmente feiras de alimentos e produtos de uso normal pelas famílias soteropolitanas. Na residência alugada também mantinham empregada doméstica para lhes ajudar nas tarefas daquele lar ou quasi lar. Enfim e particularmente, a desativação do RU matou a esperança de muitos e muitos candidatos terem a chance de dar continuidade aos seus ingressos na UFBA e de garantir suas formaturas pela mesma universidade, o que se constituiu num crime desmedido, perverso e inaceitável contra muitos dos filhos desta Bahia esplendorosa e, provavelmente, deste país gigantesco e bom, sendo esta última consequência de uma extensão maior da malvadeza que representou a falta do RU para esta Terra Brasilis enorme.

Salvador, 2006.

Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 59-64).).

Oswaldo Francisco Martins
Enviado por Oswaldo Francisco Martins em 17/03/2016
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