A caçada de galinha d'água
Ao amanhecer do dia, com o Sol por sair do seu recolhimento noturno, tio Walter acordava pontualmente seus dois sobrinhos mais queridos e amados quando ainda estava escuro, por volta das cinco horas da madrugada, após já ter coado o café matinal para o seu desjejum, que sempre era seguido por tragos venenosos de um cigarro CONTINENTAL sem filtro. Os sobrinhos estavam em férias no sítio de seus avós e sentiam–se excitados com a caçada de galinha d´água durante aqueles anos sessenta, quando aquelas aves abundavam na lagoa do Modubim, que banhava a faixa limitadora do fundo daquele latifúndio gigantesco, repleto de árvores frutíferas e muito bem cuidado pelo tio solteiro que ali se recolhia para viver mansamente e ter sua vida pacata, de herdeiro certo daquele quinhão de terra esplêndida. Com muita nitidez, tio Walter falava para seus amigos mais chegados sobre aquele bem patrimonial magnífico, quando frisava sempre que após seus pais fecharem os olhos, ele herdaria aquilo tudo e saberia bem cuidar dos cento e sessenta e cinco pés de coqueiros adultos e em produção, cujos cocos raramente faziam parte de seu consumo ou dos que ao sítio se achegavam, como também não os comercializava. Seus cachos tinham apenas o objetivo de ornamentar os coqueiros lindos e muito bem cuidados – um dos muitos cartões postais daquele sítio! Ao contrário, as mangas, goiabas, abacates, etc., vendia com frequência a compradores certos e de sua confiança. Inclusive, para aumentar a quantidade de mangas nos dias de suas entregas marcadas para com clientes cativos, sempre que a quantidade delas não atendia à demanda estimada para o dia da entrega, na noite de véspera costumava pô–las em um baú de madeira com pedras de carbureto presentes internamente de sorte que suas cascas ficassem amareladas justo no dia seguinte, imitando–se dessa forma os exemplares de frutos semelhantes amadurecidos no pé, posto que sabia que tal aparência estava associada à aceitação favorável de seus produtos pelos consumidores finais, que apenas haveriam de ter uma surpresa desagradável no momento de degustá–las!... Tratava–se de uma prática entre os produtores de manga mais tímidos, onde tio Walter se incluía e bem sabia que dava resultado bom!
Mais uma caçada de galinha d´água na lagoa do Modubim, antiga Vila Brasil, que depois passou a ter o nome de Vila Manoel Sátiro, ainda naqueles anos sessenta, quando a capital alencarina estava em efervescência política, fato que contrastava com a paz sepulcral daquele esplendoroso latifúndio. Além de uma pistola calibre 22, cujo uso jamais fora visto por algum cristão, tio Walter tinha uma espingarda calibre 28, marca ROSSI, de apenas um cano, cujos cartuchos de metal ele mesmo costumava carregar em casa, nunca adquirindo exemplares de papelão para a prática de tiros, uma vez que a munição comprada pronta era cara e muito onerosa para os propósitos de diversão a que unicamente se destinavam. Ressaltava o fato de que a espingarda somente era usada por ele, sobre a qual não tolerava o toque de criança alguma. Isto acontecia por questão de segurança, certamente. Tio Walter era um samaritano bem-comportado, afeito infelizmente à bebida alcoólica e ao tabagismo, erros ou vícios que acabaram por levá–lo à morte ainda naquela década de sessenta.
Após deixarem a casa pela porta dos fundos, eles andavam pelo caminho de areia branca situado no meio do terreno, definido com cerca de dez metros de largura e entre duas filas de coqueiros adultos, numa simetria que embelezava até mesmo aquela senda alva e permanentemente sem vegetação, demonstrando claramente a ação do intemperismo geológico sofrido por aquele solo desprotegido ou sem mato em sua camada estratigráfca aflorante e que, assim, confirmava o aspecto da degradação impiedosa imposta pela natureza, ali revelada na erosão causada principalmente pelas águas pluviais. Alguns poucos minutos apenas eram gastos até junto à barragem de alvenaria, que impedia que a lagoa invadisse os fundos do sítio, coisa perfeitamente dispensável em função dos invernos serem rarefeitos e diminutos ali. As chuvas caiam em menor número face às secas que normalmente maltratavam e ainda castigam a região nordestina.
De postos tomados, tio Walter mantinha sua espingarda carregada esperando a claridade da manhã confirmar a visão de alguma galinha d´água, a qual deixaria o mato sobre a lâmina d´água situada em seu sítio e nadaria para o terreno vizinho, situado do lado direito, que não apresentava vegetação sobre o líquido cristalino daquela gigantesca lagoa. Portanto, aquelas aves podiam ser normalmente vistas apenas quando nadavam em água descoberta das costumeiras plantas aquáticas de seu habitat natural, num momento de fragilidade de suas proteções contra o ser humano menos favorecido na sociedade dos homens, o qual as predava com insistência em função de sua carne boa e saborosa. No caso particular e específico de tio Walter e seus sobrinhos, era simplesmente uma diversão, posto que suas condições econômicas eram excelentes e dispensavam tal necessidade. Sem sombra de dúvida, para os dois sobrinhos ingênuos, a vontade que sentiam era cair naquela água maravilhosa para apanhar a caça abatida, de tomar um banho maravilhoso na forma em que se vem ao mundo, além de estarem aprendendo como caçar na boa companhia de um tio e amigo de verdade. Assim, ficavam na tocaia, não podiam falar, rir – era um silêncio que dava para se escutar o canto dos pássaros que estavam então a acordar, a 'fala' dos sapos junto à beira d´água, o som dos grilos em sua música monotônica, a presença do vento suave e frio no capinzal, nas folhas em atrito nos galhos dos muitos cajueiros frondosos a povoar aquele sítio. Era certamente um instante de muita concentração, mas que deixava em todos ansiedade enorme pela espera fatal das belas aves azuladas, condenadas a morrer em prol do sucesso daquela empreitada empolgante, porém certamente antiecológica!
Na casa do sítio e já acordado, o avó Marcelino – Marcelo era como a avó Filisolina o chamava, que ele atendia e retribuía chamando–a de Filó, sem nenhum segredo, de vez que estes apelidos ou hipocorísticos transformaram–se em seus nomes de fato, por todos usados – percebia que os homens estavam a caçar, trazendo à sua lembrança as muitas caçadas que fizera nas décadas de quarenta e cinquenta, quando sua catarata vigente não o impedia de ter uma pontaria certeira, sendo sempre bem sucedido nas muitas e muitas caçadas que fizera, das quais só restavam então suas histórias, as quais contava aos seus netos, principalmente quando da oportunidade de reunião de todos no alpendre circundante da casa principal do sítio. Intercalava àquelas narrativas adivinhações curiosas, nunca deixando de contar uma que ele intitulava de 'Massa e Piti'. Muitos dos sobrinhos decoraram suas estórias e histórias, a ponto de contá–las com os mesmos suspenses e pausas utilizados pelo avô Marcelino.
Um estampido fora ouvido e o avô ficara na expectativa de ver alguma galinha d´água abatida, talvez para matar a saudade dos tempos em que sua pontaria era precisa, invejável, capaz de abater um morcego em pleno voo com um tiro de espingarda com uma só bala. Todavia, já na hora do café ser tomado, o tio e os sobrinhos regressavam cheios de histórias de caçador e nenhuma ave morta. Tentavam explicar os tiros perdidos, errados ou acertados na ave que fugira baleada, conformando dois problemas possíveis para a situação em mira: a inadequação da espingarda para aquele tipo de caça e caçada e a falta de pontaria velha e suspeitada. No entanto, a segunda hipótese jamais fora posta em discussão, provavelmente para não se pôr à prova a saúde da visão de tio Walter, que sequer usava óculos e não demonstrava dúvida alguma ao falar de sua pontaria 'certeira'! Ficavam sempre muitas dúvidas no ar!...
Nova investida contra as galinhas d´água era prontamente marcada na noite que se seguia ao fracasso matinal da caçada recém–praticada, atraindo aquelas crianças para continuar a fazer companhia ao avô e ao tio samaritano, homens adultos que tanto amavam aquele paraíso maravilhoso, onde os sobrinhos eram ainda muito infantis e, por vezes, outros primos – estes com idades bem superiores – também passaram muitas férias escolares, as quais ficaram para sempre gravadas em suas memórias inapagáveis.
Salvador, 2006.
Conto publicado na obra do autor A caçada matinal e outros contos (2006, p. 27-31).