O Meu Melhor Natal
O meu melhor Natal.
(um conto de um orfanato)
Não sei dizer qual era a idade a que eu tinha naqueles dias, apesar de lembrar de tantas coisas. Eram dias de festas e de alegrias. As pessoas se confraternizavam muito naquela semana. Não me lembro do que eu já sabia com aquela idade. Mas para mim tudo era muito grande. Mas sabia que eu era muito pequeno e essa era uma das raras certezas que eu tinha. Não sabia a cor dos meus olhos e nem pra que existia no mundo meninos e meninas.
Era de manhã e o sol tinha saído, mas ele estava vagaroso no seu calor. Eu,porém me sentia confortado. Dirigi-me para um dos pátios do orfanato acompanhado da Solidão e do Silêncio. Este último sempre gostou de ficar comigo. Em mim não havia medo ,estava em casa. Ao chegar no meu destino um lugar enorme de chão cimentado e solitário, a Solidão me deixou e se foi sem eu perceber. No centro do pátio estava a gigantesca árvore que tinha suas copas balançadas pelos ventos tranquilos. Andei pelo pátio de mãos dadas com o Silêncio e logo encontrei no chão o fruto. Era uma grande manga que de tanto precisei usar de minhas duas mãos para pegar do fruto bonito. Porém me lembro que não sabia o que fazer com ele mas, logo pensei em alguém.
Me dirigi à grande cozinha de ladrilhos brancos com suas gigantescas panelas. Eu cabia em uma delas e sobrava muito espaço. Chegando, dentre as tantas tias que já se preparavam para fazer o almoço, eu chamei por aquela que talvez fosse a mais velha, a mais magra. Ela tinha no rosto a caricatura de avó e o desenho de mãe. Quando ela chegou perto de mim, lhe ofereci a manga de casca
verde escuro pontilhada, com um perfume de fruto maduro. Quando ela chegou eu lhe disse: "Toma tia é para a senhora." Ela recebeu o fruto com um sorriso no rosto e disse-me alguma coisa que não me lembro. E afagou a minha cabeça. Esse gesto valeu por tantos outros que eu nunca tinha recebido e nunca o esqueci.
No outro dia outra tia me chamou e me disse para ir tomar banho. Pois que eu iria passar a tão falada festa na casa da tia que no dia anterior tinha lhe dado a manga. Prontamente corri para o banho e ajudado por outra tia eu já estava eufórico e pronto. Encontramos com a tia da cozinha no portão de saída do orfanato. Ela me pegou pela mão com sua mão magra e carinhosa. Estranhamente aquilo me fez bem. E assim partimos. Dentro do ônibus ela me orientou a passar por baixo da roleta. Isso pra mim foi indescritível ,foi o máximo. A janela do ônibus parecia uma televisão, eram tantas casas que passavam e nem sei onde descemos. Sei que fomos a vários lugares e eu radiava felicidades pelo rosto e as pessoas sorriam.
Quando chegamos, já era o final de tarde. O céu deixou de ser azul claro e se vestiu de uma cor mais escura. As tias às vezes explicavam que ele trocava de roupa e vestia o seu pijama. Até um tempo acreditei nisso e fiquei triste quando soube da outra verdade.
A casa era antiga de paredes brancas descascadas e ao chegar, vi um monte de crianças e logo já estávamos correndo por todos os lados e direções. O quintal era enorme, do tamanho de um campo de futebol. O portão era de fortes madeiras brutas e antigas. Quando a noite enfim chegou de repente sem nos avisar, já não éramos tantas, mas poucas. Mas após um tempo, todas as luzes se apagaram. A escuridão não ficou por muito tempo. Só resolveu dividir com as muitas velas acesas os espaços que haviam dentro daquela velha casa.
Mas o meu maior deleite foi quando vi pela primeira vez as rabanadas sobre um tipo de prato de metal brilhoso longo. Elas brilhavam lindamente sobre a luz das velas. A cor amarronzada brilhosa do açúcar com canela era algo fora do comum. Me apoiei sobre a beirada da mesa de madeira grossa e contemplava aquelas maravilhas. Elas eram enormes sobre a mesa. Que por sinal era grande, comprida e também alta. Somente os meus olhos ultrapassavam os limites da sua altura. As rabanadas eram lindas e enormes. Sim elas eram realmente enormes e me fizeram ficar ali parado.
Não houve naquele dia e naquela noite algo tão bonito e incrível do que aquela travessa cheia de rabanadas brilhantes. Nunca tinha visto ou provado uma única vez na minha vida uma rabanada.
Tudo era novo, tudo era mágico, tudo era visto em câmera lenta. Não havia ângulo melhor porque somente o meu nariz chegava até a altura da mesa. Ao olhar para os lados percebi que outras crianças também estavam ao redor da grande mesa com seus olhos em outra dimensão.
Então entendi que aquele momento não era somente meu.
Uma senhora alta mulata de sorrisos muito brancos que tinha os braços fortes gritava vez ou outra para as crianças que faziam suas artes e brincadeiras. Com as mãos na cintura ele pedia que corrêssemos lá fora e não dentro da casa. Nós crianças não sabíamos de onde vieram ou quem eram as outras. Mas eu não saía de perto da mesa. Estava literalmente hipnotizado. Aquele prato alongado cheio de enormes rabanadas me prendia os pés, os olhos, a mente e a minha vida naquele lugar.
Após algum tempo aquela senhora voltou a gritar para que todas as crianças chegassem ali. Éramos muitas crianças e cada uma de nós viu aquela senhora se aproximar da mesa e bem segura de se pegar o grande prato alongado com carinho e habilidade. Ela começou a distribuir entre nós crianças aquele tesouro desconhecido e lindo. Um vento frio e calmo adentrou na casa pela porta e janelas e assoprou na sala o cheiro doce de canela e se foi.
Cada uma de nós recebíamos um bom e enorme pedaço de rabanada. Me lembro que o pedaço que recebi era do tamanho ou maior que o meu rosto. Tive que segurá-lo com as duas mãos aquela gigantesca rabanada. Me senti a criança mais feliz do mundo, mais rica da terra. Neste momento de olhos esbugalhados vi o céu pipocar em luzes e logo vieram os estouros. Os meus dedos umedecidos estavam cheios de açúcar e não sabia por onde começar a comer a rabanada. Ao lado uma menina dava em sua rabanada o seu primeiro pedaço. Logo assim provei pela primeira vez. A minha boca se encheu de salivas, a minha língua não sabia o que informar ao meu cérebro e este me deixou num estado letárgico. O riso veio no meu rosto, o corpo estava feliz por inteiro. Sensações atrás de sensações vinham dentro de mim e iam na respiração. Tudo era incrível.
Os adultos se abraçavam e logo me vi de mãos vazias meladas e com a alma satisfeita. Os estouros ainda podia ouvir e o céu escuro brilhava em pontos. As mãos limpei vagarosamente, ritualmente com a boca mas primeiro foram os dedos da mão direita. Quando ia começar na mão esquerda aquele ritual saboroso eis que aquela senhora surgiu de repente e pôs-se a distribuir outras rabanadas. Foi outro pedaço a metade, se me lembro, de uma rabanada.
Não me lembro como dormi ou com o que eu sonhei. Não me lembro como voltei para o colégio interno e como foi a minha volta. Parece que vivi tanto em pouco tempo. O meu melhor Natal.