Pecado mortal
“Às vezes acho que compreendo, outras não. Foram tantos anos! Num dia, estávamos vivendo um idílio, e no dia seguinte... enfim, sondar a alma feminina não é o meu propósito - e nem me atreveria a tanto. Apenas relato que todo o processo alterou meu centro de gravidade e, após o fato consumado, adquiri alguns hábitos estranhos: às vezes ia à beira da praia e andava, andava, andava até praticamente cair de cansaço. Sem me importar com a volta, outro caminho igualmente longo que deveria percorrer. Uma vez passei a noite na areia, o guarda veio me cutucar com a ponta do pé como faria a um mendigo, ainda que eu estivesse apenas de calção de banho e um par de chinelos, e não em trapos. Não havia bebido uma só gota de álcool, pois estar embriagado era como uma condição natural, já que assim me sentia diariamente... Enfim, minha cara, eu queria apenas que soubesse que não a pouparei de conhecer o estrago que tudo causou em mim. Não pedirei desculpas por entrar em contato assim, não creio que precisemos nos desculpar por nada, mas precisava que você soubesse. Um beijo, S.”
Camila olhou com estranhamento a tela do computador. Leu e releu, mas não refletiu antes de começar a responder.
“Silvio, foi uma imensa surpresa receber seu e-mail. Não imaginava que, depois de quase um ano e tudo acertado entre nós, você pudesse ainda sentir-se magoado. Nossa despedida foi suave, você havia entendido tudo (ou ao menos foi o que me disse) e respeitava minha decisão. Como pode, agora, depois de tanto tempo, querer fazer-me sentir mal? Não pense que cairei em sua armadilha, não me fará sentir culpas, nada lhe fiz de errado. Nosso caso não tinha futuro e você bem o sabia. Espero que compreenda. C.”
Apertou a tecla “enviar” sem o menor remorso. Estava tudo morto e enterrado, aquele zumbi temporão não iria conseguir se alimentar de sua culpa. Respirou fundo e foi trabalhar.
Mais tarde, outra mensagem em sua caixa de entrada. Ao ver o remetente, uma parte dela pensou em apaga-la imediatamente, mas a outra parte, muito maior, não se atreveu.
“Camila, Camila... que ingênua você se tornou. Não vou poupá-la, já disse. Mesmo porque tudo o que vivemos havia me dado enfim esperança de que a vida pudesse ter algum sentido. Era bom estarmos juntos, existia um futuro – ou apenas eu, ingenuamente, imaginava que houvesse – e os dias não se arrastavam como se arrastam agora. Às vezes olho as pessoas caminhando apressadas, algumas com filhos, outras com cães; trabalhadores furando o concreto da calçada e suando sob o sol, outros vestidos a caráter para passar o dia em seu cubículo sob o ar condicionado. E me pergunto insistentemente: pra quê? Todos teremos o mesmo, o mesmíssimo fim. Seja precocemente ou depois de uma longa jornada, seja suave ou dolorosamente, todos, sem exceção, estamos condenados à mesma pena. ‘Tinto ou branco, é o mesmo: é pra vomitar’. Álvaro de Campos, acho. Então, minha querida, se é esse o epílogo, já não me animo em esperar, pois o futuro fugiu de minha visão. Só vejo um buraco onde posso me afundar rapidamente, para que não caia na patética condição de passageiro aguardando seu trem, que está atrasado demais. Cansei de esperar, Camila... vou apenas apressar a natureza, se assim me permite dizer. Pulo nos trilhos na certeza de que o trem chegará no horário. Com amor, S.”
Camila arregalou os olhos e começou a digitar freneticamente.
“Silvio, que loucura está dizendo? A vida é o bem mais precioso que temos, e dela não somos donos. Pense em tudo o que construiu, as pessoas que o cercam, aquelas pessoas que o amam e as que dependem de você! Como pode ser tão leviano a ponto de cogitar uma barbaridade dessas? E não sei se sabe, Silvio, mas nenhum pecado se compara a esse. É pecado mortal na mais verdadeira acepção do termo, já que aquele que tira a própria vida não conseguirá se arrepender e confessar-se, libertando-se de estar em débito com Deus. Um pecado gravíssimo que precipita as almas direto ao inferno. Desde quando, Sílvio, você passou a negar as coisas divinas?”
Enviou, coração aos pulos, e nem bem se passaram dez minutos a resposta chegou.
“Pessoas que dependem de mim? Nunca tive filhos, você bem sabe. Já não tenho mais família. As pessoas não me amam, elas me usam. Sou só. E tudo o que construí pode ruir se cair uma bomba ou vier uma enchente... Não creio mais em Deus, portanto como alguém que não existe poderia me castigar? Ademais, estamos do lado de baixo do Equador, aqui não existe pecado. Ah, Camila, vivi demais, chega. Meios não me faltam, coragem menos ainda. Vou levar comigo, seja onde for que essa estrada dê, a doce lembrança de seu olhar, seu corpo, sua voz... Isso seria um adeus? Sim, é. Lembre-se sempre de mim, minha amada. Agora, deixo um último beijo para você. S.”
Camila desesperou-se. Agarrou o celular, encontrou seu número, ligou. Caixa postal. Então sai apressada, pega o carro na garagem e voa para o prédio onde ele morava. Não havia lugar para estacionar, para em fila dupla, desce correndo e toca o interfone. Os portões se abrem e, tropeçando nos degraus, chega à portaria.
- Dona Camila, quanto tempo... – disse o porteiro, amigável.
- Moacir – respondeu Camila, apoiando-se na guarita, ofegante e quase sem voz – me deixe subir, por favor
O porteiro olhou com estranhamento e depois ensaiou um meio sorriso, constrangido.
- Dona Camila, seu Silvio se mudou tem uns três meses...
- Mudou?
- Isso. A filha dele, que morava fora, veio morar com ele. E então...
- Filha? – Interrompeu Camila, quase gritando.
- Isso, uma moça bonita, uns vinte e poucos anos... até brinquei, como um homem feio como o senhor tem uma filha linda dessas? Ele riu, a senhora sabe como ele era brincalhão, me disse que era a cara da mãe... Contou também que a menina tinha se formado, então resolveu voltar para o Brasil para ficar com ele. Moraram aqui mas, depois de um tempo, venderam tudo, foram embora de mala e cuia, felizes da vida, dizendo que iam começar vida nova num país sem crise. Foram para o Havaí! Olha, hoje mesmo ele me mandou uma foto.
Sacou de seu celular, buscou entre as mensagens e, ao encontra-la, mostrou-a a Camila. Olhos arregalados e narinas dilatadas, ela viu Silvio numa belíssima praia, sorridente e bronzeado, envolvendo com os braços - de forma pouco paternal - uma garota que tinha, no máximo, metade de sua idade.
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Este texto faz parte do Exercicio Criativo "Pecado Mortal"
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