De todo meu coração
Chego na clínica às oito e cinco. Meu primeiro paciente é às oito e meia. Um moço de 30 anos e precisando de um eletrocardiograma. A Fernanda, minha secretária e atendente já está lá.
- Bom dia! - digo, sorrindo
- Bom dia - responde, e me passando uma agenda, prossegue - aqui estão suas consultas de hoje. E ah, tem batom no seu dente - e ri.
- Por isso que eu odeio passar batom! - e rio - tem café?
- Acabei de passar.
- E já tomou?
- Ainda não…
- Vamos lá, então - volto e encosto a porta de vidro da frente da clínica. - Você já volta.
Caminho até a copa que fica próxima ao banheiro unissex.
- O cheiro está ótimo. - digo enquanto bebo - e o gosto também! Preciso de muito café hoje.
- O dia foi difícil ontem?
- O problema foi a noite…
- Teve insônia?
- Não, outros probleminhas...
- Ah sim, ele ligou aqui… - ela diz e apressa-se para sair da copa - preciso voltar para a minha ilha.
- O que foi que ele disse?
- Não muito… só que queria você ligasse para ele quando chegasse aqui. E que te ama - diz, e sai.
Eu não ligarei para ele.
“Ele” é o Fabrício, meu ex-namorado. Tivemos uma briga feia ontem. “eu te amo e por isso quero que você fique aqui comigo” ele dizia, “eu tenho uma vida fora da sua casa” eu retrucava, “pois não deveria, eu que sou sua vida” falava como se isso fosse uma verdade incontestável. Depois de um ano de namoro, ele começou a ser cada vez mais possessivo. Vinha com aquele papo de “se você não for minha, não será de mais ninguém”, “você é a minha vida” e coisas do tipo. O que não me incomodava antes. Mas agora me irrita e muito. E não tenho tempo para lidar com isso. Eu tenho uma vida sozinha, e não preciso de distrações como um homem no meu pé, achando que só vive por mim, e que eu devo fazer isso por ele também.
Vou até o banheiro e retiro o excesso de batom em meu dente. Meu celular toca e é ele. Eu atendo.
- Eu te amo, você sabe disse não é? - ele diz
- Nós estamos acabados - eu digo, lenta e claramente
- Não, nós ainda podemos construir um futuro juntos, eu sei disso.
- Não podemos e não iremos.
- Eu te amo. Você vai ver. Eu vou te provar…
Eu desligo o celular. Ele é insistente demais. O que chega a ser macabro. Eu sei que términos não são fáceis, mas não é preciso exagerar.
Caminho até meu consultório.
Notebook, agenda e caneta na mesa. Tudo está certo. Confiro os equipamentos para o exame de Alberto, meu paciente.
Fernanda bate na porta, digo que pode abrir, e ela me diz que ele já está aqui.
Ele chega um pouco antes do horário, mas saio da sala e o chamo:
- Bom dia, Alberto! - aperto sua mão gelada - pode entrar!
Ele somente acena com a cabeça e entra.
- Vou precisar ficar pelado? - ele logo pergunta.
- Não, preciso que você tire a camiseta apenas.
Aparentemente, ele quer que isso acabe rápido. Assim como eu. Estou com uma dor de cabeça que me consome.
- E fique tranquilo - aconselho. - Por favor, vá até aquela sala - mostro uma porta à minha esquerda - é lá que estão os equipamentos.
Ele dirige-se até lá, e quando chego na sala ele está deitada na maca já.
- Por favor, sente-se.
Batimentos ok.
Respiração ok.
- Agora sim, pode deitar-se - digo.
Faço o exame, o mais rápido que posso. Mas o que nunca leva menos de 30 minutos
- Os resultados do exame ficam prontos até o fim da semana. Mas pelo que pude notar, não temos nenhum grande problema por aqui. Talvez seja apenas má circulação mesmo - digo enquanto o dirijo até a porta.
- Ah sim, obrigado!
Peço para Fernanda fazer um protocolo do exame dele. Número “001674”. Eu invento os números conforme faço os exames. 16 dias para a Páscoa. 7 horas para o fim do expediente. 4 dias para o fim de semana.
Mais de uma hora se passou durante a consulta, e nem percebi.
O próximo paciente deve chegar daqui meia hora.
Vou até a copa e como duas torradas com geleia de amora.
Na volta, Fernanda me aborda:
- O Rodrigo ligou e disse que não poderá vir.
- Sério? E você remarcou para quando?
- Amanhã, às três e meia - ela me diz e corre até seu balcão - e ah, acabou de chegar isso.
Me entrega uma caixa vermelha de tamanho médio, fechada com um laço roxo. Percebo um cartão.
- É dele - diz, e continua - mas não foi ele quem entregou.
- Não acredito. Obrigada - digo, pegando a caixa.
Caminho até minha mesa. Sento-me.
“De: Fabrício
Para: Cássia”
Desfaço o laço. Muito bem feito, por sinal.
Abro a caixa.
Me deparo com um coração humano coberto de sangue, e com ele um bilhete:
“Meu coração será seu para sempre”