A vida para uns e a vida pra outros

O Relógio marcava 12:47 quando Tiago se levantou da cama, ainda sentia-se sonolento devido ao calmante que tomara na noite anterior.

Pisou sobre as dezenas de folhas de estudos e livros jogados no chão. Fazia mais de um ano que estudava na expectativa de passar em um concurso público, mas nas quatro provas que fizera não chegou nem perto da aprovação.

Foi até a cozinha, no armário pegou o que gostava de chamar de “coquetel da felicidade artificial”. Consistia em quatro comprimidos, cada um com funções distintas. Um era antidepressivo, que lhe dava animo para se levantar da cama sem que passasse o dia se sentindo um pedaço de carne podre cheirando a bosta, o segundo controlava seu nervosismo e a ansiedade, e o terceiro impedia, ou pelo menos deveria impedir que tivesse as visões. Esses somados a um calmante que deveria ser tomado todas as noites antes de ser deitar completavam o coquetel.

Jogou os três primeiros de uma vez na boca, encheu um copo com água da torneira e bebeu engolindo-os. Quando pôs o copo sobre a pia notou que ele estava sujo de sangue, olhou para a mão. O dedo do meio o qual faltava uma unha voltara a sangrar. Em um surto de ansiedade ele a roera até não haver mais nada além de uma grande e nojenta ferida, isso havia sido há duas semanas. Enrolou a mão em um pano de prato encardido que não demoraria a se tornar rubro.

Voltou para o quarto e deitou-se, ainda havia algumas horas até ter de ir trabalhar. Trabalhava no turno da madrugada em uma farmácia que funcionava vinte e quatro horas e ficava à beira de uma rodovia interestadual, bem próximo de onde as putas e os travestis faziam ponto. Passava noite vendendo camisinhas, pílulas do dia seguinte, testes de gravidez, Viagra e lubrificante. Apesar de odiar aquilo não tinha o que reclamar, podia roubar todos os remédios que precisava para o coquetel de felicidade artificial.

Olhou para as folhas e livros no chão, queria estudar, mas não tinha animo para nada. Fechou os olhos. Dormiu.

Acordou horas depois, estavam batendo na porta. Levantou-se com dificuldade e ainda sonolento, as batidas continuavam. Incessantes.

– Já vai porra!!! – Gritou.

Mas batidas insistiam, cada vez mais fortes. Ele Bateu com o pé em um móvel da sala soltando um grunhindo indescritível, tentando se recompor foi meio que mancando até à porta onde as batias continuavam.

– Quem é? – Perguntou olhando pela fresta sem conseguir reconhecer o vulto do outro lado.

– Abre Logo essa merda. – Respondeu o Vulto.

Tiago Reconhecia aquela voz embora não a ouvisse há muito tempo. Abriu a porta.

– Quem é vivo sempre aparece! – Disse com alegria abraçando e dando três tapinhas no ombro do homem que estava à porta.

Era Negro, baixo e um pouco gordo. Era feio, mas as roupas sociais passadas e bem alinhadas que usava o tornavam bem apresentáveis.

– Como Você tá? – Perguntou o homem.

– Tô bem Lucas. E você?

– Ótimo.

– E o filhão?

– Os filhões. Tive outro moleque, e tô esperando uma menina agora.

Tiago pareceu impressionado.

– E a Eva, como ta?

– Não sei, ela me largou quando descobriu que eu tinha engravidado outra.

– Que triste. E você ta com quem agora?

Lucas olhou meio que espantando para Tiago, soltou um riso carregado de sarcasmo.

– Porra – disse – até parece que não me conhece. Sou um homem livre, um comedor nato! Não me prendo a mulher nenhuma!

Tiago esboçou um pequeno sorriso, o primeiro em semanas – Vamos entrar – disse.

Lucas se jogou no sofá bem à vontade, Tiago olhou para o amigo tentando se acostumar com seu jeito que se pode considerar folgado. Fazia anos tentava se acostumar com isso, mas não conseguia.

– Tá trabalhando na farmácia ainda? – Perguntou Lucas

– Tô sim.

– Ainda? Faz dois anos que saí daqui e você ainda tá naquela farmácia?

– Tô estudando pra concurso, acho que na próxima prova consigo alguma coisa.

– É? Você sempre quer me imitar né? Eu sou funcionário público.

– Sério? Fez prova pra que?

– Não fiz prova nenhuma, um amigo de um tio meu trabalha no gabinete de um vereador que me arrumou a vaga, você acha que eu vou perder meu tempo estudando pra prova?

Tiago não falou nada, simplesmente encolheu-se timidamente uma pontada de raiva e inveja surgindo e aumentando dentro de si.

– Faz menos de um ano, fui transferido pra São Paulo e ainda tive um aumento e direito a auxilio moradia. Vou te falar, isso é que é vida! Não esse fim de mundo aqui, ainda bem que eu saí daqui. Lá tenho dinheiro, quanta mulher eu quiser. Se eu quiser como uma por dia, ou até mais que isso. Fumo quanta maconha eu quiser. Você ainda fuma né? Vou enrolar um pra gente. Comprei um carro novo...

Enquanto gabava-se Lucas enfiou a mão no bolso pegando um pacotinho de plástico cheio de maconha. Com muita habilidade dixavou e enrolou, em menos de cinco minutos.

Tiago se perguntava se deveria fumar, fazia messes que não fumava. Desde que começara a tomar os medicamentos, não sabia quais efeitos poderia ter misturando as duas coisas. Lucas pôs o baseado na boca, pegou um isqueiro no bolso da camiseta e ascendeu. Deu uma longa tragada, prendeu o ar por alguns segundos soltando em seguida. Segurando entre o indicador e o polegar estendeu o baseado para Tiago. “Foda-se” Pensou. Pegou e deu uma longa tragada, em pouco tempo começou a sentir uma onda alívio tomar conta do seu corpo.

Passaram o final da tarde fumando e conversando, deixando de lado a conversa sobre trabalho, dinheiro e mulheres. Passaram a se lembrar das histórias que passaram juntos na infância, entre risos e gargalhadas.

À noite, depois do quarto baseado ouviram uma voz feminina chamar o nome de Lucas, ele se levantou.

– Minha carona chegou, tenho que ir. – Disse

– Quem é?

– Roberta.

– Quem é Roberta?

– Conheci ela pela internet, marcamos um encontro hoje, mas só tinham voos para o Rio de manhã, por isso resolvi passar aqui e encontrar com ela aqui. Você não achou que eu tinha vindo aqui só pra te ver né?

Tiago olhou para Lucas e sorriu, mesmo não tendo nenhum motivo. – Se cuida. – disse por fim.

Abraçaram-se forte, Lucas reconheceu seus pertences e saiu porta a fora.

Tiago ainda tinha uma noite de trabalho pela frente naquela maldita farmácia. Foi para o quarto tirou a roupa que usava e pôs o uniforme e óculos escuros no rosto, mesmo estando à noite. Saiu.

Parou na frente da farmácia, olhou para o alto vendo o grande letreiro luminoso com o nome do estabelecimento.

“Alguns Homens simplesmente não poder ser felizes” Pensou. “Pelo menos hoje eu tô alto”.

Entrou na farmácia para mais uma noite de trabalho.

Diogo Fernandes
Enviado por Diogo Fernandes em 03/03/2016
Código do texto: T5562293
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