A mulher de vermelho
Quando eu conheci Vera, acredito que eu ainda era uma boa pessoa. Não estou dizendo que eu fosse santo. Longe disso. Mas pelo menos eu vivia dentro da lei. Tinha um apartamento alugado, um emprego estável, por mais que não pagasse bem, e até um carro na garagem. Eu tinha 25 anos e pouco me relacionava com as pessoas no meu dia a dia. Eu passeava meio cego pela vida. Sem fazer nada digno de nota. Sem nenhuma grande conquista ou nenhuma grande tragédia. Eu era um cidadão cinza. Sem graça. Mediano... Comum. A única coisa que eu gostava de fazer que me tirava da monotonia era beber uma ou duas cervejas no bar Savoy e ouvir as conversas das pessoas que passavam por lá. Artistas boêmios e boêmios artistas. Aquela gente tinha uma vida tão diferente da minha que eu me sentia alienígena ali. Mas mesmo assim algo me atraia àquele lugar. E a tantos outros que eu frequentava sozinho na noite recifense. Depois que voltava a casa, eu pintava quadros de pessoas que nem sabia o nome, mas que ficaram gravadas na minha cabeça.
Uma delas foi Vera. Mas isso aconteceu mais para frente na história. Falta um pouco para chegar lá. Por bastante tempo eu tive uma amante, que era colega de trabalho. Ela era arquivista, eu era assistente jurídico. Era casada, mas não tinha filhos. O marido talvez nunca tenha desconfiado. Cansamos um do outro eventualmente. Mas o nosso fim foi de certa forma impactante para mim. Passei dias para me adaptar à falta dela. Não dela como pessoa. Mas dela como evento. Da presença feminina, do sexo culpado que ela fazia e de tudo que aquela fuga da rotina representava.
Não vou mencionar seu nome, por ser desnecessário para o transcorrer da história. Mas o rompimento foi um fato determinante para que eu me encontrasse com Vera e para que minha vida seguisse ladeira abaixo até o fundo do poço onde agora eu me encontro. Lembro que numa sexta feira, logo após uma discussão por telefone com minha ‘ex’ amante, eu saí desembestado pelas ruas e me vi, depois de um tempo, perdido na Rua da Aurora.
Me sentei na mureta à beira do rio e fiquei por muito tempo olhando o movimento dos carros. Pessoas apressadas para chegar em casa ou para chegar no bar mais próximo. E eu ali. Sem pressa. Sem rumo.
Foi quando vi uma aparição. Uma mulher, toda de vermelho. Num vestido quase vulgar. Não gosto desta expressão, mas eu me refiro a como o vestido era percebido pelas pessoas naquela época. Principalmente pelas mulheres ditas de família.
Eu me engasguei com aquela visão. A mulher, que devia ter quase 1.80, atravessava a rua em direção ao cinema São Luiz. Estava sozinha e sorria, com um batom vermelho que lhe tomava toda a boca. Do outro lado da rua, uma figura conhecida a recebeu e tomou no braço. Era Betinho. Um poeta marginal com quem eu já havia bebido duas ou três vezes. Andei, por curiosidade, em direção aos dois, mas não os cumprimentei.
Entraram no cinema e eu fiquei do lado de fora, um pouco embasbacado. Eu nunca fui um cara de ser levado pelos instintos. Sempre fui muito racional. Mas muita gente devia me ver simplesmente como um mocorongo. Alguém que não agia na vida. Pensava tanto nas possibilidades que elas simplesmente passavam por mim antes que eu pudesse fazer alguma coisa. Pois bem. Eu sentia que algo importante havia passado diante dos meus olhos e novamente não fiz nada. Aquilo tudo me soava terrivelmente estranho. Voltei para casa com um embrulho no estômago. Subi as escadas e corri para o banheiro. Tentei vomitar, mas nada me veio. O enjoo persistiu por um tempo e quando fui me sentir melhor já passava da meia noite. Contra o que me dizia a razão, eu abri uma garrafa de uísque, acendi um cigarro e me pus a pintar aquela mulher de vermelho, como a tinha visto pela primeira vez. Gastei a noite toda e ainda metade do sábado na empreitada. Quando terminei estava bêbado, exausto e acredito que estivesse também apaixonado por aquela criatura que eu sequer conhecia.
...
Nunca fui de acreditar em destino ou em providência.
Mas uma semana depois, Betinho bateu a minha porta, bêbado e animado. Era uma noite de sábado, em plena semana santa. Carregava uma garrafa de vinho barato.
- Vamos profanar a páscoa, meu velho. Falou, com uma voz que denunciava que aquela não era a primeira garrafa que havia tomado.
Apontei o sofá, para que ele se sentasse e acendi um cigarro.
- Porra, Betinho, eu ‘tô de ressaca.
- Nada melhor do que beber mais para curar isso.
- Ok. Espera eu tomar um banho.
Me levantei e fui ao banheiro. Quando estava debaixo do chuveiro ouvi a voz engrolada de Betinho na sala.
- Porra, isso é Vera, não é? Nesse quadro aqui na mesa?
Acho que ele falou outras coisas que não consegui entender. Mas depois de alguns minutos, já vestido, voltei à sala e peguei-o encarando o quadro.
-Não conheço a pessoa. Foi uma mulher que vi na rua semana passada. Ela estava com você... Indo ao cinema.
- Ah. Era ela mesmo. Porra. Um mulherão, meu velho. Mas não é das que se apegam.
- Imagino. - Falei, tentando mudar de assunto.
- Ela ia ficar louca por esse quadro.
- Não está completo. Acho que nunca vai ficar. Faltam muitos detalhes. Principalmente do rosto.
- Vou te apresentar então. Só não deixa ela bagunçar tua cabeça. Ela é profissional nisso.
- Tanto faz. Vamos beber ou não? – falei já me dirigindo para a porta.
Saímos os dois, pelas ruas, até o baixo meretrício... Onde Betinho se sentia mais em casa do que no seu próprio lar. Já eu, sentia que estava desperdiçando meu tempo. Por mais que eu tivesse todo o tempo do mundo disponível e nada que valesse à pena investi-lo.
...
Não foi naquela noite que encontrei Vera. Nem na semana seguinte. Ou mesmo no mês seguinte. Algo acontecia, pois onde eu estava, ela nunca aparecia. Ouvia falar dela pelas bocas dos outros, mas nunca mais a vi. O quadro permanecia incompleto. Uma figura em vermelho, sem rosto definido... Com as feições perdidas em algum lugar que eu não sabia onde era. Isso tudo me incomodava. O quadro incompleto era uma ferida que não sarava. Um lembrete constante de que minha vida também era incompleta. Tinha noites, que contemplava a tela e fumava um maço inteiro de cigarros, até ficar enjoado e dormir no tapete da sala. Eu estava me tornando doente. Obcecado, talvez. Mas não achava justo que eu lhe desse qualquer rosto só para o retrato ficar completo.
Precisava ser o dela.
Ou eu fazia aquilo ou ia terminar louco.
Passei a vagar pelos bares em busca dela. Mas parecia que sua figura me fugia.
Não queria pedir a ninguém que facilitasse o encontro. Eu queria que fosse ao acaso, como da primeira vez. Talvez aquilo já fosse o começo de uma loucura e eu não tinha percebido. Mas quantos loucos sabem que são loucos?
...
Vera me encontrou quando eu vagava pelas ruas do Recife Antigo depois de sair de um prostíbulo com alguns amigos escritores.
Ela me parou, quando passávamos por frente da Sinagoga em direção a Praça do Arsenal. Postou-se do meu lado e sorriu como se já me conhecesse.
- Você pinta quadros sobre pessoas desconhecidas, não é?
- Pinto – respondi – Mas como você sabe disso? Acaso é vidente ou cigana?
- Sou e não sou. Na verdade fui, em outra vida. Mas você não tem cara de que acredita nisso.
- Acredito, e não acredito. Mas no fim, tanto faz.
- Betinho me disse que você pintou um quadro me retratando.
- Tentei. Mas está incompleto.
- Por quê? O que falta?
- O rosto. Vi você de relance. Não pude fixar bem os seus traços. Por isso o quadro está largado em algum lugar da minha casa... Mas acho que se não bebi demais para me lembrar disso, vou poder finaliza-lo amanhã.
- Quero muito ver o resultado final. - Dizendo isso, ela tirou um papel de sua bolsa e escreveu um número de telefone. – Me liga quando terminar.
Me deu um beijo no rosto, que quase foi nos lábios e seguiu então com seu passo rápido na direção oposta a que eu ia. Meus amigos riram e gritaram coisas que homens gritam quando estão embriagados de juventude e de álcool. Eu tive vontade de voltar para casa naquele momento e terminar o quadro. Mas me retive com meus amigos e bebi até o dia amanhecer. Acordei num banco de praça com os olhos feridos pelo sol.
Me achei sortudo por conseguir lembrar do rosto de Vera.
Hoje, acho que teria sido melhor se tivesse esquecido e voltado para minha vida incompleta, como o quadro até aquele momento.
...
A mulher no quadro me encarava. Eu tinha certeza disso. Os olhos castanhos pareciam querer penetrar minha alma e desvelar segredos que nem sequer eu sabia que tinha.
Era assustador. Quase não acreditava que tinha sido eu que tinha pintado aquilo.
O quadro era de alguma forma mais real do que a própria musa. Pelo menos essa era a sensação que me passava. Depois de finalizado, o mantive guardado dentro de um armário e coberto com um pano por umas tantas semanas. De vez em quando abria tudo só para olhar o resultado e tentar entender o motivo pelo qual ele me perturbava tanto. Encontrei com Vera várias vezes nesse período. Quando ela me perguntava sobre o quadro eu sempre mentia, dizendo que ainda estava trabalhando nele. Ou que não tinha tempo para terminá-lo. Mas algo em mim sabia que ela sentia a mentira. No entanto ela sorria, concordava e mudava de assunto, como se não soubesse de nada. Tive a impressão de que ela conseguia me ver através do quadro e aquilo tudo não passava de uma diversão pra ela.
...
Chovia copiosamente. Acho que era o Junho mais chuvoso que eu tinha presenciado em toda minha vida. Naquele dia de São João, tenho certeza que a maior parte das fogueiras nem tinha sido acesa devido à quantidade de água que caía do céu. São Pedro devia estar com muito ciúme para implicar daquele jeito com o seu colega santo.
Betinho chegou a minha casa, estranhamente sóbrio e completamente ensopado.
- Meu velho. Preciso de um lugar para dormir por uns dois dias. - Disse, enquanto pingava na soleira da minha porta.
- O que você fez dessa vez, Betinho? Comeu quem não devia de novo?
- Foi, cara. Eu dormi com a filha de um sargento da polícia militar. O cara quer ver minha caveira. A filha não tem nem 18 anos. Acho que dessa vez eu vou pra a cova.
- Não Betinho. Você vai ter que casar. E vai finalmente ter que arrumar um emprego de verdade.
- Deus me proteja! Eu não nasci pra ser um engravatado e ficar atrás de um balcão como você faz. Vou fugir, meu velho. Vou pra um garimpo no norte. Comer umas tantas putas com cara de índia e fazer grana. Quando eu tiver montado no dinheiro eu volto
- Você que sabe. Pode ficar no sofá até segunda feira. Depois, se vira. Não quero polícia atrás de mim.
- Valeu, meu velho. Não sei como te agradecer.
- Não precisa. Vou te trazer uma toalha e umas roupas secas. Te enxuga e fica ai pela sala. Vou esquentar um vinho pra você beber.
Betinho ficou calado, tremendo, e quando eu entreguei a toalha e as roupas ele se enxugou e trocou de roupa no banheiro. Trouxe vinho quente e bebemos os dois, conversando sobre coisas do dia a dia e sobre como ele pretendia ficar rico garimpando ouro. Ouvi tudo que ele planejava e ri internamente da ingenuidade do meu amigo. Mas resolvi não falar sobre as doenças e as péssimas condições de vida que enfrentavam as pessoas que viviam dessas atividades. Ele tinha uma visão romântica da coisa. Quase como se ele fosse um desbravador português chegando ao Brasil no século XIV. Quem era eu para roubar-lhe os sonhos?
...
Acordei com fogos de São João na madrugada. A chuva tinha dado uma trégua e o povo foi a rua pra tentar festejar um pouco antes que amanhecesse.
Fui na sala para ver como estava minha visita e dei de cara com Betinho olhando para o quadro de Vera. Tinha posto a coisa fora do armário e estava encarando a tela como se fosse um apreciador de arte profissional.
Percebendo que eu me aproximava ele me disse.
- Porra, cara. Isso ficou muito bom. Parece realmente com ela. Tem esse ar de Cigana... de Pomba Gira... Não sei... Perturbadora e sedutora ao mesmo tempo.
- Eu acho que só ficou perturbador mesmo. Tenho vontade de jogar no lixo de vez em quando.
- Você já mostrou a Vera?
- Não.
- Por que, meu velho? Capaz dela cair na sua cama depois de ver isso.
- Não fiz o quadro para isso, Betinho.
- Eu sei. Eu sei... Sou eu que só penso nessas coisas. Mas acho que você deveria mostrar a ela. Ou então dar-lhe de presente. Já que o quadro te incomoda.
- Vou pensar nisso, meu amigo. Mas me faz um favor. Nesse meio tempo, guarda de novo ele no armário. Falei, sem conseguir disfarçar meu mau humor.
Betinho obedeceu calado e se sentou na janela. Peguei uma garrafa de uísque em minha estante, enchi dois copos e ofereci um a ele.
Bebemos o restante da madrugada. Dessa vez, sem falar muita coisa...
...
Passei o sábado inteiro tirando a poeira dos meus móveis. Fiz o serviço meticulosamente, como nunca tinha feito na minha vida. Nunca fui de dar atenção à organização e limpeza das minhas coisas. Pagava uma faxineira duas vezes no mês para que pusesse em ordem a casa e me dava por satisfeito. No entanto, naquela noite, quando olhei para a minha estante e vi pó acumulado, senti-me quase ferido. Como se um cisco tivesse caído nos meus olhos e se aninhado no meu cérebro. Pus-me limpar cada um dos meus objetos e logo estava lavando o chão da sala e da cozinha. Ao fim do serviço, caí exausto no tapete e minha mente quase apagou diante do cansaço. Passei um tempo olhando fixamente para o armário onde tinha guardado o quadro. Eu queria vê-la. Queria encontrar Vera, olhar no fundo de seus olhos castanhos de diaba e verbalizar todo o desejo que sentia. Eu era um homem de palavras antes de ações. Então primeiro eu precisava falar do meu desejo, para somente depois tentar saciá-lo.
Me levantei abruptamente e fui ao telefone. Disquei o número que eu já havia decorado de tanto olhar o bilhete que ela tinha me dado. Não demorou muito e uma voz sonolenta atendeu o telefone.
- Alô. Quem é?
Fiquei calado e ela insistiu.
- Quem é?
Só então falei, quase gaguejando.
- Terminei o seu quadro. Acho que você deveria vê-lo.
Rapidamente ela intuiu quem era, e respondeu.
- Me diz onde você mora. Passo aí ainda hoje.
Eu disse o endereço e ela desligou.
A forma quase mecânica com que ela falou me deixou incomodado.
Fiquei pensando se ela realmente estava interessada em me ver, ou se só queria saber do quadro. Tentei permanecer calmo. Mas sendo eu quem eu era, fui tomado pela ansiedade e novamente abri uma carteira de cigarros. Eu estava sendo tomado por aquele vício. Me perguntava o que estava tentando preencher com tanta fumaça e nicotina na minha vida. Enquanto eu não descobria, meus pulmões iam levando a pior.
...
Vera se sentou no sofá e esperou calmamente enquanto eu abria o armário e desembalava o quadro. A verdade é que ela não parecia estar nem um pouco ansiosa para ver o resultado. Talvez ela soubesse fingir muito bem. Talvez eu simplesmente não conseguisse perceber, tal a minha própria ansiedade.
Montei o quadro sobre um suporte que usava para pintar minhas telas e acendi todas as luzes do ambiente para que ela pudesse ver tudo com mais detalhes.
Vera ficou calada por bastante tempo, mas depois abriu um sorriso.
Caminhou até a tela e passou os dedos pelas feições do próprio rosto desenhado e então os repousou em seus lábios.
- É estranho olhar para mim mesma nesse quadro.
- Também acho. Espero que eu não a tenha ofendido.
- Pelo contrário. Esse foi o maior elogio que eu recebi na minha vida... Você me daria o quadro?
- É seu, Vera. Pode levá-lo quando quiser.
Vera então se afastou do quadro e me deu um abraço longo, seguido de um beijo no rosto.
- Vou fazer uma festa na minha casa só para mostrar aos meus amigos. Você já está convidado.
- Obrigado, Vera. Só não sei se o quadro merece isso tudo.
- Deixe de falsa modéstia. Esse tipo de coisa não combina com você. Uma vez na vida você devia se deixar receber o crédito por algo bom que fez.
Aquilo impactou em mim. Não me lembrava de ter feito algo digno de elogios na minha vida. Talvez os meus quadros. Mas poucas pessoas os viam e essa nunca tinha sido minha intenção.
Fiquei sem graça, confesso... Vera percebeu e aproximou o rosto do meu ouvido.
- Tem algo que você queira me dizer, artista?
Mas eu não sabia o que dizer. Por mais que eu quisesse falar que a desejava. Que queria beijar-lhe a boca e os seios, e deixar que ela entrasse e bagunçasse completamente a minha vida, nada saiu dos meus lábios. Nada além de algumas palavras desconexas.
Vera parecia saber de tudo aquilo e se divertia com minhas reações.
Me pegando pela mão, ela me levou ao meu próprio quarto. Desabotoou a camisa que usava e expôs os seios.
- Venha. Não gosto de tirar minha própria roupa.
Só lembro de flashes do que se seguiu. Tudo aconteceu aceleradamente, e quando me dei conta, Vera estava com a cabeça recostada em meu peito, com um cigarro aceso e a respiração ofegante. Era completamente diferente do que eu já tinha experimentado com outras mulheres. Foi como se eu tivesse provado pela primeira vez alguma droga e então já soubesse que estava viciado.
Eu sempre desconfiei que a paixão fosse um tipo de loucura, que de tão frequente, as pessoas passaram a fingir que era algo saudável. Naquele momento eu tive certeza.
Eu estava louco por Vera. E a insanidade era imensamente mais doce e saborosa do que a vida sã que eu vivia antes.
...
Eu e Vera dormíamos juntos duas vezes por semana em média. Ela passou a frequentar minha casa e nos encontrávamos nos fins de semana com frequência. Mas não era nada certo. Nada sério. E nunca falávamos sobre isso.
Ela chegava à minha casa sem dizer nada. Bebíamos, transávamos e adormecíamos juntos. Era agradável. Era algo que eu achava que poderia ser perene na minha vida.
Mas como todos me diziam, Vera não era do tipo que se deixava ficar. Conscientemente eu ignorava isso... e estava feliz.
Ela era diferente de todas as mulheres que eu tinha me relacionado. Principalmente por sua independência. Ela não precisava de mim para nada. Isso me assustava, mas também me atraia. Meus parentes me julgariam, com certeza, se soubessem que eu estava dividindo a cama com uma mulher como ela, mas eu mantinha distância da minha família há anos, justamente por causa da hipocrisia e dos julgamentos que eles tanto gostavam de fazer uns sobre os outros. Eu era um estranho. Uma ovelha negra, talvez. Por mais que querendo ou não, minha vida se encaixasse nos padrões do ‘normal’ estabelecidos por eles. Eu era bacharel em direito, formado na Faculdade de Direito do Recife ainda jovem e já trabalhava numa repartição pública. Minha misantropia os incomodava além do fato de eu ser solteiro. O que era motivo de piada de muitos. Eu só desejava que engasgassem com o próprio veneno e me deixassem em paz.
Vera era minha vingança. Com ela eu vivia aventuras reprováveis toda semana. Com ela eu era algo que nunca tinha sido na minha vida.
Eu era livre.
O problema, que só hoje percebo, é que não estava preparado para toda aquela mudança.
Comecei a ficar mais negligente com questões do meu trabalho. Bebia demais, fumava demais e dormia de menos. Por seis meses vivi com intensidade tudo o que o Recife tinha para oferecer em matéria de boemia.
Secretamente, eu pensava em uma forma de tornar isso permanente. Mas sabia que se abordasse esse assunto, Vera sairia pela minha porta e nunca mais retornaria.
Sabendo disso, me mantive quieto e resolvi aproveitar até onde pudesse o mundo que aquela mulher tinha a me oferecer.
...
Faltavam poucos dias para o carnaval. Recife já transpirava em ansiedade pela festa.
Era só o que se falava nas ruas. Pessoas comprando fantasias e se preparando para os bailes e para os blocos de rua, tanto em Recife quanto em Olinda.
Mas minha ansiedade era por outro motivo. Vera não aparecia há dias. Seu telefone estava mudo. Mantive a calma inicialmente. No entanto, depois de uma semana, comecei a perguntar dela. Ninguém sabia de nada.
Parte de mim já esperava isso. Um dia ela ia desaparecer e me deixar pra seguir minha vida sozinho. Só que eu não estava preparado.
Os dias foram se arrastando e me consumindo, quando em uma manhã, enquanto eu me arrumava para ir ao trabalho, Vera apareceu.
Bateu na porta e entrou em casa sem dizer nada. Sentou-se no sofá e falou.
- Me desculpe.
Puxei uma cadeira e me sentei de frente a ela.
- O que aconteceu, Vera? Você não parece bem.
- Olha, eu não preciso que você se preocupe comigo. Só vim pra dizer que eu estou bem.
- Eu me preocupo com você. Goste disso ou não. E isso não vai mudar.
- Pois devia.
- Vera. Eu sei que você não é do tipo de mulher que dá satisfações, mas sinceramente eu gostaria muito de uma agora.
- Olha. Não quero nenhum homem na minha vida me cobrando nada. Eu sou livre. Gosto muito de estar com você, mas isso não faz de mim sua propriedade.
- Eu nunca disse isso. Nunca esperei isso. Mas considerando que nós vivemos nos últimos tempos, eu achei que merecia um aviso se você fosse desaparecer por um tempo, ou uma explicação pelo menos. Mas isso fica a cargo da sua consciência.
- Não faça drama. Eu estou viva, não estou?
- Tudo bem.
- Eu sei que você não merecia isso. Mas eu vou dizer logo. O que nós temos está acabado. Estou aqui apenas por consideração a você.
As palavras dela quase me levaram ao chão. Mas tentei fingir que não tinham causado impacto em mim.
- Acho que isso já era esperado, Vera. Está tudo certo.
- Eu sei que você quer um motivo. E eu vou te dar.
- Estou esperando.
- Eu descobri que estou grávida. Dois meses agora. Grávida de você.
Desta vez não consegui fingir mais nada. O meu mundo girou. Levantei-me da cadeira e fui ate a janela. Depois retornei e sentei ao seu lado.
- Vera. Eu não imaginava isso.
- Você não precisa se preocupar. Eu já vou resolver.
- Resolver como?
- Vou fazer um aborto.
- Como??? – falei sem conseguir disfarçar a surpresa e revolta -
- Já comprei os remédios.
- Não Vera. Você não vai abortar um filho meu.
- Este filho não é seu, seu idiota. É só um feto. E eu não vou tê-lo.
- Mas eu tenho direito. Ora. Fizemos juntos. Podemos casar e criá-lo.
- Você não tem direito algum. O corpo é meu. A vida é minha. Eu não vou ter um filho. Não vamos casar. Você não vai colocar uma aliança no meu dedo, me marcando como se eu fosse sua posse. Eu sou livre.
- Não é assim, Vera. Estou pensando na criança.
- Não existe criança. Nem vai existir.
Me levantei, tomado de raiva. Me sentia impotente. Não existia sequer possibilidade de diálogo. Ela iria fazer o que queria e eu tinha que me conformar. Não parecia justo.
Vera sempre disse que nunca se encaixaria nos padrões de uma família tradicional. Ela nunca baixou a cabeça para homem nenhum. Não seria eu que mudaria isso. Também não parecia disposta a ter o filho. Mesmo que não fôssemos casados.
Eu era um coadjuvante naquela história.
- Vera. Podemos achar uma solução... – disse tentando um último diálogo.
- Já está tudo solucionado. Me desculpe se eu causei essa bagunça na sua vida. Você é um homem realmente doce e merece algo melhor. A maternidade não é para mim.
Dizendo isso, Vera levantou-se e saiu pela porta sem nem olhar para trás.
Eu fiquei sentado no sofá, olhando para os padrões de cores do meu tapete... Perdido nas curvas e texturas, sem poder processar tudo aquilo que eu tinha ouvido.
...
Os dias que se seguiram foram terríveis para mim. Fui atormentado por pesadelos que se repetiam e impediam que eu dormisse. Neles, Vera morria no aborto e eu via o corpo da criança em seu colo. Ambos cheios de sangue.
Tentei lidar com a situação sozinho, afinal, não tinha ninguém que pudesse conversar sobre o assunto.
Não ousei procurar Vera. Ela já tinha tomado a decisão dela. Nada que eu fizesse poderia mudá-la. Apesar de tudo eu sabia que tinha feito minha parte em tentar dissuadi-la do aborto. Mas se ela não queria ser mãe, eu poderia obrigá-la?
Tudo aquilo ia me destruindo aos poucos. Comecei a beber mais e mais. Pedi férias do meu trabalho e planejei uma viagem. Passaria um mês em um hotel numa praia do sul da Bahia. Longe de tudo. Talvez assim eu pudesse esquecer, ou pelo menos aceitar a decisão de Vera.
Antes que eu pudesse concretizar meus planos da viagem, Betinho apareceu na porta da minha casa. Esguio e visivelmente doente. Retornava de sua aventura no garimpo precocemente.
- Meu velho. Estou de volta. Me disse, com uma voz rouca, de quem tossiu demais.
- Parece que você foi atropelado por um ônibus lotado, Betinho. O que te aconteceu?
- Peguei malária. Voltei pra me tratar aqui.
Deixei que entrasse e Betinho logo se sentou no sofá.
- Soube que você e Vera se separaram.
- É verdade.
- Durou até demais, cara. Vera nunca foi de ficar com ninguém por muito tempo.
- O problema não é esse.
- Então qual é?
- Ela está grávida. E o filho é meu. Mas vai abortar.
- Porra! Mas talvez seja melhor assim. Você é muito novo pra ser pai.
- É meu filho, Betinho!
- Eu sei, eu sei. Mas tente ficar calmo.
- Estou tentando.
- Veja... tem algo que talvez te anime.
- O que, Betinho?
- Consegui achar algum ouro no garimpo. Quero abrir um negócio, meu velho.
- Que negócio? Você não tem cara de empresário.
- Verdade. Mas o tipo de negócio que eu quero abrir é minha cara.
- Só se for um prostíbulo. – falei, com um riso amarelo.
- Na verdade é quase isso. Quero abrir uma casa de jogos.
- Mas isso é ilegal, Betinho. Você pode ser preso.
- Eu sei. Por isso quero sua assistência. Você é advogado. Sabe das coisas.
- Não, não.. não posso te ajudar nisso.
- O que você tem a perder, meu velho? Você tá nesse emprego de merda. Vivendo essa vida que você mesmo diz que é quase uma morte. Finalmente faça alguma loucura. E uma loucura que pode te deixar rico.
Fiquei calado, pensando nas palavras de Betinho. Eu estava realmente cansado da minha vida. Não queria voltar para a rotina que me matava um pouco mais a cada dia. Fazer algo novo talvez fosse uma forma de recomeçar. Talvez assim eu pudesse impressionar Vera.
Dar a ela uma vida que não fosse maçante como a minha era.
- Você tem razão. Me fala sobre os detalhes. Vou ver no que posso te ajudar. Falei, enquanto acendia um cigarro.
Betinho sorriu e abriu um caderninho de anotações onde tinha começado a escrever seus planos...
E foi assim, que eu saí de dentro da lei e entrei no mundo das mesas ilegais de poker.
...
Chico Buarque corria solto no aparelho de som na festa de inauguração do Cassino Estrela Vermelha, que foi o nome que eu e Betinho demos ao nosso empreendimento.
Não era uma inauguração oficial, mas muitos de nossos amigos tinham sido convidados e parecia que o ambiente estava aberto para negócios. Várias mesas de dados, roletas e poker estavam formadas. Tínhamos subornado alguns policiais para fazer vista grossa ao negócio. Mas isso provavelmente não seria suficiente. Logo talvez alguns políticos se interessassem pelo nosso ramo, e mais dinheiro ia ter que ser direcionado para que não tivéssemos problemas.
Pela empolgação dos presentes, parecia que isso não seria problema.
Eu estava bem à vontade ajudando Betinho naquela empreitada. Apesar de ter entrado com algum dinheiro no negócio e oficialmente eu não ter nenhuma relação com a casa, ficou acertado que eu receberia um terço dos lucros mensais. Só que isso era o que menos me interessava. Finalmente eu estava me sentindo empolgado com algo na minha vida. Esse era meu principal salário.
Contratamos seguranças, garçons, cozinheiros, baristas e ‘dealers’ para as mesas de jogos. Oficialmente o Estrela Vermelha era um bar e casa de shows. Tinha tudo para dar certo mesmo. Betinho conseguiu alugar um imóvel atrás do Cinema Veneza, no bairro da Boa Vista. Tinha sido o local de um bingo que faliu. Por isso, não foi necessária nenhuma reforma do ambiente.
Me sentei num camarote que ficava acima do ambiente principal. De lá observei todo o movimento e não pude deixar de perceber Vera, cercada por amigos e bebendo uma dose de Martini. Não parecia feliz. Não tinha a desenvoltura e a malícia no olhar que eu tinha me acostumado a ver nela. Ela não falava comigo mais do que o necessário. Era como se eu tivesse deixado de ser uma pessoa de relevância em sua vida. Eu era quase um desconhecido. Tentei fingir que aquilo não impactava nada em mim. Estava me esforçando para isso. Não mencionava Vera para ninguém. Nem para Betinho.
Não a procurei. Não a questionei sobre nada relativo ao aborto. Não dirigi nenhuma critica sobre o fato. Afinal, ela não precisava de recriminações e de julgamento alheio.
Eu só não esperava que ela fosse fingir que nada tinha acontecido e que fosse me tratar daquela forma glacial.
Tudo aquilo não era fácil de engolir. Foi-me necessário muito vinho e uísque para que eu pudesse começar a me acostumar.
No auge da minha revolta, pensei que eu não merecia todo aquele tratamento. Mas então, parei e refleti. Quando foi que eu levei em consideração o que Vera estava passando?
Tudo era mais difícil para uma mulher. Todos os julgamentos lhes eram reservados e frequentemente coisas piores do que isso.
Resolvi que eu devia deixá-la lidar com tudo da forma que achasse melhor.
Se um dia quisesse me procurar e conversar, eu estaria lá.
O que eu mais desejava era que ela viesse.
...
Dinheiro corria solto no cassino. Betinho passara de boêmio marginal a empresário proeminente.
Dois vereadores e um deputado estadual frequentavam a nossa casa. Em seis meses o nome Estrela Vermelha corria de boca em boca entre a boemia recifense. Só não saiu nos jornais por não se tratar de um negócio estritamente legal. Nossos contatos entre os publicitários da cidade evitaram as menções tanto na televisão quanto em papel.
Era um negócio promissor, mas minha empolgação diminuía com o passar dos dias.
Vera tinha um novo namorado. Pelo o que eu ouvira falar, era um escritor semi-famoso. Betinho a tinha contratado como cantora e ela fazia alguns shows semanais num pequeno palco dentro do cassino, tornando-a presença cativa no local
Eu evitava assisti-la. Eu evitava Vera em todos os momentos que me era possível.
Secretamente eu me deixava mergulhar num clima de melancolia e passava noites retratando Vera em quadros que não mostrava a ninguém. Eram tantos que eu já não tinha mais onde os guardar. Até que Betinho pediu que eu os expusesse no Estrela Vermelha.
Uma vez por mês ele dedicava o local a recitais de poetas locais e a exibições de conjuntos musicais da cidade.
Levei todos os quadros que eu tinha. Inclusive alguns que retratavam Vera. Por pura provocação, confesso. Eu sabia que ela ira vê-los e algo em mim queria saber qual seria o impacto que lhe causaria.
No dia da exposição, eu me posicionei novamente no camarote, estranhamente aliviado. Como se expor todos os meus quadros tivesse me ajudado a botar pra fora toda a emoção e frustração que eu nunca tinha tido coragem de verbalizar para Vera.
Eu estava realmente me divertindo, conversando com dois convidados de Betinho. Tinha recebido alguns elogios pelo meu trabalho e me sentia realmente satisfeito com aquilo. Vera iria tocar pouco antes da meia noite, e ainda não havia chegado. Algumas pessoas observavam os quadros e se reconheciam, ou reconheciam os locais de pano de fundo.
Eu e os dois convidados de Betinho já havíamos tomado meia garrafa de um bom uísque, quando eu percebi Vera e o seu namorado no ambiente.
Ela parecia congelada, olhando os quadros expostos. Pelo menos metade deles a retratavam.
Ela ia de um em um, olhava os detalhes e então passava pra o seguinte.
O seu acompanhante não parecia muito interessado e a deixou para se sentar numa mesa de jogo. Continuei a observa-la de longe.
Parecia que eu a havia atingido. Talvez ela não estivesse tão perdida quanto eu achava.
Desci as escadas e fui em sua direção.
Me postei ao seu lado e disse.
- Não são tão bons quanto o primeiro... Eu sei.
Ela se surpreendeu, como se tivesse sido trazida de outra dimensão.
- São ótimos. Todos.
- Obrigado.
- Por que você faz isso?
- Isso o que?
- Mostrar que se importa comigo. Mostrar que eu fui importante para você.
- Por que você foi! Queria que eu fingisse que não?
- Seria mais fácil assim.
- Me desculpe. Esse sou eu.
- Talvez eu que tenha que pedir desculpas.
- Talvez. Mas não pense nisso agora. A noite é sua. Você tem que cantar ainda.
- Você nunca está quando eu canto.
- Não sabia que você se preocupava com isso.
- Muitas das noites eu cantei para você, seu idiota. Só queria que você tivesse visto.
- Vera. Você não parecia muito interessada em que eu visse algo. Então cansei de ser invisível.
- Me desculpa. Essa sou eu.
Rimos os dois. E então ela me abraçou.
Juro que eu não esperava aquilo. Não esperava um abraço dela, naquela situação.
Quando nossos corpos se separaram, ela estava visivelmente emocionada.
- Vou deixar você com os quadros. Preciso voltar ao trabalho. Se é que fazer sala para convidados de Betinho é algum trabalho.
Ela riu novamente. E disse, quase se engasgando com as palavras.
- Você foi importante para mim. Não pense que não.
- Você podia ter me dito isso antes.
- Se eu tivesse dito, você não me deixaria ir embora. E eu estou sempre indo. Não fico por muito tempo num lugar.
- Eu sei. Não posso te culpar por isso.
Virei de costas e voltei para o camarote. Dessa vez, quem queria chorar era eu. Mas porra. Eu tinha uma nova imagem a zelar. Por mais que aquilo fosse idiota, fingi que estava tudo ‘ok’ e voltei a beber com os convidados.
Vera desapareceu por um tempo e só retornou para cantar. Eu assisti duas músicas de seu show e voltei para casa.
Estava ficando bêbado demais para continuar fingindo.
...
Os dias se seguiam num ritmo aflitivo para mim. Dormia cada vez menos e quando dormia, era acordado por pesadelos terríveis. Eu sequer sabia o motivo pelo qual não conseguia pregar os olhos e sentia que estava espiralando em algum tipo de delírio constante que se chocava com a realidade.
Eu estava olhando fixamente para a janela da sala, enquanto o vidro era açoitado por uma pesada chuva. Podia ouvir o barulho dos trovões estalando no céu e ameaçando a fazer ruir o teto sobre minha cabeça. Eu poderia ter passado metade de uma noite naquele estado se não tivesse sido interrompido pela campainha e por batidas na porta. Me levantei letargicamente, como se tivesse sido arrancado de um sono profundo.
Vera estava atrás da porta. Ela bateu por pura educação. Ainda tinha as chaves da minha casa. Poderia ter entrado se quisesse.
Ela tinha uma sombrinha vermelha com bolinhas pretas. Como se fosse uma joaninha gigante. Achei aquilo engraçado. Talvez eu tenha transparecido isso, pois ela esboçou um sorriso antes de largar tudo que carregava no chão e me abraçar, ali mesmo na entrada. Existia algo de perturbado nela. Algo fora do lugar. Mas Vera não me disse nada. Apenas pediu para passar a noite na sala.
Eu não me sentia pronto para algum diálogo com ela, tal o seu estado emocional. Arrumei o sofá da melhor maneira que eu pude e deixei que ela deitasse.
Vera não me falou nada e eu nada perguntei. Não parecia que ela estivesse disposta a dar alguma explicação. E acho que pela primeira vez na minha vida eu não precisava de uma. Deixei Vera sozinha na sala e fui para o meu quarto. Passei o restante da noite fumando cigarros e rabiscando alguns textos em um caderno. Por algum motivo eu achei que podia ser um escritor. Como Betinho, e como o idiota com qual Vera dividia a cama. Mas sei que fracassei completamente. As palavras pareciam fugir de mim, e as que eu conseguia capturar e colocar no papel, não se encaixavam umas nas outras.
Adormeci quando os primeiros raios de sol apareciam pela janela.
Quando acordei, poucas horas depois, Vera já havia ido embora. Nenhum vestígio de sua presença, além de seu perfume, ficara no apartamento.
Fui para o trabalho pensando no que poderia ter acontecido para trazê-la daquele jeito a minha casa, depois de tanto tempo.
...
Nunca fui uma pessoa vingativa ou dada a agressão. Desde pequeno eu sempre evitei conflito, de onde quer que ele viesse. Como adolescente, nunca troquei socos ou pontapés com ninguém. Preferia correr, ou simplesmente ignorava qualquer provocação. Aquilo me fazia me sentir um pouco covarde. Mas sempre achei que não tinha em mim o que fazia de um homem um combatente, ou um guerreiro.
Eu estava sentado ao lado de um piano, assistindo a um dos músicos do Estrela Vermelha tocar. Vera estava vindo para ensaiar com ele e eu decidi assistir.
Ela chegou na casa em passos acelerados. Parecia fugir de algo. Tomou um copo de água no bar e veio para junto de onde eu estava. Me deu um sorriso amarelo e começou a arrumar seu microfone. Achei que estava tudo certo, quando ouvi um barulho de porta batendo e em seguida o parceiro de Vera veio em nossa direção. Ele a encarou e puxou pelo braço sem dizer nada. Ela se libertou e recuou para perto do piano. O músico se levantou e tentou se postar entre os dois e logo foi atingido por um soco no estômago e caiu. Eu fiquei sem ação ao ver aquilo. Mas quando ele chamou Vera de vagabunda e acertou seu rosto com um soco, algo se acendeu em mim.
Arremessei o copo de Uisque que estava em minhas mãos em direção ao parceiro de Vera. O copo atingiu-o na testa e ele cambaleou. Me encarou como se fosse me matar com as próprias mãos. Mas aí os dois seguranças que eu havia contratado para o Estrela Vermelha intervieram. Ambos eram ex Policiais Militares. Em poucos segundos o escritor estava atirado ao chão, desacordado.
Eu disse para Vera ir para casa e garanti que resolveria a situação.
Ela prontamente deixou o local.
Pedi que os dois seguranças levassem o agressor até um quarto nos fundos do cassino e os segui de perto.
Quando entrei no quartinho, ele estava amarrado e sentado em uma cadeira. Estava recobrando os sentidos aos poucos. E eu esperei até que ele percebesse o que havia acontecido. Ele balbuciou alguma coisa inaudível e minha resposta foi acertar seu rosto com um soco e logo em seguida outro e outro, até que sua face fosse uma massa de carne quase irreconhecível.
Me deixei cair no chão, impressionantemente aliviado, e percebi que meus punhos estavam também em carne viva.
O escritor ainda respirava. Eu ainda não era um assassino.
Um dos seguranças entrou no quartinho e se agachou do meu lado.
- Nós podemos resolver isso, patrão. Damos um sumiço nele e ninguém fica sabendo. Ninguém encontra o corpo. As únicas testemunhas são da casa. Ninguém vai falar nada.
Passei um tempo para organizar os pensamentos e então respondi.
- Não vou matá-lo. Quero-o vivo. Quero que ele lembre de tudo.
- Isso vai dar problema, patrão. Se ele for para a polícia, o senhor pode ficar encrencado.
- Ele vai ser livre pra fazer isso, mas vou deixar bem claro as consequências, caso ele decida fazer isso.
- O senhor quem sabe. Vou lavar a cara dele para ver se ele acorda.
O segurança trouxe água gelada e limpou o sangue da face do escritor, que pareceu ficar mais reconhecível. Acho que me enganei na minha primeira impressão. Pensei então que poderia ter batido um pouco mais nele.
- Limpem ele direitinho e o joguem nu num mangue qualquer, distante do centro.
Que ele volte pela lama, rastejando, até a rua.
O escritor pareceu recobrar os sentidos e me olhou assustado ao ouvir o que eu tinha dito.
- Você vai sair dessa vivo, seu bosta. Mas pense duas vezes antes de ir na policia denunciar qualquer coisa. Não garanto que você vá ficar vivo para ver o caso andar na justiça. E também pense duas vezes antes de agredir alguém. Principalmente se for uma mulher.
O segurança que estava comigo esboçou um sorriso sádico e ergueu o escritor da cadeira com um braço só. Eu olhei para os dois e disse enquanto saia do quartinho.
- Leva esse pedaço de merda daqui. Está incensando o cassino com o cheiro dele.
Fui andando pelo salão principal e esbarrei em Betinho, sem perceber.
- O que aconteceu com você, meu velho. Você está coberto de sangue.
- Não é sangue. É merda. Acabei de pisar em um monte dela.
Sai sem dizer mais nada.
Betinho ficou ali, tentando entender o que tinha acontecido.
...
Queria me desculpar com quem quer que esteja seguindo a linha dos acontecimentos que relatei aqui. No começo da minha narrativa eu disse que Vera havia sido a responsável pela mudança no rumo da minha vida, notavelmente para pior, e principalmente pelo fato de eu ter me tornado um criminoso. Mas ao repassar os fatos e ao recontá-los, percebo que a culpa foi inteiramente minha. Seria covardia minha em imputar-lhe a culpa pelas minhas ações mais réprobas.
Quis o destino que o tal escritor fosse filho de um promotor de justiça. E para o meu azar, ou simplesmente por uma forma de justiça divina, terminei atrás das grades.
Confessei prontamente meu crime, isentando os seguranças de qualquer responsabilidade pelo acontecido. Fui condenado por tentativa de homicídio. Não estranho para mim, a morosidade característica da justiça brasileira não se aplicou ao meu caso. Afinal tratava-se do filho de um promotor.
Aceitei meu destino sem lamúrias.
Os primeiros dias na prisão são um borrão para mim. Não consigo me lembrar de muita coisa. Quando voltei a me dar conta do que se passava ao meu redor, percebi que me encontrava em um manicômio judiciário. Pelo que entendi, minhas faculdades mentais foram perdidas na cadeia. Eu sucumbi a algum tipo de loucura, e a justiça decidiu que eu deveria cumprir o resto de minha pena num hospício.
Inicialmente cumpri pena numa instituição pública, mas depois de um tempo que eu não consigo precisar, fui transferido para clínica particular.
Tantos foram os abusos que sofri até aquele momento, que minha mente fragmentada deixou de reconhecer rostos. Familiares ou não. Não importava. Qualquer pessoa era um potencial agressor e eu reagia de acordo.
A primeira face que lembro de ter reconhecido foi a de Betinho.
eu estava amarrado em um leito num quarto sujo e com as paredes caindo aos pedaços.
Ouvi a voz do meu amigo, e então, pude discernir os detalhes do seu rosto.
Ele me olhava com um olhar triste e angustiado. Mas eu tenho certeza que naquele momento eu sorria.
Os dias que se seguiram foram mais fáceis para mim.
Na clinica particular eu voltei a ter algum conforto e finalmente recobrei a consciência de quem eu era.
Não sei quanto tempo se passou até que isso ocorresse. Eu estava perdido entre memórias partidas e pessoas sem rosto.
Algo que me feria profundamente era o fato de que Vera aparentemente não havia me procurado desde o acontecido. Betinho não me falava muito sobre o mundo exterior e sempre que eu perguntava ele mudava de assunto.
Me conformei e com o tempo, aquilo parou de doer.
Pelo menos até que um cheiro em particular me trouxe minhas memórias de volta.
Eu comecei a lembrar de tudo. Tudo o que tinha me trazido até aquele local e muito do que eu passara na prisão e no manicômio estadual.
Olhei assustado para a porta do quarto onde ficava o meu leito e vi a figura de uma enfermeira.
Ela vinha em minha direção com uma bandeja de remédios.
A medida que ela se aproximava eu comecei a reconhecer as feições de seu rosto.
Era ela. A mulher de vermelho. Só que dessa vez ela vinha de branco. Dessa vez ela não sorria. Mas trazia em seu rosto um olhar de preocupação e uma doçura que eu nunca tinha visto antes daquele momento.
Era Vera.
A enfermeira que cuidava de mim todos os dias.
Trocava minhas roupas, me dava banho, remédios e comida.
Eu sequer a tinha reconhecido. Pelo menos até ali.
Chorei por mim, por Vera e por nosso filho perdido.
Chorei balbuciando o seu nome.
Ao ouvi-lo, Vera sorriu e me abraçou.
Com a voz tremida, de quem segura o choro, ela me falou.
- Finalmente, meu querido, eu tenho você de volta.