Tempo cinza
Já havia colocado a pesada japona usada na marinha, lã pura, azul fechado. Antes de sair, esquentou o café ainda fresco que havia tomado antes de vestir roupa para o frio. Colocou na caneca de cerâmica e bebeu em pequenos goles, estava delicioso.
Saiu, desceu a escada, um só lance, pois estava no primeiro andar, abriu a porta do edifício velho, mas muito bem conservado, como todos do local. Uma rajada de vento frio açoitou-lhe o rosto.
“Diabos soltos, vento e neve fina”, pensou. Meteu as mãos nos bolsos, estava sem luvas, não gostava de usar, incomodava, tirava o tato. Colocava quando não tinha jeito mesmo, o frio era selvagem.
O relógio no poste mostrava dez e quinze, boa margem para chegar ao grande escritório da redação. Duas quadras, não seria penoso aguentar aquele maldito vento gelado no rosto. Lembrou-se de Sofia Irinova, sua pele macia e quente, seu corpo aconchegante. Estaria esperando com as instruções e a papelada, formalidades indispensáveis para o encontro com o presidente. Conseguira a entrevista, fato quase impossível, graças ao seu amigo Timothy Bancroft-Hinchey, diretor da edição em português do Pravda. Não é qualquer jornalista, por mais conhecido e importante que seja que se aproxima do todo poderoso Vladimir Putin, o mais forte político da Federação Russa. Forte e temido, havia sido o último chefe da KGB, o serviço secreto da Rússia comunista. O assunto era a compra de aviões militares, principalmente caças, e interessava ao governo tanto a venda, como a divulgação da notícia, que poderia ser dada por um ministro ou militar que trabalhasse na área, mas não. Desta feita o próprio Putin queria passar a informação, valendo-se dela para usufruir pessoalmente as vantagens do bem sucedido negócio russo com o governo brasileiro.
Sofia Irinova resplandecia beleza no seu vestido cor terra-de-siena queimada. A calefação transmitia uma intimidade naquele espaçoso escritório onde a fumaça dos cigarros era intensa. “Mas como fumam, estes russos! Fumam, bebem e comem.” Alan acendeu também um cigarro, enquanto saboreava outro café, desta vez oferecido por Sofia, cujo corpo perfeito estava modelado pela roupa justa. Guardou a papelada numa pasta pequena, que a bela jornalista russa havia lhe passado, junto com os documentos.
O almoço não poderia ter sido melhor. Batatas cozidas cobertas de creme de leite, salmão defumado guarnecido com aspargos, arroz e vinho branco. Trocaram carícias e passariam o fim de semana juntos, no apartamento dela. Havia mudado de roupa para o encontro.
Putin, como sempre, estava num elegante terno cinza claro, gravata vermelha e fala solta. Quem o imagina mudo ou reticente está enganado. Quando interessa, o homem fala pelos cotovelos. Era o caso, a notícia correria os jornais europeus e americanos. Venda de armamento sempre é manchete destacada, os concorrentes que perderam o negócio amarguram a derrota, as fábricas perdem dinheiro e prestígio.
Reunião terminada e rua novamente. Parada obrigatória para tomar um conhaque da Armênia, mais café, e outro cigarro. Quinta-feira, ele estava perto de ficar colado a Sofia, e semana seguinte, Rue du Faubourg Poissonnière uma vez mais. Paris, França. Ouviu os passos próximos, olhou para trás e não gostou do que viu. Rápido o chaveiro que era colocado num mosquetão de escalada e no rapel, tão em moda, serviu para ser usado como um soco-inglês. O golpe desferido foi na têmpora esquerda do tipo. Marginal, sem dúvida, a polícia não perderia tempo apurando quem havia feito tão bom trabalho.
Alan fizera o serviço militar nas forças especiais francesas, treinadas contra o terrorismo urbano. Sabia como se defender, e sabia também que quanto mais cedo fora da Rússia, melhor. Sofia Irinova ficava para a próxima, e no dia seguinte estava outra vez bebendo um tinto num bistrô na esquina do Boulevard Poissonnière com a Faubourg Poissonnière, perto da estação do metrô Bonne Nouvelle. Tão logo o verão carioca terminasse, voltaria para o pequeno, mas muito confortável apartamento na Rua Barão da Torre. Os dias cinzentos ficariam luminosos e coloridos.