VIDAS CRUZADAS - PARTE III

__ Ó Ernesto, me arruma algumas sacas de fubá e um pouco de feijão, que é pra aquela negrada que come feito bicho.

Ernesto, já encurvado pelo tempo, idoso, mas com o mesmo sorriso bonachão de sempre, olhou atravessado para Felipe, franziu a testa e perguntou surpreso:

__ O quê? – de forma bem demorada...

Felipe sorriu largamente do velho comerciante de hábitos simples e retrucou:

__ Ora seu velho bobo, só fiz uma brincadeira pra que se lembrasse do meu velho. Não era assim que ele falava?

__ Sim meu filho – disse em tom pensativo – parece que por um momento vi seu pai pedir a ração dos negros.

__ Longe de mim Ernesto. Eu não trato assim àquela gente. Trabalham muito, é a causa da minha riqueza.

Na verdade Felipe era bem mais generoso que o pai. Comprava feijão do melhor, arroz, algumas coisas diferentes como ele mesmo dizia. Carne tinha com fartura na fazenda, e os escravos comiam bem. Até havia alforriado alguns, que diziam querer sair pelo mundo. Claro, depois de pagarem uma quantia, não muito grande por sinal, mas pagavam.

__ Ernesto, me fala uma coisa – disse o jovem entre um gole e outro de vinho. Vosmecê conhece a Rosa, escrava lá de casa. Sei também que o senhor é homem que dá notícia de tudo nessas bandas e confesso que sei que és abolicionista.

Ao ouvir isto Ernesto assustou-se, visivelmente, mas foi contido por Felipe.

__ Oras Ernesto, todos sabem. Mas fique tranquilo, só não o sou porque tenho minha propriedade e preciso deles.

Mudando o tom:

__ Vosmecê acha que eu poderia casar com Rosa?

Ernesto agora sim saltou de susto, e surpreso, mas nem tanto, porque todos comentavam o amor dele por ela, respondeu:

__ Olha patrão – interrompeu com um silêncio profundo. Todos sabem da sua inclinação pela escrava. Mas casar... é um pouco demais o senhor não acha? Não se tem notícia de caso assim. Além do mais, o senhor não pensa que ela poderia virar contra vosmecê numa noite?

Os olhos do moço se vidraram...

__ Não Ernesto. Rosa é uma candura, um anjo que está na Terra. Incapaz seria de fazer mal a uma mosca. Tem ela os olhos mais lindos que já vi com o brilho mais fascinante que a lua no auge de sua beleza...

Ernesto ouvia esses e outros elogios que Felipe ia dizendo. Para o moço:

__ Bom, aqui estão seus produtos. Já é tarde senhor. Depois conversamos melhor.

Depois daquele primeiro contato, lá no gramado quando Manoel brincava inocentemente e Felipe ia passear na cidade, muito outros surgiram. Os dois, inclusive, chegaram a brincar juntos várias vezes. Foi ainda durante a infância que os dois se encontraram e começaram a amizade.

__ Oi, como vosmecê se chama? O que está fazendo dentro da minha casa?

__ Oi, eu sou o Manoel. Minha mãe me trouxe pra ajudá-la a limpar a casa hoje. É que sua mãe pediu para ela limpar todas as janelas e não ia dar tempo.

__ E vosmecê, se chama Felipe não é?

__Sim, e eu moro aqui.

E olhando para fora, o gramado que fica em frente à casa grande, perguntou inocentemente:

__ Vosmecê gosta de brincar? Quer ir brincar comigo?

__ Gosto, mas não posso. Minha mãe falou que eu não posso brincar fora do riacho ou perto da nossa casa – falou o pequeno escravo com voz chorosa.

__ Mas se eu levar vosmecê eu peço papai para não brigar e sua mãe não vai se importar. Vamos?

Manoel, na sua inocência saiu para brincar com o menino que lhe convidava. Havia se passado mais de um ano da morte do pai, e as crianças rolavam e se sujavam no gramado. Corriam, brincavam de esconder, de pega pega e faziam um grande barulho. Quando, pela varanda, Isabel que procurava o filho gritou:

__ Manoel! Manoel menino, vem pra cá.

__ Já vou mãe – disse o menino na sua inocência.

Mas não foi. A mãe precisou gritar ainda mais, pois também não podia pisar no gramado. Acabou chamando a atenção de todos que trabalhavam na casa e nos arredores. Luzia repreendeu Isabel, mandou buscar o menino e exigiu que nunca mais se encontrassem. Foi a última vez que Manoel pisou naquele gramado. Mas não foi o último encontro. Felipe sumia de vez em quando da vista da mãe e ia para o riacho brincar com o amiguinho. Lá eram livres. Lá não havia gritos histéricos de Luzia e a cor não fazia a menor diferença.

Numa dessas brincadeiras no riacho Felipe conheceu Rosa, que colhia flores por perto para colocar na senzala. Ela era uma menininha meiga e formosa. Felipe se aproximou perguntando sobre o porquê daquelas flores.

__ São para enfeitar nossa casa, que não tem nada bonito.

__ Deixa eu levar uma pra minha mãe. Você me dá uma?

Rosa sorriu inocentemente, ofereceu a flor a Felipe e lhe deu um beijinho no rosto. Não era maldade, não havia maldade. A mãe da menina havia lhe ensinado a fazer assim com os mais velhos que ganhavam suas flores. Era um gesto. Apenas. Mas não para o menino, cuja lembrança desse dia o acompanha em suas longas noites de insônia.

Felipe chegou a casa com a flor, mas não a entregou para a mãe. Guardou-a dentro de um livro que ganhara do pai. Ela está lá até hoje. Apesar de ainda tão inocente, aquele gesto de carinho era desconhecido do menino. Era gratuito. Sempre que Felipe fala da escrava, seus olhos ficam úmidos e ele se lembra daquele gesto de tanto tempo.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 29/02/2016
Código do texto: T5559479
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.