Relatório

A propósito, disse ele sem cerimônias, não sei o que você deseja com essa afirmação. Também, ignoro, continuou, se seus argumentos são tão inabaláveis que não haverá alguém que possa dissuadi-lo em não levar adiante suas intenções. Não quero menospreza-lo, mas, desculpe, desde que lhe conheço, e já se vão quarenta anos!, de tempos em tempos, sem que tenha algo, ao menos para nós, seus amigos, plausível, você sem mais nem menos, some e nos deixa extremamente preocupados. Você não pode, nunca poderá, dizer que é órfão de amigos. Veja, sempre há alguém a seu lado, sempre tem um de nós junto a ti e disposto a lhe ajudar, mesmo que somente para ouvir suas palavras. Considero, essa é uma opinião não compartilhada com nossos amigos, que você, sem que se perceba, sempre se lança em aventuras sobre as quais nem você conhece a que objetivo atende. Não é uma crítica, mas apenas observo que, embora não deixe de reconhecer sua independência sobre os passos que pretende dar, mas, o fato meu querido, é que, às vezes, se faz necessário participar seus amigos do que pretende seguir. Você sabe, não se deve desprezar opiniões que possam nos alertar sobre o que pretendemos fazer. Aliás, foi de você que ouvi, e desde então sigo como meu mantra, que quando nos dispomos a agir visando a um bem maior, coletivo, nesse instante perdemos nossa personalidade particular e nos tornamos agente público. Por isso, e isso eu guardo à sete chaves como meu tesouro pessoal, não devemos agir segundo nossos impulsos imediatos. Essa lição que você incutiu em mim, acredite, tem sido a medida das minhas atuações. Desde o dia em que você disse essas palavras, nunca mais me portei apenas baseado nos meus mais imediatos entendimentos. Você, talvez ignore, mas eu e nossos amigos, temos por você um carinho e respeito todo especial. Por isso não entendo como você, agora, tem se portado, em tudo, contrário ao que aprendemos contigo. Terá isso acontecido pelo avanço da idade, às vezes me pergunto, tentando assim, talvez, encontrar uma desculpa para não culpa-lo das atitudes que você tem tomado. Nos últimos tempos, você tem ficado meio taciturno, sem ter, me parece, motivação para novas lutas. Fico condoído em vê-lo dessa maneira. Lembro das nossas noites adentro, regadas à café e cigarros, em discussões que, muitas vezes nos colocavam em campos divergentes, mas nos final achávamos um ponto em comum: lutávamos por um ideal, por uma causa abrangente, por um modo de vida onde ninguém passaria fome, frio. Ninguém ficaria sem moradia. Ah, você, talvez não tenha ideia, mas como eu adorava vê-lo defender seus pontos-de-vista. Você, tomado de certo arroubo, porém, sem personalismo, esmiuçava ponto-a-ponto cada tópico, era brilhante vê-lo desmontar aqueles vermelhinhos de momento com seus argumentos rasteiros, diga-se de passagem, em nada verossímeis no que diziam. Nossa! eu vibrava ve-los se contorcerem calados, mudos, sem terem o que contrapor. Faltava neles algo que vejo em você, e muitos dos nossos amigos já se manifestaram sobre isso, a convicção, a crença, por assim dizer, nas palavras que você, tão assertivo e verdadeiro nos brindava. Mas agora me dói ve-lo assim, mudo. Fico estarrecido ve-lo entregue, sem força, sem vontade de viver, em a energia que tantas vezes me serviu de horizonte. Acredite, muitas vezes me senti vencido, mas, quando me lembrava de ti, das suas intervenções naquelas infindáveis reuniões, muitas vezes recheadas de certos oportunistas com suas avaliações de uma conjuntura que eles desconheciam, era em você que eu buscava força e razão para não desistir. Era em você que eu me espelhava para continuar. Mas agora o que vejo? Ah, meu amigo, o que posso fazer, o que posso empreender para que não se deixe abater? Vamos, vamos, pela sua cara percebo que essa conversa está lhe cansando. Percebo que não há disposição sua para me ouvir. Ok, ok, não vou insistir. Mas, antes que eu saia, me permita apenas uma última coisa, me permita lhe dizer que ontem você fez muita falta. Eles, numa manobra rasteira, derrotaram a proposta que nós defendíamos e eles também. Descobrimos, logo após a contagem dos votos, que eles, secretamente, traíram numa aliança com o pessoal da situação. Nós, com sua falta, não fomos capazes de fazer nossos companheiros entender que a proposta da situação era favorável ao patrão, que num futuro próximo, os ganhos eram momentâneos, que nossa luta não era para garantir nossa situação apenas, mas, ao contrário, era para evitar que as gerações futuras sofressem as mesmas opressões e explorações que sofremos agora. Mas, como disse, não somos capazes de faze-los entender, não tivemos a mesma argúcia que você para faze-los entender que aliança com o patronato é traição, que depender de lideranças que se pautam pela vaidade ou movidas pela visibilidade que possam ter, é entreguismo, é traição! Ok, desculpe, já vou sair. Desculpe, não devia recomeçar uma conversa que, percebo, você não está disposto a ouvir. Você está chorando!? Vem cá, me dê um abraço e vamos chorar juntos. O que há meu amigo, não pode abraçar um velho companheiro ou será que essa sua disposição, que não entendo, e de certa maneira, estranho, o impede de abraçar um velho amigo? Ei, ei, para que essa indisposição comigo, meu amigo? Sei que você, ao contrário do que nos parece, não está doente, nem, tampouco, velho o bastante para se entregar à Morte. Essa entrega, sem lutar, não condiz com a garra que sempre vi em você. Não, não eu não ia embora porque estou cansado da sua companhia, bem você sabe, que nunca, desde que nos conhecemos, me cansei da sua companhia. Aliás, meu caro, outro dia, sem mais nem menos, assim, sem que esperasse, encontrei com aquela companheira que conhecemos numa greve, lembra? Então, eu saia de um cinema, quando alguém toca no meu ombro. Não esperava alguém em especial, apenas tinha ido ao cinema assistir um documentário de um companheiro sobre uma greve que lançou, nacionalmente, uma liderança e também despertou o desejo da nossa classe trabalhadora em tomar a luta pelas próprias mãos. Enfim, como disse não esperava encontrar ninguém, mas, confesso, encontra-la despertou em mim um sentimento de que quando escolhemos o lado pelo qual decidimos lutar, por mais que nos oprimem, ainda assim vale a pena, sempre vale a pena. Lembramos de momentos inesquecíveis. Ela, ainda, sem se dar conta, começou a falar, quase um discurso, das greves e dá repressão que sofríamos. Era engraçado ver as outras pessoas nos olhando como se fôssemos seres de outro planeta. O que há, meu amigo, quer que eu pare? Quer que eu vá embora para que você possa descansar, ou prefere falar de outros assuntos? Ei, ei, não precisa se desculpar. Não precisa ficar assim. Somos amigos, lembra? Está bem você não se lembra, já faz muito tempo, ademais, ela era bem discreta, mas quando se punha a fazer trabalho de mobilização, ai, era outra. Em certo sentido até se parecia com você. Falava com tanta garra, tanta convicção que não havia quem não ficasse de boca aberta. Ela, e nisso me lembrava muito você, falava pausadamente para que todos ouvissem com clareza. E também tinha por método pegar cada ponto, cada item e depois dissecava cada um. Era um primor ouvi-la. Quem? A nossa amiga do setor quatro não atua mais no movimento. Nos chegou informes que ela se juntou com o filho do patrão e que já não respeita nossa luta. É, eu sei, essas coisas nos chateiam de tal maneira que, às vezes, dá vontade de desistir. Mas, como você me ensinou, nossa luta, por mais opressão que sofra e traição que venha, nossa luta é muito maior que eles. Disso, meu amigo, eu nunca esqueci. Quando digo que você não pode se ausentar, me desculpe retomar esse assunto, mas quando eu digo isso, não é por capricho ou pelo simples prazer de vê-lo assim, nada disso. Minha insistência de apoia nos muitos anos que te conheço, e ainda, na honestidade com que você sempre atuou. Não é capricho, é apenas, e muitos dos nossos amigos lhe admiram exatamente por isso, pela sua convicção. Ou você pensa que não sabemos que tentaram lhe comprar, que tentaram lhe cooptar com cargos e benesses das mais variadas. Sabemos que numa de nossas investidas no setor quatro, ainda nem conhecíamos aquela que se juntou com o filho do patrão, mas estava ali, toda esbaforida, falante, enfim, você, naquele dia me disse algo que me marcou profundamente, era algo quase premonitório, algo que dentre tantas outras coisas, se confirmaram não muito tempo depois. Acho que você não se lembra, mas naquele dia, dois sujeitos chamaram você de lado. Você, sem titubear, lhes falou, para que todo mundo ouvisse "estão vendo esses dois companheiros. Eles não sabem, mas quando chamam outro companheiro a pedido do patrão, eles não sabem, mas exercem a mesma tática dos antigos Senhores de Engenho. Naquele tempo, meus companheiros, eles pegavam um dos escravos e os nomeavam como capitães-do-mato. Sabem quem são esses capitães? Eram escravos, mas, nessa condição, eram eles que saíam no encalço dos escravos fugitivos. Hoje, não temos escravidão, quer dizer, não temos o ferrolho de ferro aos pés, mas o temos nos baixos salários, nas péssimas condições de trabalho. Temos esses ferrolhos invisíveis no assédio, enfim, meus companheiros, esses companheiros que me chamam de lado, sem que o saibam, estão sendo o capitão-do-mato. E como podemos vencer o capitão e o senhor do engenho? Somente com luta e resistência, somente com nossa união e forças que poderemos vence-los" Até hoje me arrepio de lembrar dessas palavras. Não me foge da lembrança suas palavras sobre aquela moça do setor quatro. Você me disse, e disso também nunca esqueço, que pessoas como aquela moça, que gesticula muito e fala sem olhar nos olhos para quem fala, esse tipo de pessoa é facilmente comprável porque não tem convicção. Que as palavras que saem da boca dessas pessoas não atingem a quem se dirige porque não trazem a essência, não trazem a verdade que tenta exprimir. Disse, ainda, que pelo jeito, aquela moça logo-logo não estaria mais no movimento. Lembro disso tão cristalino que, ainda hoje, quando tem alguém falando para os companheiros, fico observando seu olhar, seus movimentos. ok,ok, não vou recomeçar, percebo seu enfado. Percebo que lhe aborreço, embora, você sabe, não é essa minha intenção. Você sabe que minha vida aqui se deve pelos muitos anos que nos conhecemos e também, não vou negar, de que mesmo com seu silêncio, embora, isso me irrite um pouco, mesmo com seu silêncio, aprendo que o silêncio fala. Aprendo que não são só as palavras que expressam pensamentos, bem ao contrário, o silêncio tem suas próprias leis, suas regras são assimiladas com o tempo. Como você sempre disse, é preciso pedir ao tempo, tempo para o percebamos. É preciso escutar o silêncio. É preciso pisar o chão da fábrica para entender o que é ser operário. Está bem, acho que lhe cansei com essas lembranças, mas, como poderia ser diferente? Ve-lo assim, para quem o conheceu, para quem viu e ouviu suas intervenções, para quem viu a cara dos vermelhinhos de momento naquelas infindáveis reuniões, para quem presenciou vivenciou, ao lado, o dia em que você falou a história do capitão-do-mato para a companheirada, ah, meu caro, desculpe, não posso achar que sua decisão encontre apoio. Não posso crer que sua decisão tenha se dado num momento de lucidez. Na verdade, eu pessoalmente, acho que você não quer falar, mas como disse, há momentos que certas decisões precisam ser compartilhadas com os amigos. Sim, entendi, entendi, você está cansado. Que lágrimas são essas? Ok, se vais chorar, então me dê um a braço e choremos juntos.

E assim ficaram, até o sol dar sinais que mais um dia nascia.