SANTA BERNADETTE

 




 

Chovia em bicas. Chuva forte de início de março, para florar o feijão e para preparar a enchente de São José. Cirino, roceiro e produtor de gado de leite, estava no curral todo encharcado, tirando leite no meio do toró e da lama. Aquela lama roxa e grudenta que marca o Vale do São Patrício, no Mato Grosso Goiano. Quando viu lá no alto da estrada que ia dar em Diolândia um cavaleiro vindo desabalado e carregando alguma coisa na cabeça do arreio. Logo o identificou, era o Pedro Baião. Fácil de identificar, ele tinha quase dois metros e magro, devido as pernas longas nem usava os estribos, ficavam aquelas canetas descalças balançando. Quando ele chegou à porteira do curral, Cirino percebeu tratar-se de fato do Pedro Baião, mas o que trazia não era uma coisa, era sua filha Lourdes. Pedro Baião mudara-se de Diolândia para morar de agregado na fazenda do Avelino. Plantava muitas roças de arrendo e à meia em muitas fazendas da região. Milho, feijáo e arroz do gasto. Junto com seus sete filhos homens, cada um mais espigado, vermelho e ruivo que o outro. Um punhado de vara-paus vigorosos e vermelhos. Só muito depois deles é que nasceu Lourdes, fruto de uma gravidez temporã de raspa de tacho. Era o maior sonho dele, ter uma "filha mulher". E a garota era um toco de saudável, um toco esticado, também vermelho e bonito, para as medidas da época e das circunstâncias do mundo em que vivia. A quem muito e exageradamente amava, com aquele zelo de pai com jeitão de avô. A menina de sete anos até tinha ganho uma boneca de plástico quase do tamanho dela. Coisa que fazendeiros davam para suas filhas. Por ela Pedro não media esforços.
_ Cirino me ajude! É a Lurdinha! Ela tá muito mal. Passou a noite toda com febre e dando gritos de dor. Agora de manhã ela até desmaiou. Nem dá conta mais de chorar. Apertei a barriga a barriga dela e ela tá dura. Acho que é o que o povo chama de apendicite.
_ Você quer que eu a leve para Itapuranga?
_ É. Me leva no Dr. Azzi, dizem que ele é o melhor.
Cirino nem respondeu, mas deu sinal de sim com o seu comportamento. Deixou o banquinho, as cordas e balde sobre um balcão de Madeira e já ia soltar o gado e os bezerros sem a ordenha da dia...
_ Cirino, precisa não! O Zé e o Joaquim estão vindo a pé para tirar o leite para você.  Você tá fazendo queijo ou creme?
Pedro Baião só tinha um cavalo para o trabalho na roça e para as emergências como aquela que experimentava naquele momento. O resto era tudo na base do pé mesmo. Como seus filhos estavam fazendo naquele momento. Cirino respondeu:
_ Creme.
_ Pois então. Eles desnatam o leite e ficam até a hora de apartar o gado.
_ Então apeia você e a menina, a gente seca ela e enrola numa roupa seca e quente.
Enquanto Vânia, a esposa de Cirino, ajeitava a criança de sete anos, Cirino lavou os pés, as mãos e a cara que estava suja de bosta de vaca. Depois vestiu uma roupa limpa. Rapidinho estavam prontos. Foram correndo até a garagem onde guardava o Jepp, que ficava mais ou menos cem metros da casa. Chegando lá Pedro Baião colocou a menina no banco dianteiro e foi abrir o colchete que dava para a estrada e para o pasto.
_ Pedro vem correndo, meus meninos fecham para a gente.
Ele veio, Cirino segurou a menina nos braços para que Pedro Baião ajeitasse seus imensos cambitos num exíguo espaço para depois colocar a menina com conforto no colo. Enquanto segurava Lourdes, Cirino percebeu que ela estava fria. Colocou o dedo na frente do nariz e percebeu que ela não respirava. Então lembrou da cara de desânimo com que Vânia entregou a menina para o Pedro. A menina já estava morta.  O apêndice tinha supurado e Lourdes morreu em decorrência de uma infecção generalizada. Talvez por causa da corrida desabalada à cavalo. Ou talvez coisa da madrugada de febre. Pedro sentou-se e estendeu os braços para pegar Lourdes. Então lembrou:
_ Ih! Espera só um pouquinho! Esqueci de desarrear e soltar o cavalo...
_ Deixa Pedro, eu falei para meus meninos soltarem ele no pastinho dos bezerros. Vamos!
Então Cirino disse:
_ Pedro...
Ele olhou nos olhos azuis de Pedro Baião que estavam cinzas de desespero. Então resolveu não desenganá-lo. Talvez nem isso. O que percebeu foi que Pedro já sabia que a menina estava morta. Mas preferia ficar no engano, talvez para fazer um último mimo para conforto de sua alma de criança sem pecados. Ou pode ser que nesse impossível do mundo pudesse ocorrer algum milagre de Deus, dos Anjos, dos Santos ou da Virgem, no intervalo de 23 quilômetros entre a roça e o hospital, que pudesse restituir àquele corpo sua tenra alma. Ou ainda um milagre do Dr. Azzi, pois Deus também age por intermédio dos médicos. Por isso era melhor nada dizer áquele pai, pois o engano parecia incutir um rastilho de vida no espírito amargurado de Pedro. Deixaria para a frieza médica o papel terrível do desengano.
_ Não é nada ...Vamos embora!
(...)
_ Cirino!
_ Pode falar Pedro!
_ Me faz mais um favor. Dá um cheque lá no Hospital Santa Mõnica para pagar o tratamento. Depois eu vendo uns porcos e te pago.
_ Quanto a isso, fique tranquilo Pedro.
Pedro nunca teve condições de pagar Cirino. E por esse motivo morria de vergonha, mas nada dizia, nem tocava no assunto. Tinha muito que esquecer ou sublimar. Cirino nem fazia conta disso, e também nunca tocou no assunto. Tem coisa que não se paga nem recebe. Pedro já estava meio conformado com a perda da filha, afinal tinha pedido que Santa Bernadette cuidasse de sua pequena Virgem.