O mundo dos sonhos

O presente conto foi escrito em outubro de 2014 e fez parte de um concurso de contos cuja temática era Filmes e Cinema. Trata-se de uma fanfiction que homenageia diversos sucessos do cinema, tais como Os Pássaros, Matrix, Advogado do Diabo, Constantine, Telma e Louise, entre outros.

*****

O solitário Ford Thunderbird 66 contemplava o vazio à sua frente, enquanto se via cercado por dezenas de viaturas. Parecia aguardar que o Mar Vermelho se abrisse, mas o que Telma e Louise queriam mesmo era uma conexão via celular. O chefe de polícia sentia-se como um predador ante um animalzinho acuado e indefeso. Para ele, era apenas questão de tempo; elas reconheceriam seu êxito e se entregariam, cedo ou tarde.

Repentinamente, uma sensação estranha o acometeu. Um forte impulso elétrico em suas veias, um borbulhar em seu estômago, que se espalhou, como se seu sangue fervesse por dentro. Sua pele e todo o aspecto de seu corpo tomavam uma nova forma, sem que os soldados vissem o que se passava…

...Agora, Smith estava no comando. Irritava o fato de ter que estar entre humanos, mas, como costumava dizer, ‘Não confie a humanos o serviço de máquinas’. Um policial, ao reconhecê-lo, e sem saber que destino fora dado a seu superior, vangloriou-se:

– Nós as pegamos.

Smith tomou a motocicleta em seu poder, e ainda respondeu, com algum desprezo:

– Não. Não pegaram.

Trinity e Switch no mundo real, na Matrix, Telma e Louise eram dedicados membros do Exército dos Doze Macacos, uma organização investigada pela Interpol, em razão do ativismo contra experiências genéticas em animais, crimidéia dos tempos modernos que a ONR, Organização das Nações Reunidas, classificara como ‘um crime contra as gerações futuras’ por considerar as pesquisas necessárias aos avanços médicos. Apesar disso, o movimento crescia rapidamente em número de adeptos.

Smith partiu velozmente rumo ao carro. Sabia que elas conseguiriam uma conexão ante a inépcia do chefe de polícia. Trinity alertou a aproximação de Smith. Switch deu partida e mergulhou no penhasco, para a surpresa dos demais. O agente as acompanhou. Era provável que a conexão já tivesse se estabelecido, mas talvez alcançasse ao menos uma delas. Ouviu-se um estrondo e os homens, perplexos, correram para ver a imagem da explosão cerca de um quilômetro abaixo de seus pés.

***

O poderoso homem observava a beautifulpeople, seus brinquedinhos caros, suas fantasias: O jovem galã preocupado em manter o penteado e seus sapatos impecáveis; o engravatado cheio de si cuspindo sua arrogância sobre o mendigo, e que sua condição era castigo de Deus; as dondocas com suas bolsas de compras, postas a imitar o estilo de vida das mulheres fúteis que viam na televisão. ‘Criatura especial de Deus’, pensou, lançando um sorriso sarcástico ao elevar a cabeça e as mãos para o céu, para, enfim, disparar, destemido:

– O século XXI é meu! Todo meu!

***

Kevin Lomax era um jovem advogado de uma cidadezinha do interior. Aspirava a vida na grande cidade, onde algum dia teria seu trabalho reconhecido. O único entrave era seu pai, Jeremiah Lomax, um agricultor que insistia no cultivo de sementes naturais em detrimento das geneticamente modificadas. Era também o pastor da igreja local, e se utilizara de seus últimos sermões para pregar contra a modernidade, referindo-se não só à tecnologia como também à revolução cultural que atraía os jovens para a cidade, como temia que ocorresse com seu filho.

Diante da igreja vazia, composta apenas dos membros mais antigos, Jeremiah pregava no altar como se duelasse mentalmente com Kevin:

– Sinal dos tempos. O homem deseja tomar o lugar de Deus, ser como Ele é, fazer o que Ele faz. Mas toda a obra de suas mãos resulta em destruição. Agora querem criar vida. O que hoje é apenas uma semente modificada, meus irmãos, amanhã resultará na modificação do próprio homem. É importante que vocês enxerguem as coisas assim, porque é justo como elas são. Duvidam? Eu lhes mostro aqui na Palavra.

Ele abriria mais uma vez a Bíblia para ler sua interpretação do livro de Gênesis, capítulo seis. Depois, discorreria sobre o livro de Enoque, apesar de apócrifo, para, ao final, estabelecer que o dilúvio se deu por conta da primeira tentativa do homem, em comunhão com Satanás, de destruir a espécie divina e originalmente criada e substitui-la por outra, transformada. Kevin estava farto de ouvir estas histórias. Discordava totalmente. Achava que seu pai devia aceitar os ‘males da modernidade’; que o fato de os bancos apenas financiarem sementes modificadas não era conspiração, mas negócio. Seu velho estava enlouquecendo, endividando-se, e insistindo que Kevin abraçasse aquela causa perdida. De nada adiantavam também suas súplicas para que ele vendesse a fazenda e o seguisse para a cidade. Mas o que realmente o irritava era a insistência, a chantagem emocional, por vezes dramática, para que ficasse. A cidade o esperava de braços abertos, como uma grande maçã pronta para ser devorada. E Kevin se sentia maduro para ir embora.

Enquanto Jeremiah pregava, recordava-se de um sonho recorrente que o deixava particularmente incomodado nos últimos dias, no qual via o pai morrer sufocado enquanto uma menininha com duas cabeças lhe oferecia uma maçã amarela:

– Coma a maçã, Kevin Lomax.

Perturbado, levantou-se e deu mais uma olhada para seu pai. Jeremiah parou a pregação enquanto o observava se dirigir à porta da igreja, para, ao final, disparar:

– Eis que eu o envio como cordeiro perante os lobos…

Kevin se deteve ante a porta. De repente, o pregador viu sombras rodeando seu filho. Kevin virou-se e fitou-o diretamente nos olhos. Havia uma grande asa negra em torno de si. Jeremiah respirou ofegante.

– Eu repreendo todo o mal. Saia já, em nome do Altíssimo.

O velho pregador se ajoelhou e começou a louvar um hino. Então, a asa abandonou Kevin e saiu pela porta, seguindo em direção às nuvens. Um silêncio absoluto se fez. Mas logo uma nuvem de pássaros negros se formou no horizonte, descendo rasante. E toda a plantação de sementes naturais foi devastada, juntamente com os encarregados de seu plantio. Os pássaros, a seguir, cercaram a igreja, numa sinfonia macabra de corvos e abutres. Os homens não conseguiam levantar suas cabeças. As aves, no entanto, não invadiram a parte principal, mesmo com as janelas abertas, já que ninguém ouviu os apelos do pregador para que as fechassem. Apenas a porta foi fechada por ele próprio, enquanto Kevin permanecia ali de pé, parado, atônito. O ataque durou poucos minutos. E elas se foram, da mesma forma como chegaram. Seguiram em direção ao norte e não mais foram vistas.

O silêncio que se seguiu foi rasgado por um grito, vindo de um dos aposentos centrais da igreja. As aves invadiram um dos gabinetes e mataram o músico que liderava a mocidade, comendo seus olhos. A seguir, sem que houvesse tempo para que a informação fosse assimilada, outro grito se fez ouvir. Todos correram em direção à porta e a abriram. O outro homem deu as notícias:

– As aves devastaram toda a plantação, atacaram as pessoas nas ruas. Apenas as plantas naturais foram atacadas. Tua fazenda, pastor… não restou nada.

Tudo girou ao redor de Jeremiah. O coração parecia não bombear mais a quantidade necessária de sangue para que seus membros o mantivessem de pé. Sentia fraqueza nas mãos e um formigamento se intensificava em seu rosto. Perdeu os sentidos e seus joelhos bateram firmemente no solo, no que foi amparado por seu filho.

– Chamem uma ambulância! Uma ambulância! – Kevin gritou.

– Meu filho, não se preocupe comigo. É chegada a hora, Kevin. Escute bem minhas palavras. Não vá para a cidade. Ouviu bem? Não vá para lá. Há muito por fazer por aqui. Ame essa vida pacata, ou você se arrependerá. As palavras que eu disse hoje foram para você, só para você, Kevin. O demônio… ele está na cidade, e te espera.

– Eu sei, pai. O demônio está na cidade. Eu sempre soube.

– O demônio…

– Eu sei, pai. Eu entendo. Agora, descanse.

– Há coisas que nunca pude te dizer, filho. – Começou a chorar – Nunca pude te dizer…

Kevin assimilava lentamente o que seu pai lhe dizia, avaliando se desejava ou não saber sobre tais coisas. Os maqueiros o levaram. Foram suas últimas palavras.

***

A capela estava quase vazia. Apenas alguns parentes de seu velho pai, além dos poucos membros remanescentes da congregação, compareceram. Kevin perdera a mãe quando nasceu, e seu irmão mais velho na guerra do Iraque. Preferiu desconsiderar as últimas palavras. Elas carregariam pesadamente sua consciência por um bom tempo. Não havia mais nada a fazer ali.

A porta da capela dava para o norte. Viu que uma mulher se aproximava, foi ao seu encontro. Kevin reparou no formato de sua boca, sobrancelhas, os óculos escuros, o chapéu negro. Pensou em uma ave de rapina quando a viu. Deu uma rápida olhadela para trás e, ao voltar, não era uma, mas duas mulheres, gêmeas idênticas e igualmente vestidas, que o aguardavam. Seus cabelos eram tão negros que o sol parecia intimidado.

– Eu sou… – Começou uma delas.

– Dorothy – Respondeu outra, para continuar – E eu sou..’.

– Alice. – Completou Dorothy.

– Senhor Kevin Lomax… - Enquanto Alice prosseguiu, Dorothy virou de costas e ficou paralisada. O jogo surreal das irmãs era desconcertante. Kevin reparou que a paisagem por trás delas parecia estática como um outdoor; inclusive, havia aves no céu voando em círculos, mas elas não se moviam. Alice mantinha a cabeça estranhamente abaixada e seus cabelos tampavam seu rosto enquanto prosseguia com a conversa. Falava num ritmo pausado e sem alterar o tom de sua voz.– …Representamos o escritório Milton & Advogados Associados.

– É o enterro de meu pai.

– Lamentamos, senhor Lomax. Entretanto, não podemos esperar. Trazemos um convite de John Milton.

– John Milton?

Nesse momento, Alice e Dorothy reversaram. Alice virou de costas e Dorothy passou a lhe falar, porém esboçando em seu rosto um sorriso desproporcional à ocasião:

– O próprio. Ele deseja que o senhor integre o quadro do escritório.

Um pouco nervoso, Kevin sorriu também. Estranhamente, aguardava o chamado, apesar da abordagem atípica. Olhou pela última vez em direção à capela. Seu pai jazia na porta, lançando-lhe um olhar de reprovação.

***

Seis meses depois…

Kevin Lomax relutou por muito tempo em aceitar o convite de Erin Brockovic, repórter investigativa, mas finalmente decidiu se encontrar com ela, certo de que teria muito mais perguntas a fazer que respostas a dar.

Aguardava sua chegada. Pôs-se a observar o relógio que recebera de Milton no dia em que chegou à companhia e que era obrigado a usar. A figura de John Milton o intrigava. O homem conhecia reis, ditadores, astros do esporte e do entretenimento. Magnatas beijavam-lhe as mãos, o prefeito da cidade de Nova Iorque lhe pedia conselhos e lhe fazia confidências. Kevin anotava mentalmente os últimos acontecimentos: a morte de seu pai, a loucura repentina de Mary Ann, o sumiço de Eddie Barzoon... Não sabia exatamente a razão, mas associava tudo, por intuição, a Milton e a sua contratação.

Uma mulher entrou pela porta, esbaforida, fechou o chapéu com o qual se protegera da chuva tímida. Olhou em volta, Kevin acenou. Não a conhecia, mas pelas descrições, só podia ser Erin, já que era uma linda mulher.

– Olá, desculpe o atraso.

– Tudo bem. Sente-se.

– Não podia ser um lugar mais discreto?

– Na verdade, receio que um lugar mais discreto chamaria mais a atenção.

Kevin observou Erin retirar um gravador de sua bolsa e o pôr sobre a mesa. Olhou em volta, temia que fossem observados. Experimentou uma sensação extracorpórea.

– O que você quer saber exatamente?

– Dos relacionamentos do Senhor Milton.

– São muitos. O que, especificamente? Poderei ajudar se for mais clara.

– Há indícios de que John Milton esteja por trás de guerras, atentados terroristas e até mesmo epidemias.

– Ora, fale sério. Você não me trouxe até aqui para falar sobre conspiração.

– Tudo bem, Kevin. Ele é um dos maiores acionistas da principal empresa que comercializa sementes geneticamente modificadas.

– Sim. E qual o problema?

– Ora! Você tem conhecimento do que ocorre nesse exato momento nos campos? E em todo o mundo? Na Índia, milhares de agricultores cometeram suicídio nos últimos três anos porque ficaram endividados. As sementes naturais sumiram do mercado e eles são obrigados a comprar as modificadas. Os bancos, que no início só concediam financiamentos a quem comprava tais sementes, agora não precisam mais fazer isso, já que só há essa possibilidade, e o que eles fizeram? Aumentaram astronomicamente os juros. Os agricultores são impedidos de reaproveitar os grãos, e a polícia genética, contratada pela empresa, acusa mesmo aqueles que não o fazem. E os tribunais sempre dão ganho de causa ao conglomerado. Isso não é só na Índia, Kevin. É em todo o lugar. Todas as terras concentradas nas mãos de uma única empresa. E isso é apenas uma das coisas que Milton tem feito.

– Isso é negócio!

– Pois há o outro lado do negócio, Kevin. Experiências feitas com humanos e animais. Mutação. Você está lá dentro, sabe de alguma coisa.

Parecia seu pai falando. Pôde até mesmo sentir sua presença. Lançou um olhar em volta. Foi quando viu as gêmeas ingressando no restaurante. As mesmas do velório de seu pai, e que acreditava ter visto entrando na Limusine de Milton certa vez. Teve um mau pressentimento. Erin estava impaciente com as evasivas.

– Tudo bem. Eu já sabia que seria um tempo perdido. Durma em paz com sua consciência, senhor Lomax, se possível.

Levantou-se e saiu do restaurante. Alice e Dorothy desapareceram. Kevin viu uma nuvem negra passar do lado de fora, seguindo na mesma direção de Erin. Correu atrás dela. Esbarrou em um grupo de mulheres com inúmeras bolsas de compras; tropeçou em um rapaz de penteado à la galã sertanejo, que polia cuidadosamente seus sapatos, e que o chamou para briga. Havia, ainda, um engravatado que humilhava um mendigo na entrada de um prédio público. Finalmente, alcançou Erin ainda na esquina.

– Erin! Erin!

Ela parou. Seu olhar estudava as intenções de Kevin.

– O que foi? É o lance da consciência? Não se preocupe, homens que vestem ternos tão impecáveis não costumam tê-la.

– Não, escute. E se eu te disser que tenho visto coisas realmente estranhas.

– Como o quê?

– Os doze macacos. O que você sabe sobre eles?

– Isso não responde as minhas perguntas, Kevin.

– Eu sei, mas você precisa me ajudar.

– Ora, Doze Macacos é o nome de um grupo de ativistas que luta contra experiências em animais. Muito barulho e pouco alcance. Nada demais.

– Pois havia um advogado na companhia chamado Eddie Barzoon. Era o segundo na sucessão. Da última vez que o vi, estava com uma equipe revirando alguns documentos à noite. Ele me impediu de entrar, mas pude ver em suas mãos uma pasta onde se lia ‘Projeto Os doze macacos´.

– Que relação pode haver entre John Milton e os ativistas?

Kevin ponderou as reclamações de Mary Ann e as admoestações de seu pai. Nunca lhes dera ouvidos. Seguiram andando pela cidade, na direção da periferia. Kevin relatou sobre o que tinham sido seus seis últimos meses, desde que começou a trabalhar no escritório: a repentina loucura de Mary Ann; os estranhos clientes do escritório; os hábitos misteriosos de Milton. Erin achou pouco conclusivo, e Kevin disse que na verdade não tinha acesso ao lado B dos negócios, e que sua atuação ainda era limitada à parte jurídica, já que não integrava cúpula.

De repente, a rua estava vazia, a noite chegou mais cedo. Era apenas uma hora da tarde. A chuva caía fina. Kevin ouviu o som de uma grande asa se bater no ar e se aproximar. Segurou Erin pelas mãos e tentou entrar em algum prédio, porém todas as portas estavam trancadas. Arrancou uma lata de lixo e a jogou em uma vidraça. Erin, assustada, perguntou o que estava acontecendo, mas Kevin não tinha tempo de lhe responder. Puxou-a para dentro enquanto uma forte ventania caía rasante, acompanhada de um manto negro. Eram as mesmas aves de rapina que haviam atacado a igreja. Vinham em sua direção, enquanto eles alcançavam o elevador. Kevin apertou o botão e a porta se abriu. Jogou Erin para dentro enquanto, desesperadamente, torciam para que a porta se fechasse. Um misto de alívio e terror os abateu quando a porta fechou. Porém, o elevador não subiu. Os bicos se batiam histericamente pelo lado de fora, causando marcas. Erin não pôde conter o nervosismo. O elevador começou a subir trazendo pequena sensação de alívio. De repente, ele parou. Agora o ataque era sobre o teto, onde um rombo crescia na proporção do desespero materializado pelos gritos de Erin. Kevin forçou a abertura da porta, mas não havia saída. A luz piscava quando os pássaros abriram o teto e uma avalanche negra furiosa desaguou, revolvendo-se em terrível fluxo. Um ataque rápido. Os pássaros partiram do mesmo modo que ingressaram. Deixaram o corpo de Erin estilhaçado. A luz se acendeu e o elevador desceu, calmamente. Parou no andar térreo, a porta se abriu.

Kevin caminhou anestesiado, ignorando o corpo ali caído. Do lado de fora, as gêmeas o aguardavam na saída, ladeando a porta. O dia estava lindo, com um sol gigante e alaranjado se pondo no meio dos prédios, como uma propaganda de refrigerantes em um outdoor.

– Ele… – começou Dorothy.

– … o aguarda. – Finalizou Alice, para depois dizer – E ele lhe dirá…

– …o que você espera ouvir... – Completou Dorothy.

– Kevin! – Finalizaram juntas. Reparou que elas comiam maçãs, e que as maçãs eram amarelas.

Seguiu andando por Nova Iorque, ignorando o ineditismo das ruas completamente vazias. De repente, ouviu o ronco violento de uma motocicleta. Uma mulher vestida de preto, com óculos escuros, parou a seu lado.

– Suba depressa

Montaram e seguiram na motocicleta. Ela parou alguns quarteirões adiante.

– Não temos muito tempo. As máquinas se aproximam, em breve estarão aqui.

Abriu as mãos e mostrou duas pílulas.

– Você toma a vermelha, e volta para sua vida normal, onde Milton te aguarda. Você toma a azul, e eu te mostro o que há por trás de tudo isso.

Optou pela pílula azul. Bebeu um gole de água da garrafa que ela retirou do baú de sua motocicleta e aguardou o efeito por algum tempo. Sentiu uma leve brisa em seu rosto, que se intensificou aos poucos.

– Agora vamos!

Montou e agarrou Trinity pela cintura. Ela pisou violentamente e acelerou o máximo que pôde. Ela pilotou em direção a um prédio de vidros escuros, atravessando-o como uma parede de plasma que ultrapassava o que estava diante de seus olhos para alcançar um deserto por detrás. Agora o vento rasgava o rosto de Trinity, e Kevin também podia senti-lo atacando sua pele. Viajavam rapidamente pelo deserto à medida que escurecia, mas a lua cheia tornava o caminho visível. Visível suficiente para perceber que havia um penhasco à frente. O resto de lucidez que sobrou na mente de Kevin lhe dizia que iriam cair ladeira abaixo, mas a adrenalina que o havia tornado refém lhe dizia: ‘E daí?’ A morte dançava no horizonte, mas ele se sentia vivo como nunca, como um elemento químico que tivesse alcançado a configuração eletrônica estável, e se tornado um gás nobre. Ou o zero absoluto. Ou o nirvana. Não sentia calor ou frio. Não tinha medo nem deixava de ter. Estava vivo. E não estava. Seus músculos ansiavam pela queda e ele a agarrava mais forte, sem, no entanto, machucá-la. O gelo fluía em suas veias e Trinity empinou a motocicleta um pouco antes de chegarem ao limite do precipício. Foi quando tiveram a visão do céu e ali puderam vislumbrar o espetáculo da poeira de estrelas que se esparramavam no ar… Um breve momento que pareceu eterno…

... Interrompido pelo golpe impiedoso da máquina rumo à profundidade do desconhecido. Tão nervoso que um terço das estrelas, assustadas, permitiram-se irresistivelmente serem arrastadas no vácuo. Kevin olhou novamente para elas e viu que as estrelas agora eram negras como a própria noite e… possuíam asas! E elas se aproximavam cada vez mais rápido. Kevin alertou a Trinity, que parecia dar o máximo para, finalmente, alcançar um túnel, que se fechou atrás de si, engolindo as aves e as destruindo. Ela seguiu em alta velocidade em uma cidade desconhecida. Kevin podia antecipar cada curva, enquanto dançava freneticamente com Trinity à sua frente, ao ritmo da máquina. Preferia que a viagem não tivesse mais fim...

... Mas ela havia acabado.

Pararam em um prédio abandonado. Subiram até a cobertura. Trinity parou em frente à porta.

– Entre, Kevin. – falou Trinity.

– Como?

– Ele o aguarda. E não temos muito tempo. – Completou Switch.

Kevin entrou. Havia um homem sentado numa poltrona. Era Morpheus, o líder dos Doze Macacos.

– E conhecereis a verdade …

– E a verdade vos libertará… - Kevin completou - Meu pai era um pregador.

– Seu pai? Não estou muito certo disto, Neo.

– Neo?

– É o seu nome no mundo real.

Neo assimilou a informação sem lhe dar muita importância.

– E qual é a verdade?

Morpheus virou-se e levantou as mãos, arrastando-as como se tudo atrás de si fosse uma tela removível. E, então, estavam em um campo, onde havia milhares de cápsulas e, dentro delas, seres misturados, animais e humanos, ligados a tubos de onde saíam seus fluídos corpóreos. Todos possuíam óculos sofisticados e suas cabeças tremiam como se reagissem a estímulos. Aproximou-se de uma das cápsulas e pôde reconhecer uma menininha de duas cabeças, com o aspecto de ave de rapina e asas negras. Eram elas: Alice e Dorothy, aparentemente olhando para o nada.

– Aqui é onde a verdadeira guerra acontece. Alguns estão acordados, mas a maioria dorme. Tentamos acordar a maioria antes que seja tarde. Aqui, no mundo real, somos escravizados. Há milhares de campos onde homens são cultivados. Mas o pior está por vir. Enquanto somos humanos, temos alguma esperança de salvação, mas eles preparam coisa muito pior. Desejam realizar mutações em nossa espécie, juntando nosso DNA ao de animais. Estes são os primeiros experimentos. Apenas um grupo de teste. A maioria dos humanos ainda é normal.

– Mas, o que os impede?

– São as regras do jogo, Neo. O anticristo precisa ser revelado para que todos aqueles que dormem sejam finalmente transformados. Aí, teremos o fim de nossa espécie.

– Anticristo?

Neo congelou ao reparar a maneira como Morpheus o olhava ao dizer essa palavra. Refletiu. Tudo se encaixava.

– Então, Milton…

– É o diabo, ou como quer que você o chame.

Tudo começou a girar ante a conclusão óbvia:

– Neo. Milton é teu pai.

Desejava fugir, mas não sabia para onde. Sentiu-se tomado de certa claustrofobia, não conseguia respirar, não queria pensar em mais nada. Sentiu o estômago revirar e sair pela boca.

– Por que eu? Por que eu?.

– Você tem uma escolha.

– Qual?

– O relógio que Milton te deu.

Neo olhou para o relógio. Morpheus prosseguiu:

- Há um anel dentro dele. Quebre-o.

Neo quebrou o relógio no chão. Havia mesmo um anel dentro dele. Tomou-o em suas mãos e se pôs a avalia-lo.

– O que tem esse anel?

– Foi feito para você, possui o teu DNA, tuas células tronco. Caso você aceitasse a proposta de Milton, você o colocaria e, então, seria eleito o presidente da ONR e aprovaria a lei dos mutantes. Mas se você o destruir, sua maldição e a história acabam, ao menos por ora. Então, daqui a dois mil anos Milton voltará e tentará novamente. E nós, os Doze Macacos, estaremos prontos para o novo combate.

***

– Corta!

A equipe se descontraiu ao som de palmas, pela conclusão do trabalho.

– Bem, pessoal, essa era a última grande sequência que precisava ser refeita e, temos apenas uma pequena cena lá no início. Alice riu demais, não é? Bem, essa vai para os extras.

– Vai ter continuação?

– Não sabemos. Por mim, faríamos um filme maior, mas infelizmente o orçamento liberado foi de apenas quatro mil palavras. Tínhamos aqui um pouco de sexo entre Kevin e as gêmeas no escritório de Milton, aquela em que o Pacino se revela o diabo e diz aquelas coisas chocantes... A propósito, o roteirista ainda está putinho?

– Ele não gostou dos cortes na cena da fuga de motocicleta.

– O diretor aqui sou eu. Isso aqui é cinema. Se quiser literatura, escreva um livro! Eu quero que ele refaça o final, em que Neo joga o anel na montanha da perdição, ok? Bom, galera, por hoje é só. Agora vamos beber.

FIM

Daniel A Vianna
Enviado por Daniel A Vianna em 26/02/2016
Reeditado em 03/12/2016
Código do texto: T5555501
Classificação de conteúdo: seguro
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