O drama de cada um
Aquele foi um dia inesquecível. A mulher estendeu uma folha a meu tio. Quando minha tia entrou na sala e viu a brancura do marido, pensou que fosse desmaiar.
- O que aconteceu? - alarmou-se.
Ele acabou de ler. Já recuperado, suspirou fundo:
- Até que enfim! Estou livre!
Fazia já alguns anos que meu tio mudara. Nós, sobrinhos e ao mesmo tempo vizinhos de porta, não sabíamos do que se tratava, percebíamos apenas que não era mais o homem brincalhão de antes. Os filhos queixavam-se de que costumava fechar-se no quarto; já não jogava bola conosco no quintal. Minha tia pedia que não o incomodássemos; obedecíamos de má vontade. Foi por acaso que descobri um dia o motivo do seu aborrecimento: ouvi uma conversa dos meus pais sobre o assunto, fiz perguntas. Contaram-me que havia desaparecido dinheiro da caixa do banco, pela qual meu tio era responsável. O ladrão não tinha sido descoberto. Mantiveram o funcionário, dando-lhe um voto de confiança. Cabia-lhe, porém, repor a quantia em falta. Era muito dinheiro. Toda a família entrou num regime de economia.
À custa de muito sacrifício, meu tio acabou conseguindo cobrir o desfalque. Seu estado psicológico, entretanto, era lamentável. Continuava macambúzio, fumava demais, sofria de problemas respiratórios. A mulher não sabia o que fazer para ajudar: o amor-próprio do marido não superava o golpe.
No fim do ano, ela sugeriu:
- E se fizéssemos uma pequena viagem?
Em um primeiro momento, meu tio desconsiderou a idéia. Gastar dinheiro? Aos poucos, lembrando-se possivelmente da mesmice das últimas férias, foi-se tornando mais receptivo. No banco, comentou o assunto com o caixa ao lado, que o entusiasmou:
- Eu dou a maior força. Tu estás precisando, homem.
Talvez tenha levado em conta a opinião do colega. Dizia nutrir admiração por aquele jovem elegante, sempre muito cordial. Quando do desaparecimento do dinheiro, o Rui se oferecera para ajudar no que estivesse ao seu alcance. Meu tio comovera-se; havia confessado que uma ponta de inveja alfinetava-o. O outro trabalhava tranqüilo, enquanto ele... Até o dia em que o caso fosse desvendado - e parece que sempre alimentava uma esperança de que isso viesse a acontecer - viveria, conforme dizia, com a má impressão de que mil dedos apontavam acusadoramente para a sua pessoa.
Ao voltar da viagem, percebia-se que estava mais calmo. Contou-me alguma coisa sobre os dias que passou na serra. Tinha feito longas caminhadas, que lhe abriram o apetite. Minha tia exultava: aquele bem-estar poderia prolongar-se além das férias, que já estavam por terminar.
No domingo seguinte, meu tio matava as saudades do Diário Popular quando soltou uma exclamação de espanto.
- O Rui!...
Atônito, completou:
- O Rui... morto! Não é possível!
Concentrou-se na notícia do suicídio. Estava chocado. O colega levava uma vida boa, ao menos aparentemente; relacionava-se bem com todos. Custava a entender.
Alguns dias depois, recebeu um telefonema. Era a viúva do Rui, precisava conversar, tratava-se de algo importante. Combinaram que ela iria vê-lo à tardinha.
A visitante apresentou-lhe uma carta. Nela, o Rui despedia-se da mulher, falava sobre seus problemas financeiros e pedia perdão a meu tio. Tinha sido ele o autor do desfalque.