A MÁGICA DO Ó
Minha tia quando resolveu enlouquecer passou a “ler” um jornal diário, de cabo a rabo. Mas não atrás de uma vã realidade. Sim com o único propósito de assinalar todas as letras “o” do periodiqueiro. Sim aquela vogal que arredonda os lábios. Não dava atenção às notícias, aos seus conteúdos, mas somente à forma da letra/símbolo. Aparecia um “o” e pronto, ela circulava. Quando vi aquilo, muito racionalista e pragmático que sou, pensei: “ainda bem que não escolheu o ‘a’”. Assinalava o infeliz noticioso desde o começo até o fim, até nos anúncios classificados. Só o título do jornal continha dois “ós”. Acontece que ela circulava tudo que era circular, qualquer círculo. Se acaso ela visse a bandeira do Brasil, ali ela via um “o” do tamanho do Brasil. Um “o” paramentado de Miss Universo. Além disso havia os zeros, todos eles entravam para o conta dos “ós”. Assim o preço do jornal, naquela ocasião, possuía três “ós”. E curiosamente ela fazia “ós” em torno dos “ós”. Não sei o que ela queria com isso, nem se ela os contabilizava ou com eles fazia alguma estatística. Talvez ela fosse uma cabalista, para quem sabe retirando os “ós” conseguisse um texto que não aquele que era explicitado pelo jornal. Pode ser que procurasse uma mensagem oculta, para no meio das palavras encontrar uma coisa subliminar. Talvez isso até melhorasse a qualidade do sofrível periódico diário. A morte estava próxima, e tudo era um mistério que talvez pudesse ser solucionado com a exclusão dos malditos “ós’. Ou sua inclusão. Seria um jornal/portal. Mas porque o “o” e não o "e", por exemplo? Talvez por causa de seu nome que começava com a referida letra: Olendina. E é interessante lembrar que existem poucos prenomes iniciados com “o”, como Oscar, Onofre, Olegário, Otávio, Odete, Osvaldo, Obregón (esse é um sobrenome), Osair, Ondina, Odara, Osmarina, Odorico, Osmar e Onaireves (esse é Severiano invertido, mas existiu e até virou deputado pelo Paraná). Geralmente não são nomes muito bonitos. Na sua maior parte são masculinos. O “o” é sempre muito masculino, assim como o “a” é muito feminino. Mas isso não interessa, pois minha tia não era uma louca, era de fato uma poeta. Uma poeta despertada no momento vespertino de sua vida, depois de aposentada de seu burocrático e weberiamemte racional emprego de escrivã titular de um cartório. Justo no momento em que a mágica começou a acontecer, quando tudo começou a virar nuvem, em que tudo principiou a sublimar, em que o corpo decidiu ir para baixo e alma para cima. Quando ela terminou de enlouquecer, ela resolveu deixar-se morrer por um câncer. Deixando como herança uma valiosa coleção de “ós”. E uma conta não paga da assinatura do jornal. Nada melhor para simplificar um inventário do que um espólio digno de Diógenes de Sinope. Sem seus ós as palavras viram-se em síncope.