A MIRAGEM
Do livro: Noite em Paris, em breve nas livrarias.
Eu tinha cerca de doze anos. Ele tinha doze anos. Na roça, onde morava, as moças que via eram poucas, e somente quando ia à feira de Capela, arraial a uma légua de nossa casa. As moças que ele via eram poucas.
Eu me enfeitava todo no dia de sábado, dia de feira em Capela do Alto Alegre. Sábado, ele se enfeitava todo. Era dia de feira. Meu chapéu novo de couro, uma casaca e alpercatas de cromo. Jogava um pouco de cheiro no corpo, roubado da mamãe. Olhos dançando, no caminho. Buscam Mariá, do Tabuleiro,ou do Bispador. Ouvia a cantiga de roda das noites de lua cheia. A rosa vermelha é meu bem-querer, a rosa vermelha e branca eu hei de amar até morrer. Veria o passo alegre de Quesinha? A mente voava pr´Aroeira e via Helena, blusa branca, azul a saia, caminhando pra escola.
Um sábado, após haver ajudado a descarregar os burros, fui amarrar os animais e pedi a meu pai para dar uma volta.
D’outro lado da praça havia uma aglomeração, a mor parte, garotos como eu, em torno de uma limusine. Corri para lá. Um carro. Era nosso espetáculo.
Dentro da limusine estava sentada, com muita graça, a nos olhar admirada, uma linda moça. Seus grandes olhos pareciam mato em tempo de chuva. Nossos olhos, capim queimado do sol, iam e vinham de uma ponta a outra do carro e se quedavam na moça, cujos cabelos eram espigas de milho nas noites de São João. O vento jogava-os de um lado para o outro e seus dedos tentando acomodá-los, faziam lembrar a cobra-cipó. Ela toda nos recordava a graça de um pé de licuri. Pela primeira vez olhei mais para u’a mulher do que para um automóvel. Me vieram à memória todas as imagens das santas trazidas por aqueles frades barbudos numa missão havida meses atrás. Ele via imagens de santas da missão.
- Parece a santa do padre da missão. Bem que pode ser a mesma. Quando crescer quero me casar com ela.
Pecado, uma santa não podia se casar. Caçoaram de mim, inticaram. Vergonha, tive. Quem não? Corri dali. Nos meus olhos, sua imagem me seguia.
À noite, em casa, após ter ouvido meu pai contar o sucedido na feira - suas vendas, e o dinheiro apurado - fui deitar-me. Logo adormeci. A imagem da moça me veio em sonhos e me chamava pelo nome: “Dá, estou aqui”. Era uma voz macia como a lã dos cordeirinhos. Os borreguinhos da Boa Sorte, a fazenda do tio Pedro, Pedro da Boa Sorte. Parecia o arrulhar da juriti de papai Nézinho. Juriti lá na gaiola quer sair. Guardiã que é guardada, pia mansa apaixonada.
O sol crestava mato e secava tanques. A miragem permanecia, fosse lua fosse dia.
Quando o sol caminhava para o lado das serras, eu sempre me entristecia pois me lembrava dela. Era a hora de apartar o gado e ouvir o aboio de seu Ricardo levando-os para curral. Da criação, cabras e ovelhas, cuidava eu, com meus irmãos. E quando as nambus começavam a cantar à boquinha da noite, já tínhamos reunido os animais na malhada.
Nessa tarde, tinha-se perdido uma ovelha amojada. Buscara-a entre mato, gravatá e cassutinga. Nem berro de mãe parida, nem balido de borrego ouvia-se pela catinga. Perdido em qualquer galho, estaria seu chocalho ou caído seu badalo. Cansado de procurar, sentei na cerca. Cerca de travesseiro, boa pr´atravessar, boa para sentar e até para deitar. O gado vinha tangido para o curral pelo vaqueiro Ricardo. Vortaçucena. Tu é doida, vaca danenta. Azuzinha, ei, ei, ei. Iáaa. Láá. P´ronde tu vai boi combuco? Sai daí, queli, cachorro embirrento. Queli saía escabreado, queria ajudar e não aceitavam sua ajuda. Vá lá entender o homem. Dá vontade de nem latir quando ele estivesse numa enrascada e não pudesse juntar o gado. Ainda nem sei porque somos tão amigos dos homens, se eles nem xite para nós. Só na hora que está precisando, vem com a cara mexendo, chamando a gente. Se é pra caçar tatu estamos rentes no buraco, cavando, acuando gritando para o bicho se afobar. Eu, mesmo, se deixar eu tomo conta deste gado todo, e ainda aparto as ovelhas e as cabras. Pondo-os tudo no chiqueiro. Vida cachorra. Tão logo lhe chama o dono, sai correndo para ele, balançando o rabo. Quem fez a gente assim? Nem pra caçar a gente presta. Viciar, viciados somos, se depender de nós a gente morre de fome, pode passar por riba da gente um passarim que a gente não levanta a cabeça pra pegar. Mas ouvi dizer que muito cachorro quando está mesmo morrendo de fome sai pra caçar e ai pega tudo que encontrar pela frente, de galinha a urubu. Quando seca vem é bom pra gente. Tudo que morre é repasto para nós. Nossos donos não gostam muito porque a gente fede a carniça, mas qui jeito? Trabalhamos como burro, só nos dão os restos, quando se adoece ou se envelhece nos abandonam, e a gente zanzando de casa em casa, por um resto de comida. Se gente descobre um ninho de galinha e come os ovos é um Deus nos acuda. Nos escorraçam, batem e até nos matam. Comer borrego ou cabrito, nem é bom falar. Uma noite uma matilha deu num ovil. Mataram sete ovelhas. Noite seguinte voltaram. Mataram quatorze dos nossos. Vida de cachorro, vida cachorra.
Longe, na estrada, o tilintar da mula-rainha da tropa do primo Zezinho. Tlim, tlim, delém, delém, din, din, dão, dindão. Musiquinha irrompendo na catinga. Trotava ele e seus burros. Chegar é preciso, antes de escurecer. Na estrada pra Capela, não é bom passar com o escuro no tanque de Rosalina. Mal-assombrado, alma de Joaquim Machado, errava por ali, da casa ao tanque, do tanque à casa, atravessando o caminho, deixando um rastro de frio e fogo.
Siriema cantou no longe, como o choro de cão nas noites friorentas. Bico para o infinito, implorando não sei o quê. Fim ou o prenúncio das águas? Um bando de papagaios passou gritando, cou, cou, cou. Iam para os ocos dos paus, onde fazem seus ninhos. Quando estourar as primeiras chuvas do verão a ninhada nasce e vai viver, como seus pais, por cem anos. Que inveja. A zabelê cantou o canto que lhe deu Tupã e me lembrei da cantiga de roda. Minha sabiá, minha Zabelê, toda meia-noite, eu sonho com você. Um gavião passou perseguindo a fogo-pagô. Ah, um bem-te-vi por aqui. Pitanguassu, pitangussu, ond´tá tu, ond´tá tu. Atirei meu chapéu-de-couro. O anajé pega-pinto perdeu o pino. Fogo-pagô voou, voou, se abrigar longe na quixabeira. Quixaba minha quixaba vem salvar minha rolinha, daí-me talento tanto, tanto remoçar preciso. Fiquei contente de ter salvado a rolinha, embora tenha matado muitas, de badogue, e comido, assadas num espeto.
Um jumento, mato adentro, zurrou alardeando potência e resignação. Escandaloso, triste, ameaçador. Ali podia estar a ovelha desgarrada. Talvez estivesse parida, urubutinga vai comer o borrego. Ou talvez um outro carcará qualquer, já o tivesse feito antes dele. Não basta a sede por que passam já ao nascer, correm também o risco de serem comidos por aqueles pássaros de bicos sanguinários. Um carcará só devia de comer milho e frutas como os outros pássaros. Porque só ele deveria comer carne? Será que ele era um passarinho de mentira? Só tinha pena para enganar os outros?
Do tanque, a voz de minha mãe. Cabeça na cabaça, d´água de beber, camará. De licuri, cacho na mão. Debaixo da pedra licuri. Licuri coco miúdo. Dizia ela uma chula. Daquelas que se cantava na raspa da mandioca na casa de farinha.
Xô, Xuá
Cada macaco
No seu galho...
Gostava de ouvir mamãe cantar. Mais um gemido. E não um canto. Sentia saudades. Do nada. Não traziam alegria os cantos lá do sertão. Arrastavam-se com dolência e angústia ao modo mixolídio, ferindo-se nas unhas dos mandacarus. Seca secando o gado, cobras mordendo gente, assombrações correndo a noite, caipora perdendo o povo, lobisomem virando homem, mula-do-padre trotando, cangaceiros zanzando, jagunços, volante atirando, festas dos Santos Reis, São João do Carneirinho, bois, batuques e batas, batas de milho e feijão, cantigas de roda na noite, nas noites de lua cheia, chula, xaxado e baião tudo isto é o sertão, triste, terrível torrão.
Uma voz, longe na malhada. A moça do carro de Capela. Em pé, de pernas altas, parecia eu, um anão. Na cabeça um véu multicolorido, emoldurando um trono. Na mão direita um cajado, maior que o bastão que usávamos para tanger gado. Na esquerda, uma cruz vermelha, parecia de madeira, presa por um laço.
- Eu estou aqui.
Desci da cerca. Com medo, surpreso e assombrado. Sua voz, desta vez, como o balido de um cordeiro. Anho de Deus. Hesitei um pouco no pé da sebe. Seus olhos se confundiam com o capinzal.
- Vem, sou tua amiga.
- Quem é você?
- Eu sou tudo o que foi, é, e será. Sou Isis, Filha de Gebe e Nute, irmã-esposa de Osiris e mãe de Horus, mãe de todas as crianças.
Tomei coragem e corri pra ela, tropeçando em pedras, tocos e arbustos. Mais corria, mais distante ficava ela de mim. Seus cabelos se misturavam com as nuvens doiradas pelo sol crepuscular. Trazia um vestido vermelho, colado ao corpo, de cujos braços se viam pulseiras azuis Não pareciam de tecido. Talvez algum metal a refletir os últimos raios do sol poente. Derramou-se uma luz por toda malhada. Espargia-se uma intensa fragrância de jasmim silvestre, a flor que eu mais gostava e porque chovia suas flores embranqueciam o mato, iãsemin que embriaga as noites do sertão. Ela ia se afastando como se estivesse alguém puxando-a para cima e para trás. Eu corria. Não me pesava o corpo. Seus olhos, o meu guia. Sorriam para mim. U’a música, que até então pensara ser apenas um ruído, aumentou e escutei sons nunca dantes ouvistos. Como inúmeros chocalhos a badalar na tarde. Não se via, mas vozes femininas se mesclavam numa orquestração indecifrável. Surgiam luzes e pariam cores e sons, circundando meu corpo, meus ouvidos. Não diziam chulas nem batuques. Nem tambores, nem pandeiros. Era um cantar de palavras. Indecifráveis. U’a música disforme das toadas do sertão. As vozes se misturavam e me vinham como um chamado. Sons como órgãos, violinos, alaúdes, harpas e liras e cítaras. Às vezes parecia ouvir o doce toque do boré. Fiquei com medo e quis parar. Já não conseguia, entretanto, estancar, por mor de uma força que sentia me conduzir em direção àquela moça. Ela mansa e meigamente se afastava.
- Não tenhas medo - Sua voz pairava sobre tudo. Era um canto, o mais belo. Já não mais sabia onde estava. Meus pés começaram a desprender-se do chão pedregoso. Gritei.
- Papai, mamãe, estão me roubando.
Grito perdido no espaço de sons, cores e luzes, vindos como a me embalar. Ela me sorria de seus olhos verdes, me enviava beijos. Tanto espanto, por dentre as nuvens, um carro se aproximando. O mesmo da feira em Capela, azul e não preto como antes. Sem fumo, nem bulha, deslizava puxado por dois cavalos brancos. Ela convidou-me a entrar no carro, tive ainda maior medo. Gritava, que me deixasse ir embora. Não queria ir com ela. Que gostava dela, mas tinha medo. Não sabia para onde estava me levando.
- Vou te levar para um lugar muito lindo, onde não há secas, nem fome, nem assombrações, nem jagunços. Onde tudo é paz, música, festa e cores.
- É para o céu? - perguntei - eu ainda não morri. Me deixe ficar, não quero ir. Eu estou com medo.
- Um lugar melhor que o céu, porque não é preciso morrer para se chegar lá. Você não está vendo? Eu não estou morta. Lá não existe morte. Só vida.
Me fez tocar seu braço. Ele tocu seu braço. Cálido. A boca do forno da casa de farinha, suave como as plumas dos pintainhos. Tinha medo e saudade dos de lá de casa. Com certeza, já tinham sentido minha falta e estavam me procurando. Muita ruindade minha. Ir-me embora para um lugar tão bom, deixá-los sós na roça passando toda espécie de necessidade, como quando passamos um ano bebendo água salobra da cacimba, porque não chovia, ou quando tinha de pisar o milho, fazer cuscuz e comer com feijão.
- Eu quero voltar pra casa, dizia, embora já tivesse compreendido. Ela não me queria fazer mal algum. Quase como um desabafo, quase com um gesto de impaciência, sua voz, seu corpo disse:
- Olha bem, senti naquele dia que gostavas de mim e vim te buscar. Vou te deixar, porque não estás preparado para viver entre minha gente, virei um dia te buscar. Prepara-te então. Ama-me, que esta é a melhor maneira de te preparar para mim.
Senti meu corpo. Desprendia-se daquele carro. Imagem, som, luzes e cores iam-se afastando. Seu sorriso ia tomando conta de mim. Um sentimento de perda ia-se apoderando de mim. Eu ia descendo e me afastando dela. Adeus, adeus, até a volta, como uma canção de ninar. Meus pés tocaram o chão. Quedo, mudo e surdo fiquei. Tudo desaparecera. Era tudo lusco-fusco. Eu ouvi o balido de um cordeirinho. E vi, em frente a mim, a ovelha que tanto procurara e o borreguinho buscando ávido o peito da mãe.
Eu toquei a ovelha e seu filhote para o curral. A lua alumiava a boca da noite. Uma acauã gemeu seu canto e eu apressei o passo.
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