Outros carnavais
Estranho estar no meio da rua e ouvir apenas os próprios passos. Naquele final de terça feira, em pleno começo de semana, nem mesmo os carros de sempre davam o ar da graça onde, não fosse o feriado, haveria o transitar costumeiro da hora do rush. Nesse dia, porém, só o que havia era uma calma branda de cidade do interior.
Como não assistisse televisão, não frequentasse blocos e não se interessasse pela festa, nada além da cidade vazia lhe indicava o motivo do feriado. Naquela época, a metrópole - ao menos naquele bairro onde nada acontecia e no qual os moradores evaporavam em busca de outros locais com maior movimento – se tornava um lugar muito bom para se viver. As praias superlotadas, os desfiles, os trios elétricos, as bebedeiras, os congestionamentos, ficavam todos em outra galáxia.
Ele não pretendia se juntar aos foliões. Tímido, sequer estava acostumado a beber. Nunca viajava nessa época, justamente para poder aproveitar a nova configuração das ruas. E vagava assim a esmo, observando detalhes que normalmente, atrás de um vidro de carro ou sob a pressa de logo chegar, lhe passavam despercebidos.
O céu naquele final de tarde, com uma claridade estranhamente incompatível à hora apontada no relógio, tinha um azul incomum; o calor despropositado do horário de verão subia-lhe às faces, uma brisa quente soprava sem direção definida. Ao chegar próximo da esquina, a pizzaria, ainda com as portas fechadas, começava a exalar seu típico aroma de lenha, o combustível do forno que começava a ser preparado para assar os pedidos da noite.
O conjunto de sensações tomou corpo e, de alguma forma, entrou-lhe na alma e de lá puxou uma parte da infância longínqua. A infância de verdes a perder de vista, contrastando com o azul irreal daquele céu sem limites; o calor que subia da terra e penetrava na pele, tingindo-a de vermelho, poro por poro; a brisa morna que trazia, naqueles crepúsculos, o cheiro de lenha do fogão da avó, onde era preparado o jantar. Jantar que mais tarde se tornaria, sobre a grande mesa da cozinha posta com pratos de louça lascados pelo uso, um sabor saudoso, jamais repetido em toda uma existência.
Naqueles finais de tarde, os primos da cidade, todos, antes de voltar à casa para o banho e o jantar, e depois de um dia de correria pelos pastos - completamente vermelhos de terra e já secos do suor e da água do açude, com as roupas encardidas e a alma lavada - sentavam-se no terreiro de café. Era a hora em que, finalmente derrotados pelo cansaço, sua algazarra terminava e começava a das cigarras e dos grilos. Ainda que crianças fossem, sabiam contemplar aquela imensidão que, ao menos durante o período de feriado prolongado, lhes pertencia. Também ali nada lembrava a data: eram apenas dias de brincar de verdade, sem fantasias, livres como nenhum deles, adultos agora, jamais conseguiu voltar a ser.
Eram absolutamente surreais as lágrimas que lhe escorriam pela face túrgida de calor. Nem racionalizar a sensação causada pelas lembranças foi suficiente para contê-las. Uma espécie de funeral da alegria, uma nostalgia dolorida, uma sensação de perda absoluta o fez dirigir-se ao bar mais próximo, onde meia dúzia de não-foliões engoliam suas mágoas com a pinga. Pediu uma cerveja, e outra, e outra. O calor tornou-se sufocante. Saiu dali, garrafa na mão, cambaleando sem direção nem destino. Sentou-se em algum lugar da calçada, já sem lágrimas, e deve ter adormecido ou coisa parecida - pois, já noite, lembrou-se de ter ouvido de algum transeunte (que provavelmente passara por ele observando-o com superior desdém e contido receio) algo sobre a relação óbvia entre álcool e carnaval.
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Este texto faz parte do Exercicio Criativo "Outros Carnavais"
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