NO TEMPO DOS PSICOTAPAS
- Dona Wanda era o terror em forma de gente. Lembra? No grito, organizava a entrada e a saída dos alunos. Lembra do quepe militar? E do apito? E a expressão de fúria... “Menino, quer levar um psicotapa?!” O psicotapa... O psicotapa seria uma agressão entre o tapa e a pancada... Deveria abalar moralmente. Por isso, a mulher foi designada para organizar as filas, subir no banco, olhar a pirralhada, manter o silêncio absoluto no pátio. Ela era a portadora do psicotapa... O psicotapa! Qualquer indisciplina... e ele criaria a neurose. Amansaria o cabrito chucro. Quando a mulher descia da vigilância e soltava o corretivo... a mão espalmada contra a nuca do infeliz... as crianças gelavam. Mas você reparou... depois de sete anos... Dona Wanda perdeu a autoridade. Ela, que em 1970 foi considerada inspetora-modelo... Pelo menos a TV Educativa filmou sua atuação. No final de 1976 era praticamente desprezada pelos alunos. Velhota, percorria o pátio como um leão sem dentes, um verdadeiro zumbi... Não era bem zumbi... percorria o pátio como alguém... que tivesse levado o psicotapa. Ah, e a Dona Ester? Lembra? Você era da outra sala. Dona Ester foi minha professora no terceiro ano. Mulher excêntrica. Você já viu aquelas pintas no rosto das atrizes do cinema mudo? É... ela pintava no queixo... Era parte do seu ser atriz de cinema. No meio do ano... setenta e dois... Dona Ester passou a reger nossa classe para a apresentação musical do dia da independência. A festa do Sesquicentenário da Independência. Aquela do governo Médici...pois é, cantávamos todas as manhãs. Nem aula mais havia. Não precisava. Era subentendido que acima da instrução, da matemática. Lembra das operação comutativa? Acima da ordem dos fatores não altera o produto... estava o dever de amar a pátria. Ganhamos até pandeiro de plástico que seria usado durante a exibição. Uma das músicas não tinha qualquer sentido... não me lembro. A outra era do “peixe vivo”. “Como pode o peixe vivo viver fora da água fria? Como poderei viver. Como poderei viver...”. É bem conhecida...e, finalmente, a marchinha obrigatória do “Eu te amo, meu Brasil. Eu te amo. Meu coração é verde, amarelo, branco, azul, anil...”. Você lembra? Quem não lembra? A marchinha da ditadura. Eu conheço gente que sente algo estranho quando falam dessa marchinha. No dia do espetáculo, muitas escolas da cidade estavam ali, no ginásio do Ibirapuera. O narrador apresentou cada nome. Levou um tempo de encher o saco... Os alunos agitavam os pandeiros. Parecia torcida de futebol. A televisão também veio, filmou nossa performance para a TV Educativa. Olha, cantamos muito e escutamos muito discurso e no dia seguinte, Dona Ester veio dizer o quanto detestou. Nossa classe destacou-se pela baderna, falta de espírito cívico e outras bobagens... Não era verdade. O intrigante é que talvez não houvesse ali uma piração. Pelo contrário, o seu esforço para defender preceitos nacionalistas poderia ser uma maneira de negá-los. A reafirmação raivosa e constante de um tipo de comportamento, talvez tenha como objetivo o seu enfraquecimento. Você agudiza as contradições internas, compreende?
– Me vê mais um chopp, garçon! Continua...
– Um dia, ainda em 1972, encontrei Dona Ester na rua, fora do ambiente escolar, do quadro negro, das janelas enfeitadas com decalques da cara do Duque de Caxias. Ela me viu, me cumprimentou com um beijo e eu me assustei. Não! Petrifiquei-me diante do que ela usava: uma calça de couro preto bem justa, jaqueta do mesmo tom, lenço vermelho no pescoço. O batom exato. Tão bonita e indiferente a imagem de professorinha atrás do jaleco branco. Perguntou-me o que eu fazia na rua, às cinco horas da tarde. Não sei se respondi. Poderia ter devolvido a pergunta. Eu nem pensava, imaginei as suas pernas comprimidas naquele couro. Aquilo tornou mais caótica para mim a materialização do corpo feminino. Devo ter arregalado os olhos, e Dona Ester percebeu. Despediu-se com outro beijo e saiu. Fiquei reparando... Ela caminhou duas, três quadras. Não olhou para trás, foi sumindo, entrando na paisagem... Hoje está tão grudada em minha memória, quanto o outro decalque da sala. Acho que o da Guerra do Paraguai... a batalha de Itororó ou Itararé.
– É... grande batalha. Peça mais um chopp. Eu vou ao banheiro.
Do livro: As crianças do general Médici