A criança.
A escuridão cobria cada centímetro daquela sala. Nada podia ser visto ou percebido além de si mesmo. O que enlouqueceria a maioria dos homens acalmava a mente daquela mera criança, que tinha para si que estava eternamente sozinha e isolada de tudo que um dia existiu e do que ainda viria a existir. A sensação era embriagante e completamente acolhedora, um tipo de êxtase que qualquer humano comum demoraria séculos para voltar, e outros apenas para perceber.
Não sabia se seus olhos estavam fechados ou abertos, pois não havia diferença alguma nos arredores. Movia-se infindavelmente por todas as direções, e nada tocava, nada sentia, o fazendo sentir como um ser imaterial. Sua respiração era a única prova de sua existência, e mesmo ela era lenta e sutil. Os sons que sua boca emitiam eram irrelevantes, pois poderiam ser imaginados com a mesma intensidade. E as batidas de seu coração não pareciam nada além de impressão.
Passavam-se dias, talvez anos, mas não fazia diferença, a criança sempre se sentia a mesma e completamente sem necessidades. Seus estados de consciência oscilavam entre o desperto e sono, e não havia nenhuma diferença entre eles, e nenhuma diferença existia na sua percepção de tempo. Para a criança era completamente infundada o conceito de tempo, pois não existia o ontem para se lembrar, nem a expectativa para um amanhã, sendo eternamente um presente continuo, tudo acontecendo ao mesmo tempo e ele estando em todos os lugares, mesmo que naquela escuridão não houvesse lugar algum, ou por causa disso ele estava em tudo.
Mas repentinamente tudo mudou. Seus olhos se abriram e observaram a luz no topo da escuridão. Os fechou, e lá estava ela, no mesmo lugar. Ao primeiro passo achou que ela havia surgido como um presente dele para ele mesmo, finalmente imaginara algo além das impressões, algo além das sombras, mas no segundo passo percebeu que aquela luz sempre esteve ali, e nunca havia mudado de lugar.
- Mas como não percebi essa coisa? – Perguntou-se enquanto dava o segundo passo.
- Achei que só houvesse a escuridão. Vamos, me diga o teu nome. – Ordenou como um soberano. Mas nada teve como resposta.
A cada passo que dava questionava-se mais e mais. Por fim observou que a luz apenas se afastava.
- Se outra coisa existe, devem existir muito mais, mostre-me. – Gritou com sua mente e com seu corpo. E a luz finalmente se apagou, o deixando em uma agonia profunda.
O que tinha acontecido? Por que aquela coisa o deixou assim? Seria apenas fruto de sua imaginação? Ele realmente tinha observado algo além das sombras?
E assim permaneceu, refletindo sobre o evento, se lastimando por não ter conseguido aproveita-lo como deveria. O que ele poderia fazer para conseguir aquilo de novo? E assim ele percorreu as sombras, tentando recriar a maravilha da luz. Quando suas lagrimas angustiadas tocaram o nada, pela primeira vez surgiu a água, maravilhada a criança afundou-se sobre ela e provou de um sabor salgado. Coisas novas surgiam dentro de si, coisas que se refletiam fora. Alegrou-se de imediato. Algo novo ele havia criado, então obviamente criando outras coisas ele iria experiência a luz outra vez.
A criança foi criando incontáveis sensações, prazeres, loucuras, emoções e desejos, mas a luz nunca vinha, ela sentia-se cada vez mais distante daquela coisa, seja lá o que fosse. A música reverberava por todos os cantos de si e de fora. O silencio fora esquecido, a loucura o dominada, a apenas a ânsia era continua.
- Quero sentir mais, quero entender mais. Quero ser mais. – Rugia a criança enlouquecida enquanto misturava suas próprias criações, manifestando as mais monstruosas criaturas que já tinha visto. Mas todas eram belas aos seus olhos.
Por vim, a criança cansou. Já estava farto, se si e de tudo. Onde havia guardado o silencio que tanto lhe amava? Onde estava a quietude de onde viera? Poderia ela voltar a ela depois de tantas desgraças contra o seu chamado? Mas ele tentou, chamou o silencio com urros grotescos. Esperneou para chamar a atenção da quietude. E subiu sobre construções inimagináveis para procurar as sombras. Por fim chorou, pela primeira vez de saudade.
Sua criação não mais o satisfazia. Ele apenas tentava recriar as coisas que um dia vira e sentira, mas era inútil a tentativa, e ele não entendia o porquê. Seus gritos eram inúteis, então tristemente se calou. E seus contorcionismos também não surgiam efeito, e por fim parou. Ficou apenas sentado observando todas as suas criaturas. Aos poucos foi retomando a consciência de que tudo aquilo não era seu, mas simplesmente ele. Ele não criara nada, apenas as alterava, e tudo que alterava ao seu redor fazia parte dele. De alguma forma era isso que ele sentia. Fechou seus olhos e permaneceu assim dolorosamente. Seus impulsos eram constantes. Queria se levantar, sair dali, berrar, dançar... Mas a última coisa que passava pela sua mente era o silencio, mas a criança já havia feito tudo isso, e não entendia os motivos de seu corpo querer fazer aquelas coisas repetidas vezes, sem nunca se chatear.
Foi então que a criança seguiu observando suas sensações, os motivos de seu corpo, os motivos de suas criações. Mais uma vez esqueceu do tempo e do espaço criado ao seu redor. Viu, triste, tudo que havia criado desmoronar, cada ínfima coisa, cada ínfimo som foi sumindo, dando lugar a outra coisa, um acolhedor e quieto silencio. Quando voltou a abrir seus olhos, restava apenas ela, sozinha consigo mesma. Permaneceu assim, pois não esperava por mais nada, já havia experimentado tudo que seus desejos a impeliam, agora apenas restava o descanso.
A luz novamente surgiu no alto, mais uma vez rasgando a escuridão. Mas, dessa vez a criança nem mesmo abriu os olhos, apenas observou aquela coisa estranha. Não permitindo-se abalar, a luz foi se aproximando, cada vez mais e mais, até tomar a criança para si. Mostrando-a mundos e tudo o que estava escondido nos cantos escuros. Um grande sorriso brotou no rosto da criança que pela primeira vez havia visto o próprio rosto. E na luz aproveitou cada coisa, cada momento, cada criação, em seguida começou a criar as suas formas, mas nunca levantou questões outra vez, enquanto esteve ali.
Na luz tudo parecia mais belo, glorioso. Até mesmo as emoções que angustiavam na escuridão. Nesse lugar, tudo o impelia a mais e mais ação. Também não havia pausas, era uma continua imaginação, uma continua emoção em seu pequenino peito, e nada de ruim conseguia experimentar enquanto permanecia na nuvem de luz. A música na luz era a mais bela e alegre. Dançou tanto e de maneira tão contente que nem sentiu a dor em suas pernas, e por mais um fim, caiu cansado, mas na luz não poderia descansar. Então voltou a escuridão para o seu descanso eterno, e mais uma vez, sentiu a ânsia de criar. Mas tudo que criava nas sombras apenas se assemelhava a luz, e tudo que criava na luz, apenas se assemelhava as sombras. Sempre faltava alguma coisa em suas criações. Nada parecia completo. Nada nunca pareceu, nem mesmo a pequena criança que percorria de um mundo para o outro.
- O que posso fazer para me completar? – Se questionou nas sombras, enquanto olhava a luz.
- O que eu poderia fazer se tudo que conheço é incompleto? – Perguntou mais uma vez, estando na luz enquanto olhava as sombras. Mas nenhuma das duas se afastava de seus questionamentos, e nenhuma das duas os respondia.
A criança continuou em sua peregrinação por tanto quanto pôde. Até não poder mais suportar os extremos.
- Eu não poderia unir a luz e a escuridão para formar um 1 completo? – Se questionou ao perceber as características distintas dos dois planos. E por fim as uniu, mantendo os olhos abertos na escuridão e fechados na luz. A completude foi criada e a juventude chegou ao fim.